AS VOZES DE NOVO



Se no verão as temperaturas já pareciam amenas demais para o gosto de duas brasileiras na Inglaterra, o outono também não as agradou. Entretanto, a paisagem da estação era fascinante e todas aquelas folhas amarelas e avermelhadas cobrindo os pés das árvores tinham o poder de impressionar qualquer um.


            Foi depois de uma aula de Trato de Criaturas Mágicas com o meio-gigante Hagrid, que Cecília, Valentina e Hermione se reuniram nos limites da Floresta Proibida, enquanto assistiam calmamente os alunos tentarem atrair aos Testralios invisíveis com pedaços sangrentos de carne.


            —Não vou mentir para você, Tina… Não ouço nenhum ruído que se pareça com vozes humanas saindo dos canos enquanto eu tomo banho… Você ouve, Hermione?


            Hermione fez que não com a cabeça, parecendo um pouco sem graça em ter que admitir que não tinha nada a acrescentar à teoria de Valentina.


            —Mas vocês acreditam em mim quando digo que as vozes estão cada vez mais nítidas, não acreditam? – perguntou Valentina, um tanto exasperada.


            —Sim, claro que acreditamos… Mas, ninguém mais ouve nada? – perguntou Lia. E reconhecendo o olhar irritadiço da amiga Sonserina, acrescentou – Pelo amor de Deus, Tina, você precisa checar isso! Fale com a sua amiga, a Pansy! Talvez ela ouça alguma coisa…


             Valentina não sabia se achava graça ou não do comentário de Cecília. Sua relação com os sonserinos ficava, se possível, cada dia pior. Ela não tinha amigas com quem conversar no dormitório feminino, uma vez que o fato de andar constantemente com duas alunas da Grifinória (uma delas nascida trouxa) fazia dela uma incompreendida na casa verde e prata. A incompreensão aos poucos foi se tornando motivo de vergonha, mesmo levando-se em conta que Valentina esteve ganhando inúmeros pontos para a Sonserina através de seus rendimentos em sala de aula.


            —Não tem graça. – a garota retorquiu. – Se eu pudesse, pediria ao Snape para me transferir de Casa. – ela continuou, emburrada.


            —Não seja estúpida, Alves.


            As três se viraram e deram com Draco Malfoy, parado diante delas.


            —Snape jamais permitiria uma coisa dessas. E eu também não consigo imaginar porque alguém gostaria de deixar a Sonserina! O erro está que você não sabe escolher as suas companhias… – ele disse, em tom irritantemente paciente.


            Cecília tossiu, como que para chamar atenção para sua presença e para a de Hermione.


            —E não adianta tossir, Monfort.


            —Não adianta tossir? Eu engasguei! Como você pode incentivar minha amiga a andar com as meninas da Sonserina, Malfoy? Elas parecem trasgos! Seria uma péssima influência!


            —Se esta é a questão, não haveria diferença alguma, a meu ver. – ele retorquiu, deixando Cecília e Hermione boquiabertas com a ofensa.


            —É porque você é míope, Malfoy! Só pode. – disse Valentina, em resposta. – Um míopeirritante! Quem foi que te chamou para participar da conversa?


            —Eu não preciso que você me chame. É apenas estúpido você acreditar que um barulho nos encanamentos da ala da Sonserina sejam audíveis na ala da Grifinória, Alves!


            —Falou o encanador, agora. – ela implicou, depois de alguns segundos de ponderação. Draco realmente tinha razão neste ponto. – Eu estava… apenas… checando com elas. Mas realmente é…


            —É… – ele continuou, aproveitando o gaguejo da garota com um certo divertimento.


            —É pouco provável… que elas possam escutar… o que eu estou escutando. – sua voz foi morrendo gradativamente.


            —E o que você está escutando? – Draco se aproximou, tomado por uma curiosidade repentina.


            Valentina abanou a cabeça, como que para afugentar alguma idéia.


            —Ora, Malfoy, não é da sua conta!


            —Nós pensamos que talvez pudesse ser mais um basilisco. – disse Hermione cortante.


            Draco virou-se para ela com uma expressão desconfortável pendurada no rosto.


            —Outra estupidez.


            —Eu não sei. – Hermione continuou. – Mas achei que você saberia se fosse outro basilisco.


            —Eu saberia. – ele respondeu, sério. – Saberia sim. – em seguida se voltou novamente para Tina —Mas se você está ouvindo sons vindos do encanamento eu vou te fazer o favor de perguntar às outras meninas se elas também ouvem. Já que você tem essa dificuldade de se enturmar, essedistúrbio de comportamento…


            Valentina imediatamente levou a mão ao bolso das vestes, mas antes que ela pudesse levar o ataque adiante, Malfoy se virou e com um sorriso de divertimento voltou para a companhia de Crabbe e Goyle.


            —Eu só não o enfeitiço porque não ataco ninguém pelas costas! – rosnou Valentina, para as outras duas.


            —Sei. – respondeu Cecília, recebendo um olhar divertido de Hermione.


            —O que? O que foi? – continuou Valentina, parecendo ainda mais irritada.


            —Nada, ué. Realmente é muito feio atacar pessoas pelas costas, Tina. Concordo plenamente… – respondeu Lia, cinicamente. – Mas, pelo bem ou pelo mal, o Draco vai acabar sendo de alguma serventia, não? Se ele conseguir alguma informação relevante, passe pra gente…


            —Vou passar. – ela respondeu, entre dentes.


            —E não se esqueça de agradecer.


            —Agradecer?!


            —Sim. Aposto como ele ia adorar ganhar uns beijinhos em recompensa por te passar informações valiosas…


            Lia e Hermione gargalharam furiosamente, e embora Tina tivesse ficado com uma cara muito feia na hora, acabou se rendendo e rindo também.


            —Sério, ele te adora, Tina! – Hermione disse, chorando de rir.


            —Parece que ele terá um problema então. – Tina falou, rindo, —Porque eu não aceitaria ele nem que fosse o último homem do mundo.


            Alguns suaves minutos de risadas se passaram quando elas resolveram voltar para dentro do castelo e comer alguma coisa antes da aula de Transfigurações entre Grifinória e Lufa-Lufa. Sonserina teria Runas Antigas com a Corvinal.


            Harry e Rony se juntaram a elas e quando Tina ia se dirigindo justamente para a mesa da Grifinória, uma voz feminina a chamou.


            —Alves?


            Era Pansy Parkinson junto de Emilia Bulstrode.


            —A gente pode falar um pouco com você? – e lançando um olhar de desprezo para o pessoal da Grifinória, adicionou: —a sós.


            Tina concordou e foi com as duas para a mesa da Sonserina. Se sentaram juntas numa das quatro pontas das mesas, onde não havia ninguém para escutá-las.


            ­—Vocês podem me chamar pelo meu primeiro nome. – ela disse, e reparando na cara de surpresa das duas, continuou: —É sério, não gosto que fiquem me chamando de Alves. Podem me chamar até de Tina, se quiserem.


            Não muito acostumadas em chamar pessoas sem intimidade pelo primeiro nome ou apelido, as duas concordaram sem jeito com a cabeça e Pansy falou:


            —Draco nos contou que você vem escutando sons estranhos no banheiro das garotas…


            Valentina sentiu sua expressão se contrair. Que raiva ela sentia de Draco, espalhando as notícias por aí, muito provavelmente no tom de voz de quem dizia que ela era uma desequilibrada mental.


            —Sim…


            —Bem. – Emilia continuou, parecendo muitíssimo sem graça —A gente veio te procurar porque também temos escutado sons parecidos com vozes no banheiro.


            As três se entreolharam em silêncio. Valentina ainda não tinha muita certeza se deveria acreditar nelas. Poderiam estar falando aquilo apenas para lhe pregar uma peça.


            —Vocês estão falando sério?


            Emilia e Pansy concordaram juntas com acenos da cabeça. Tinham a expressão preocupada e séria, o que garantiu a Tina um pouco mais de confiança.


            —Bem, é legal saber que eu não sou a única. Já estava começando a achar que estava ficando maluca.


            —Não está. – Pansy falou. ­—É um som alto, como se houvessem pessoas conversando dentro dos canos, não é?


            Tina concordou.


            —Parece que pessoas vão sair pelas paredes. – Emilia estremeceu.


            —Desde o final do ano passado que escutamos essas vozes.


            —E isso é só no banheiro das garotas? – Tina perguntou.


            —Na verdade, alguns meninos também já escutaram. – Emilia disse —Mas você sabe como são os garotos, eles não prestam atenção em muita coisa.


            As três riram juntas.


            —Malfoy deve ser um deles. – Tina observou.


            —Por que? – Pansy perguntou, interessada.


            —Porque ele me zoou muito com esse assunto hoje, antes de ir falar com vocês. – declarou, mal humorada.


            Nenhuma delas falou mais nada pelos segundos que se seguiram. Pareciam pensativas e elaboravam explicações próprias para aquelas vozes misteriosas, mas cada explicação era mais absurda que a outra.


            O sinal que indicava o início das próximas aulas tocou, fazendo as três se sobressaltarem e pegarem suas mochilas.


            —Bem, falem comigo se vocês escutarem mais coisas estranhas. Acho que vai ser interessante nos mantermos informadas. – Tina disse, colocando a mochila nas costas.


            E diante do comprometimento das três em se comunicarem, pela primeira vez elas partiram juntas para a próxima aula. Tina sentiu-se como um balão. Seu peito inflado com a situação de estar andando junto à pessoas de sua própria casa, finalmente. Durante todo o tempo, ela sempre reparava no fato de os alunos andarem sempre rodeados por seus companheiros de casa, sendo sempre apoiados ou defendidos por eles quando necessário. Ela se sentia deslocada com a situação de ser a única pessoa em toda Hogwarts que se portava de forma diferente.


            Chegou até a sala onde eram lecionadas as aulas de Runas Antigas com Pansy e Emilia em seu encalço. Sentaram-se em trio e esperaram a chegada da professora. Pouco a pouco os alunos da Corvinal também foram chegando e as meninas, uma a uma, foram reparando nas novas companhias de Valentina.


            Cho entrou e olhou de uma forma tão reprovadora que Valetina sentiu as bochechas corarem. Enquanto ela se perguntava se havia tomado a decisão correta, Emilia e Pansy, como de costume, cavavam comentários maldosos para fazer sobre as alunas da casa Azul e Prata.


            Valentina sentiu a sensação de estar cheia daquela confiança e alegria se esvair completamente. Emilia e Pansy eram amigas tão valorosas que Tina sentiu medo de, a qualquer momento, ser apunhalada pelas costas por uma delas. Afinal de contas, foram alguns meses de antipatia mútua e olhares ferinos trocados entre as três.


            A professora entrou pela sala, com suas ousadas vestes verde-ácido, e interrompeu qualquer pensamento com um resumo do que ela havia explicado na aula anterior.


            Depois de muitos momentos incômodos onde Tina pedia que Emilia ou Pansy procurassem por determinados símbolos no silabário, muitas traduções equivocadas e muitas alfinetadas e críticas quanto a sua metodologia de interpretação, Valentina saiu da aula se sentindo exausta.


            —Não importa a que preço, mas nunca mais me sento com estas duas vacas. – ela algaraviou em português, correndo para alcançar Cho Chang pelo corredor.


            —Por favor, não me deixe sozinha com aquelas duas, Cho… – ela disse, aproximando-se dela. – Você precisa me salvar!


            Cho olhou-a com uma expressão um tanto quanto vazia, mas notando a sinceridade cômica que havia no rosto de Valentina, ela abriu um sorriso maldoso.


            —Confraternizar com as amigas da Sonserina não pode ser assim tão ruim…


            —Ora, faça-me o favor… – respondeu Valentina, impaciente, fazendo Cho rir ainda mais. – Vamos embora daqui


            As duas andaram depressa pelos corredores. Não havia mais nenhuma aula para aquele dia, mas talvez a ansiedade em deixar o material nos respectivos salões comunais e sair para tomar um ar fresco fora do castelo as apressassem um pouco.


            —Mal posso acreditar que não temos mais aulas e ainda está sol lá fora! – exclamou Valentina, o ânimo já recuperando espaço em seu humor.


            Cho concordou com a cabeça.


            —Nos vemos lá fora então! – ela se despediu, e Valentina rumou para o Salão Comunal da Sonserina, nas masmorras, já sem medo de encontrar Bulstrode e Parkinson.


            O salão iluminado por aquela peculiar luz verde estava um tanto quanto vazio. Havia um primeiranista sentado no chão mexendo em uma grande caixa de Gemialidades Weasley. Valentina rumou para as escadas que desciam ainda mais até o dormitório das meninas, mas meio passo antes de entrar porta adentro lá estavam elas: as vozes novamente. A garota colou os ouvidos na parede o máximo que pôde, com um certo receio que pudesse ter a orelha devorada por algum monstro sensível ao calor. Ela achou que esta possibilidade não tinha nada de absurda, levando-se em consideração que alguns anos antes, um basilisco se arrastava pelos canos do colégio e petrificava alunos no corredor.


            Os ruídos eram de dar calafrios. Em alguns momentos Valentina tinha a impressão de ouvir frases em inglês, apesar de não conseguir identificar exatamente o sotaque e não distinguir bem as palavras. Ela apertou ainda mais a orelha contra a parede, na esperança de ouvir algo com mais nitidez, mas teve a impressão de que as vozes de repente estavam há um milímetro apenas de distância dela e sentiu um hálito quente no pescoço.           


            Valentina não conseguiu conter o pânico que se apoderou dela e, dando um grito apavorado, se voltou para encontrar seu agressor.


            Uma gargalhada ecoou pela masmorra da Sonserina.


            —Está assombrada, Alves? – perguntou Emilia Bulstrode num tom de deboche que fez Valentina procurar a varinha nas vestes. Suas mãos, entretanto, estavam trêmulas demais para alcançá-las. Pansy Parkinson também ria horrorosamente.


            —Eu estava escutando as vozes, suas idiotas! – murmurou Alves, sem forças para colocar a entonação da raiva que estava sentindo.


            —O que está acontecendo aí embaixo? – ela ouviu Draco perguntar. – Alves? É você?


            Sua silhueta se delineava no alto da escada, rodeada da comum sombra esverdeada.


            —Não se preocupe, Malfoy! Valentina só está um pouco exaltada! – cantou Pansy, ainda em meio a gargalhadas incontidas.


            —Alves, suba já aqui! – gritou Malfoy, por sua vez.


            Valentina sentiu o sangue subir à cabeça. “Suba já aqui”? Que autoridade tinha ele para dar ordens a ela e para decidir quem merecia punição ou não? Ela resolveu subir, mas para dizer umas poucas e boas para o monitor da Sonserina. Seus passos ecoaram na escada, talvez não com a força que ela desejava colocar.


            —Escute aqui… – ela começou, sendo imediatamente interrompida por um gesto teatral da parte do garoto. Ele levantou a mão para o ar, em direção a ela, como quem pede silêncio.


            Mirou-a com seus irritantes olhos azuis cinzentos.


            —Que houve? Você está pálida feito uma parede.


            Valentina olhou a sua volta. A masmorra era rodeada de pedras cinzentas e frias.


            —Como uma parede branca, Alves. Ora, você me entendeu.


            Ela não pôde deixar de rir. Por um segundo, a lembrança das vozes desapareceu em sua mente, e o acontecido se tornou algo banal.


            —Emilia e Pansy me pregaram um susto lá embaixo… – ela disse, ainda sorrindo. Apercebendo-se do que estava fazendo, ela fechou a cara. – Eu, bem… eu estava ouvindo as vozes outra vez.


            Vendo a expressão no rosto de Draco, ela acrescentou:


            —Elas também as ouvem no banheiro! Elas contaram para você que também ouvem, não contaram?


            —Sim. – ele continuou, com um ar de quem não achava aquilo muito relevante. – Você está se sentindo bem?


            Valentina achou a situação engraçada. Ele estava com uma expressão de quem realmente estava preocupado com ela.


            —Claro que estou, Malfoy! Não começa com esse papo! – e com um gesto de quem achava mesmo a pergunta muito estúpida, ela se virou e desceu as escadas novamente. Olhou para cima antes de passar pela porta, e não pôde deixar de sorrir ao vê-lo ainda observando-a lá do alto.

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