Crianças aterrorizadas



10 ANOS SE PASSARAM desde o dia em que a mulher em frangalhos morreu. E, junto com ela, nasceu uma criança. Tom Riddle viveu no orfanato durante toda sua infância. Ele era o garoto mais estranho do prédio. Era moreno, pálido e alto demais para sua idade. Mas não eram essas características que o tornavam estranho. Tom parecia não ter amigos, estava sempre isolado e quieto. Andava sozinho por toda a Londres. Não gostava de misturar com aquela “gentinha”, dizia ele, sem ao menos saber o porquê disso. Nas vezes em que tinha alguma relação com outra pessoa, quase sempre algo anormal acontecia. Nesse momento, estava ele deitado na cama, pensando sobre sua mãe e pai que nunca conheceu. Será que era mais parecido com sua mãe ou com seu pai? Lembrava de coisas difusas na lembrança, coisas que vinham e iam tão rápidas que ele quase não conseguia lembrar segundos depois de elas irem. Lembrava de vozes e de nomes, de barulhos de foguetes explodindo no ar. Não lembrava quem foi, mas a primeira vez que disseram seu nome informaram ao garoto que era o nome do pai. Não sabia em que aquela informação mudaria em sua vida, mas pelo menos tinha uma ideia, mínima que fosse, sobre sua família. Diziam que era parecido com seu pai, mas como sabiam se nunca o viram? Seu pai era como ele. E ele continuava do mesmo jeito com que nasceu, diziam as pessoas do orfanato. Ainda era como sempre foi: alto, moreno e magro. Um completo bonitão. Sua mãe, pelo que a Sra. Cole havia dito uma única vez, pensou ter lido em algum lugar um nome: Mérope. Mas como ela mesma disse, ela apenas pensou isso. Começou a pensar, a seu modo, como era “especial”, e lembrou-se da sua primeira vez quando algo estranho aconteceu, tinha sete anos. Tom observava um grupo de crianças que observavam um garoto com um estranho objeto. Parecia uma mini roda com um barbante amarrado. A rodinha subia e descia, de acordo com o puxão dado pelo menino.


– Que massa, Erico – dizia uma menina, observando o garoto, louro e gordo, brincando com o objeto.


– Eu sei. Meu pai trouxe – respondeu Erico. E logo acrescentou – dos Estados Unidos. É o brinquedo mais popular de lá.


– Nossa, eu queria ter um desses – apontou para o objeto Jéssica, de cabelos enrolados ocultando as orelhas de abano, motivo de risadas por anos no orfanato. – Tom, venha ver que legal!


A garota acenou para Riddle, que não saiu do lugar. Seu único movimento foi fazer uma descrente levantada nas sobrancelhas negras, como se não gostasse de ouvir seu nome. Nisso, todos os garotos olharam para Jéssica, desentendidos. Jéssica parecia não entender.


– Por que você o chamou, hein? Ele é uma aberração! – exclamou Erico, ficando com raiva.


Como se tivesse ouvido a última palavra dada pelo seu dono, o objeto saiu de suas mãos, flutuou no ar e desceu como uma bala, acertando em cheio a testa de Erico, derrubando-o no chão.


– Aiiiiiiiiiii!


– Está vivo!


– Minha nossa!


– É o demônio!


Os garotos saíram correndo. Quando caiu, Erico se levantou e viu que sua testa estava sangrando. Tentou correr, mas algo o prendia.


– Meu Deus. Não... consigo... me... mexer – sussurrava apavorado, tentando mexer as pernas a cada palavra que dizia. – Faz alguma coisa – gritou a Riddle, que só o encarou pensando no que fazer a seguir.


– Por quê? Acho que seu brinquedo está infeliz com você – e nisso, o objeto se levantou mais uma vez e o acertou no nariz, agora quebrado. Erico gritou mais ainda do que antes.


– Pará com isso! – o sangue escorria de suas narinas e ele falava empapado. Quase não dava para entender.


Riddle começava a sentir gosto da situação, sozinhos ali, com Erico impotente no chão sem poder fazer nada.


– Me dá isso! AGORA! – a última palavra saiu tão potente que o impacto fez Erico arregalar os olhos, com medo.


– Toma, Tom – Riddle se descontraiu, fazendo Erico, paralisado, se mexer e lhe entregar o objeto. Permitiu que o garoto corresse. E quando o fez, disparou pelo corredor, olhando constantemente para trás, esperando que Tom o perseguisse com alguma faca. Riddle olhava o que tinha na mão. Era bem bonito aquele brinquedo, todo prateado. Ao observá-lo mais ao fundo de sua mente, um brilho se apoderou de seus olhos, como se tivesse ganho seu primeiro troféu numa competição.


Dois anos depois desse acontecimento, algo chocou o orfanato. Durante uma aula, que tinha dentro do prédio mesmo, houve uma discussão sobre o final que teria num livro que estavam lendo.


– Então, é isso crianças – terminou a professora de leitura até certo ponto –, o que vocês acham que acontecerá no final?


Várias crianças começaram a tagarelar, uma tentando falar mais alta do que a outra dentro da sala encardida.


– Eles vão se casar!


– Eles vão fugir juntos!


– Não, eles vão fugir juntos e depois casar!


O barulho era tanto que ninguém entendia mais nada. A professora viu Tom numa cadeira, olhando para o chão.


– Tom, querido, o que você acha? – perguntou gentilmente ela, inclinando ligeiramente a cabeça.


Todos os olharem convergiram para ele. O garoto revirou os olhos até o teto. Aquilo era extremamente inútil e sem graça.


– Não importa, é só uma história – respondeu, com tédio. Pra que aquilo seria importante no futuro?


– Que é isso, meu bem? Vamos lá. Então, o que você gostaria que acontecesse? Dê a sua opinião – incentivou a professora, fazendo todos se calarem com um aceno das mãos nodosas.


Riddle deu um silencioso sorriso.


– Isso, vamos – tentou novamente encorajar Josefina, a professora de leitura, que agora se empertigava na cadeira.


– Gostaria que ambos... morressem – disse com ferocidade, quase imaginando duas pessoas caírem mortas a sua frente.


Pareceu que a temperatura do ambiente foi a zero. A tensão fazia as garotas olharem de Tom para a professora e os garotos olhavam os próprios cadarços dos sapatos com medo de levantarem a cabeça.


Tentando disfarçar, o que seria dificílimo de acontecer, a professora recomeçou a conversa:


– Bem, vamos voltar a nossa aula de português – disse ela, procurando um livro debaixo do assento.


– Estamos estudando sujeito de orações – informou ela, tentando distrair as crianças – Por exemplo, alguém sabe quem é o sujeito desta oração? – perguntou ela, apontando o dedo para o quadro destacando a oração: “O menino tirou nota zero.” – Alguém sabe quem é o sujeito? – repetiu ela.


– Só pode ser o Tom, professora – respondeu Carlinhos, maliciosamente – Ele é tão burro – acrescentou, fazendo todos rirem, menos Tom e Josefina. Na mesma hora, Tom fervia e a professora acabava a aula dizendo com apreensão:


– Alunos, a aula acabou – ela bateu palmas esperando o sinal tocar, o que não aconteceu. – Podem ir jantar, ele deve estar sendo servido.


Os alunos saíram do transe de risadas e saíram em disparada, mas não antes de Riddle sair calmamente com raiva e se sentar no seu conhecido e adorado banco no corredor, onde se isolava de todos, logo atrás da cozinha. Ficou imaginando mil cenários da morte dos personagens até o jantar acabar. Carlinhos Stubbs, um menino ruivo conhecido por ter vários machucados e um coelho de estimação, o mesmo que tirou sarro dele, vinha com ar de debochado e rindo de sua cara. Não o aguentaria em silêncio agora que não tinha ninguém por perto.


– Até parece que os principais vão morrer. Você é louco... – e apontou o dedo para Riddle, como se fosse convocá-lo para algo importante. Nisso, começou a balançar o dedo ao redor da cabeça como um vasto idiota.


– Não disse que eles vão morrer, disse que gostaria que assim fosse – rosnou o garoto – Você é burro ou é surdo? – perguntou Riddle.


– Cala boca! Você se acha aí nesse banco, né. Ninguém gosta de você por aqui – espetou ele, como se o garoto se importasse com aquelas “acusações”.– Até seus pais te abandonaram – disse Carlinhos, provocando-o. E que acusações mais retardadas, pensou Riddle, pois se estavam num orfanato, então os pais dele também não o queriam Mas nada disso importava, pois tinha o que falar. E isso o acertaria em cheio na cara gorda:


– Ora, essa. Veja quem fala, o Sr. Hematoma por causa da mãe que o espancava depois de tanto beber – respondeu Riddle. Nisso, Carlinhos começou a ficar vermelho de fúria e gritou:


– Cale a boca, seu idiota! Seus pais te abandonaram por que te odiavam, sabia que você seria uma aberração! – gritou ele.


Essa era uma palavra que Tom não suportava, mas, antes que pudesse atacá-lo, a Sra. Cole interveio:


– Carlinhos, pare com isso! Não quero brigar aqui – interrompeu ela os dois, rispidamente. E então, voltou-se contra Tom. – Tom, me ajude nas cozinhas. Vamos preparar a sobremesa.


A mulher o puxou pelo braço. Riddle ainda tentava fazer alguma coisa com Carlinhos, mas não conseguiu.


– Vá ao galpão pegar mais panelas, por favor.


Tom se arrastou como uma cobra até o galpão, tamanha a sua má vontade. Ligou as luzes e viu um rato o encarando. Riddle o encarou nos olhos e começou a pensar em mil coisas. E as mil, por incrível que pareça, o rato fez. Começou a dar voltas em torno do próprio eixo, dava pulos e roia as unhas. Mas algo maior aconteceria com ele. O menino olhou ao redor e viu uma ratoeira.


Mandou o rato ir até lá. Com um baque, a ratoeira se desarmou e esmagou o tórax do pequeno mamífero.


– Minha nossa, que barulho foi es...? Tom, meu Deus, você viu o rato morrer? – perguntou uma das cozinheiras do orfanato.


– Vi, foi bem divertido – respondeu, sorrindo violentamente.


E saiu da cozinha, pensando no rato e na sua obediência, enquanto a cozinheira tinha no rosto o horror encarnado.


No dia seguinte, todos estavam assistindo a um jogo de futebol na sala. Após o término, Tom viu uma cena bizarra. Carlinhos vinha com ar de desdém com seu coelho Thor, na coleira! Que ridículo esse coelho, pensou. Ao ouvir o toque do almoço, Carlinhos largou o coelho e foi correndo. Tom olhou para os lados e, ao perceber que estava só, foi até o coelho. Olhou mais uma vez para os lados e então para cima, onde observou traves de metal que serviam como suporte a lâmpadas. Tom riu e começou a olhar para o barbante com tal intensidade que ele se elevou. Faltava um metro até chegar à trave e o coelho já estava na ponta dos pés. Havia prazer em seu rosto ao ver o coelho se debatendo, quase sufocando, mas a fúria se apoderou dele ao lembrar da palavra que tanto odiava e o barbante voou até a trave e se prendeu. Durante quase um minuto, Tom ficou olhando o animal se debater, até estremecer e não mais se mexer. Saiu dali como se nada tivesse acontecido. Tom chegou a tempo da sobremesa e logo ouvir um grito que o fez achar que o coelho fora encontrado. Saiu e foi até a sala e acertou. Carlinhos estava gritando e chorando e, quando viu Tom, gritou e apontou para ele:


– Por que você fez isso? – Tom deu uma leve risada ao ver o choque do garoto e nada respondeu.


Chegaram mais pessoas e junto a Sra. Cole, com seu conhecido olhar de terror estampado.


– Carlinhos, como pôde dizer isso? – questionou a Sra. Cole, chocada com a acusação do garoto.


– Foi ele, sim. Ele me v-viu passeando com o Thor e ficou com i-inveja. E ontem eu xinguei e-ele – ele não parava de soluçar. Na verdade, para Riddle, a situação era engraçadíssima,


– Tom, querido – a Sra. Cole se aproximou, meio receosa –, você viu quem fez isso com o coelho do Carlinhos?


Riddle percebeu que ela evitou perguntar: Você fez algo com o coelho? Seria muita irresponsabilidade dela.


– Não, não vi. E também não fiz nada. Por quê? – desafiou ele, cerrando os pulsos ameaçadoramente.


– Por nada, querido – e se distanciou pensativa, pensando no que poderia ter havido com o coelho de Carlinhos. As acusações do garoto pareciam corretas e convincentes, mas como provar?


O coelho fora retirado e enterrado no quintal. Por semanas esse caso foi discutido, até ser esquecido.


 


E agora era o presente. Tinha completado 11 anos em dezembro. Tom estava deitado em sua cama, pensando nisso tudo e por que conseguia fazê-las. Por que ele era tão... tão especial? Adormeceu antes das 10 horas da noite.


Tom acordou ouvindo:


– Levante, querido, estamos até atrasados – disse a Sra. Cole, fechando a porta fazendo barulho exatamente para fazê-lo levantar.


Ele se levantou e lembrou o dia: 24 de julho. Esse ano, de 1938, era o ano em que visitariam o campo e a praia. Os anos anteriores foram sempre chatos: visitavam sempre um lugar mais frio do que era lá. Mas esse ano não, seria diferente, lá o sol brilhava com força. Levantou-se rápido, eram apenas 6 horas, e se dirigiu à cozinha, para tomar café. Depois, entrou no conhecido e encardido ônibus que os levavam uma vez por ano a um lugar diferente.


Começou a viagem. Tom, que sempre sentava no fundo, o mais longe possível dos outros, notou uma perturbação na frente do ônibus. Resolveu investigar, sempre foi curioso para certas coisas. Dênis Bishop e Amada Benson eram o centro das atenções. Eram, na verdade, arrogantes e metidos ao extremo, mas os outros só se importavam com os objetos que eles seguravam. Dênis era um garoto negro e com estranhas sobrancelhas, segurava algo metálico que colocou na boca e soprou. Dele, saiu um som horrível, mas os garotos riram. Amada era o oposto, branca como gesso, e era a garota mais magra do orfanato, tinha no dedo um pequeno objeto, também metálico, que ela encaixou no dedo.


– Dênis, Amada, o que são essas coisas? – perguntou um menino baixo, moreno e de bigode, por mais estranho que pareça.


– Bem, Bigodão – era o seu apelido. Nada convencional para um garoto de apenas onze anos de idade –, essa gaita serve para ouvirmos música. Herdei de meu pai, ele era compositor.


– E isso é um dedal – mostrou a garota chamada Amada Benson, erguendo o objeto ao alto para todos verem – A Sra. Cole disse que minha mãe e ela eram grandes amigas antes de minha mãe morrer. Como minha mãe era costureira, teve esse dedal, para não me furar – respondeu a garota.


Ouviram-se vários: Ohhhh e ahhhh de compreensão.


O sol entrou com força nas janelas do ônibus, refletindo nos olhos de Tom. Logo que parou, ele viu no horizonte um mar azul. O ônibus deu um tremendo solavanco e parou derrapando.


– Crianças, chegamos – anunciou a Sra. Cole, responsável pelos passeios e pelo orfanato.


A trupe saiu correndo do ônibus demasiadamente cheio e muitos empurrões foram dados. Quando todos saíram, Tom veio lentamente descendo do ônibus com ar de tédio na cara.


– Crianças, é o seguinte. Vocês podem caminhar e brincar por todo esse campo – ela fez um arco com o dedo –, mas não podem passar dos limites das cercas, feitas pelo morador daqui que nos concedeu essa pequena estadia – explicou ela, embora ninguém estivesse ouvindo o que ela estava falando. – Fora delas, o limite é de outras pessoas, portanto... não saiam de dentro dela! – gritou ela, num sussurro letal para o motorista não ouvir.


As crianças se divergiram. Tom, como sempre, foi logo para o lado oposto para o qual elas foram. Andou uns 100 metros até resolver subir numa frondosa árvore. Viu de relance, mais ao alto, um pássaro saindo do ninho para depois voltar, com folhinhas secas e arbustos para implantar no ninho cheio de ovos. Viu também uma enorme colmeia, logo abaixo do ninho. Perguntou-se como o pássaro sobrevivia ali.
Tom quase caiu ao ouvir coisas chacoalhando e alguém dizendo com uma voz muito estranha:


Calor, calor – ia dizendo a voz, cada vez mais alta, parecendo se aproximar – Está por aqui.


Após se arrumar, olhou para os lados. Ao longe, via as crianças correndo como se tivessem acabado de fugir da prisão. Elas não poderiam ter dito aquilo. Estavam longe demais.


Ora, Ora. Lanche – essa palavra soou estranhamente nos ouvidos do garoto –, afinal. Onde está?


Novamente, olhou para os lados. Perguntou, por fim, esperando receber a resposta talvez dos céus:


– Quem está aí? – começou novamente a olhar para todos os lados e para cima também, mas não havia ninguém a vista, mas e se fosse invisível? – Quem está aí? – repetiu o garoto.


Ninguém respondeu.


Droga – resmungou a voz –, agora é que eu morro de inanição – concluiu a estranha voz, baixinha.


O garoto resolveu saiu dali, não estava gostando nem um pouco da situação. Pulou. E quando se arrumou da queda, viu.


Uma cobra de quase 3 metros de comprimento estava na frente dele. O rabo começou a chacoalhar. Ela tinha uma cabeça estranhamente triangular e olhos vermelho-amarelados. Ela se aproximou de Riddle e abriu a boca, mostrando as presas com veneno pingando.


Pare, não vou machucá-la – desafiou, antes que a cobra tentasse dar o bote. – O que você quer?


Não ia mordê-lo, garoto – informou a cobra ao menino, que desconfiou de suas palavras –Você é grande demais. Mas estou morrendo de fome, os moradores me expulsam quando chego perto das casas – concluiu a enorme cobra virando a cara para uma grande casa.


Bem, tem um ninho de pássaro cheio de ovos logo ali, na árvore – e apontou para o galho. Riddle notou que cada palavra que dizia saía estranha, parecia que saía com vários “sss” no final.


Droga – disse a cobra. Resolveu tirar da boca a língua bifurcada – Não consigo subir lá.
Eu vou – e começou a subir, mas logo desceu. – Droga, não posso. Tem uma colmeia lá e acho que as abelhas ficaram furiosas quando eu desci batendo nos galhos. Mas, espere, vou tentar algo...


Riddle e cobra olharam fixamente para o ninho, que logo começou a vibrar violentamente.


Como você consegue? – perguntou, prestando atenção em Riddle, como se pudesse aprender sabe-se lá o que estivesse fazendo.


Riddle não respondeu, nem ele sabia o porquê disso, mas tinha certeza que era um dom muito raro. E ele o tinha. Olhando mais fixamente, o ninho se desprendeu do galho e levitou. Para não deixar os ovos quebrarem, baixou-o até o solo, onde a cobra feliz foi se arrastando.


Obrigado, amigo. Salvou minha vida – disse a cobra, virando a cabeça e acenando com o rabo.


Pela primeira vez, Tom sorriu verdadeiramente. A cobra foi o único ser vivo o qual Riddle se relacionara de verdade até então.


– TOM! Venha para cá, menino. O que faz aí? – a Sra. Cole estava possessa a menos de 50 metros.


Adeus – disse Riddle, acenando e dando uma última olhada no animal que passara a admirar.


Obrigado novamente – respondeu. E recomeçou a comer os ovos de um infeliz pássaro que acabara de aterrisar na árvore.


Ele caminhou lentamente até onde se encontrava o grupo, feliz com o ocorrido da conversa.


– Tom, pelo amor de Deus, o que fazia tão longe? – exasperava a mulher, mas Riddle sabia o que dizer.


– Não passei dos limites – disse, inflexivamente e sabendo que não fez nada de proibido ali. E mesmo que fizesse, e daí?


– Eu sei, querido, mas fique mais por perto, sim? O dono daqui disse que há várias cobras venenosas por aqui – e nisso, olhou assustada para os lados, esperando encontrar uma para obter a confirmação.


– Sim, estive conversando com uma – afirmou ele, mas a Sra. Cole parecia não ter prestado atenção quando respondeu:


– Certo – Sabia que não queria discutir com ele sobre animais que falavam, crianças inventavam cada história... – Vou me deitar um pouco no ônibus. Podem voltar a brincar.


Ela e os outros saíram e Tom foi novamente para longe. Sentou-se à beira de um penhasco de uns25 metrosde altura e começou a olhar para o oceano. As ondas vinham, batiam nas pedras e voltava mas, em um certo trecho do enorme paredão de pedra, havia um lugar onde as águas não batiam e iam mais além. Riddle ficou intrigado. O que estava acontecendo ali?


Ele ouviu novos sussurros e outras cobras estavam ali de seu lado. Riddle perguntou se moravam ali e algumas responderam que há anos viviam naquele lugar, mas que nunca haviam conversado com nenhum humano. Despediram-se dizendo que Riddle era diferente dos outros e que isso era bom. Era bom ser diferente. Era bom ser, naquele sentido, especial.


Essas não foram as únicas cobras que apareceram desde que havia sentado ali. Outras vieram conversando inúmeras coisas, mas saíram depressa de repente. Riddle não entendeu porque saíram assim, até ouvir.


Uma conversa de longe o despertou e virou o pescoço.


– Sei lá. Deve valer muito dinheiro – Dênis vinha falando, todo garboso com a gaita na mão.


Ao ver Tom, deu uma risada como quem dizia: É meu e não seu. Tom se levantou. Amada se aproximou do penhasco e olhou para baixo, dando um grande tremelique no corpo.


– Dênis, olha que alto – e deu mais um tremelique quando se aproximou ainda mais do penhasco.


– É mesmo – então, olhou para Riddle. – Tom, se eu te empurrar, em quanto tempo você se arrebenta nas pedras?


Amada riu com gosto, provavelmente estava imaginando a cena. Então disse maliciosamente:


– Não se preocupe, Tom. Ninguém sentiria sua falta – sussurrou ela, olhando para os lados.


Os dois riram mais ainda. Vendo que Riddle nada disse, Dênis, irritando-o, perguntou de novo:


– Se eu te empurrar, em quanto tempo você se arrebenta nas pedras?


Riddle avaliou seriamente a pergunta e por fim disse:


– Quem sabe – deu uma volta até ficar de frente para os dois, agora na beira do penhasco – a gente descobre agora!


E, com uma força incomum, empurrou os dois.


Os gritos foram gélidos e pavorosos, mas Tom sabia que havia funcionado. Pulou também. Ele estava flutuando a meio caminho das pedras e os dois estavam logo abaixo dele. Ele fez os dois pararem de cair e desceu até o nível deles.


– Ora, vejam. Uma caverna – e apontou descontraidamente, como se fizesse isso todo final de semana. Amada tinha os olhos fechados e Dênis tremia olhando para as ondas um metro abaixo dele. Mas ainda gritavam. Tom nada fez para fazê-los calar. Parecia que os gritos o deixavam mais forte.


Ele os levou até o mais fundo interior da caverna e tocaram o solo. Até ali, a água não chegava.
– T-Tom, T-Tom. O q-q-que está aconte-tecendo? – Amada tremia da cabeça aos pés. – Por que não caímos e morremos?


– Vocês não morreram porque eu não deixei. Por enquanto... – respondeu ele, sorrindo alegremente.


– Seu, seu, esquisito. Tentou nos matar, é? ABERRAÇÃO! – e Dênis avançou com os braços erguidos.


– Pega ele, Dênis, pega ele – gritava Amada apavorada com toda aquela estranha e rústica situação.


Mas Dênis não chegou nem a um metro de Riddle. Ele se estacou a meio caminho e permaneceu imóvel, os olhos girando nas órbitas e espumando pela boca, até cair e começar a gritar loucamente. A dor era tamanha que Dênis urrava tão alto que o garoto achou que poderiam ouvir, mas isto não aconteceria.. Ele se debatia contra o chão, segurando o peito.


– Seu malvado, perverso – e agora Amada investiu. Agarrou uma pedra e jogou na direção de Riddle. A pedra se estacou no ar e caiu. Agora, era a vez de Amada cair e começar a berrar. Durante 20 segundos, talvez os 20 melhores segundos da vida de Riddle, seus inimigos estavam no chão, sentindo extrema dor. Ambos se contorciam tanto que começaram a se arranhar no chão de pedra.


– Me dêem seus brinquedos – rugiu o garoto, com um terrível eco distante ressonando nas paredes da caverna. – AGORA! – vociferou Tom Riddle, estendendo a mão para eles.


Com dificuldade, Amada e Dênis deixaram no chão o dedal e a gaita. Pararam de se contorcer, mas suas vestes na parte dos braços estavam com sangue. Ficaram caídos no chão, soluçando. Havia extremo prazer na alma de Tom. Era visível a sua alegria.


– Gostei desse lugar – suspirou, mais falando consigo do que com os caídos. De repente, olhou para a parede de pedra e sentiu um estranho vento vindo por uma fresta na parede. – Vamos voltar.


Os dois se levantaram, se agarrando na parede de pedra.


– Ah, mais uma coisa: não digam nada a ninguém sobre o que houve aqui – começou ele. – Se vocês contarem... – ameaçou, mas não seria necessário dizer o que aconteceria se o desobedecessem.


Eles apenas concordaram com a cabeça, o que foi suficiente para Riddle. Eles novamente levitaram e saíram da caverna, em direção ao alto. Chegando lá, Riddle disse:
– Logo, logo alguém vem para cá. Deixem que eu falo e concordem com tudo, entenderam? – ordenou.


– Sim – respondeu Dênis, que machucado recomeçou a tremer.


– Tá – concordou Amada, acenando a cabeça de leve tamanha era a sua dor. Riddle sorriu ao vê-los daquele jeito.


E não deu outra, 15 minutos depois vem a Sra. Cole com um desconhecido.


– Tom, Dênis, Amada. Até que enfim os encontramos. Onde estiver...? MEU DEUS, VOCÊS ESTÃO SANGRANDO! O QUE ACONTECEU? – vinha dela aquela expressão que só ela sabia fazer quando olhava para eles: como se a morte estivesse parada na sua frente.


– Sra. Cole, nós estávamos aqui vendo as pedras e resolvemos ir mais adiante para vermos melhor a praia – disse Riddle, que planejara tudo e sabia exatamente onde iria chegar.


– Vocês foram para aquele lado, onde é plano? – perguntou o homem, apontando para uma extensa área de praia e árvores.


– Sim. Dênis, Amada e eu resolvemos brincar numa caverna ali embaixo... – confirmou Riddle. Ele era tão convincente.


– Na caverna? Ah, sim, tem uma logo ali embaixo mesmo, de vez em quando eu vou lá... – e por sorte o homem confirmou o que ele dizia. É claro que Riddle estava falando de outra caverna. – Mas por que eles se machucaram? – perguntou desconfiado o homem, que parecia ser o dono do local. Era, de fato, o dono daquelas terras por onde estavam.


– Ora, eu me protegi – começou ele, parecendo incrivelmente inocente diante dos dois adultos que o escutavam. – Amada e Dênis entraram com tudo na caverna. Ouvi dizer que aqui tem cobras – era tudo bem planejado mesmo. – E depois – continuou – eu ouvi eles caindo e quando cheguei lá, eles disseram que caíram naquelas pedras lisas. Só fomos lá para explorar o local, é muito bonito. Queria que eles se descontraíssem, pois Amada chorava dizendo que tinha medo de cobras aqui no campo. Dênis disse que não deviam ter cobras na caverna, o que era quase certo, pois o mar batia ali perto – cada palavra que Riddle inventava, o homem apenas acenava com a cabeça. Aparentemente, isso de fato ocorria em outra caverna. – Mas ainda assim eu fui com cuidado, por isso não me machuquei. Avisei-os de que poderia haver outros tipos de animais perigosos lá dentro, mas não me escutaram. E deu no que deu, caíram e se arranharam... Sorte que não havia nenhuma cobra lá...


– Você fez bem, Tom. Eu o avisei sobre as cobras, sabe, Sr. Cartwright, aquelas que você me falou? – a Sra. Cole parecia mais calma quando percebeu que pelo menos não foram cobras que fizeram os dois garotos sangrarem. Ela desmaiaria só de imaginar tal situação.


– Sim, senhora. Bem, garotos, acho melhor eu colocar algum curativo nos seus braços – concluiu Cartwright.


– Sim, acho bom também – concordou a Sra. Cole, pegando um lenço e enxugando a face molhada.


Após os curativos, era hora de ir embora. O Sr. Cartwright se despediu das crianças, sendo que algumas estiveram ouvindo suas histórias e de seus filhos dentro de sua casa, da Sra. Cole, de Jivago, o motorista, e por fim de Tom Riddle, o garoto aventureiro do orfanato:


– Adeus, garoto – disse o homem, olhando em seus olhos. – Você foi muito inteligente ao entrar com cuidado na caverna. Espero que tenha gostado daqui – e estendeu a mão para o garoto.


– Gostei, sim – apertou a mão do homem e, ao se virar, disse por fim, olhando para o mar onde logo acima ficava o penhasco e a caverna embutida que ele não enxergava, mas que sabia que estava ali:


– Nunca vou me esquecer desse lugar.


Então, subiu no ônibus cheio, sentou-se no conhecido lugar ao fundo e ficou feliz de relembrar tudo que havia acontecido. Ele era mais do que especial, ele podia falar com cobras. Talvez fosse algum tipo de pessoa do outro planeta que veio para cá com uma missão. Qual? Ele não saberia dizer ainda.


Mas o caso é que todos eram anormais ao seu ver, eram diferentes demais e ele os desprezava por isso. Ele era especial, não fazia parte do grupo daquela “gentinha” e tampouco nunca quis ser. Elas o enojavam com suas crendices. Aquele jeito estranho de falar, olhar, tocar, era demais para ele. Não suportava tanta frescura para cima dele. Velhas que vinham ao orfanato e não faziam nada mais do que agarrar suas bochechas e chacoalhar. Pior era quando insistiam em colocar a boca em seu rosto. Aquela baba nojenta de velho que nunca escovou os dentes. Sem falar também quando o beijavam no ouvido e insistiam em sugar o ar de dentro, deixando um estalo incômodo zunindo na cabeça. Como sentia vontade de retribuir aquele estalo dando um bom tapa na orelha dessas pessoas e deixá-las bambas por um bom tempo. Riddle não aguentava mais e só o fato dele ser especial o deixava em pé e o impedia de sair daquele lugar.


Aquele lugar que não seria o mesmo depois de hoje, pensou. Ele agora percebia coisas que ainda não havia percebido antes. Ele podia fazer coisas, não havia nenhum limite desta vez. Estava voltando com duas coisas novas seguras em seus braços. E não podia esquecer, obviamente, de guardar seus dois novos troféus onde já havia um: no armário de seu quarto.

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