::capítulo um::



Capítulo Um
Ou Now I'm Lost Somewhere Lost Between Elvis and Suicide


James reclamou. Ele não via por que eu tinha a necessidade de ir para meu quarto trocar de roupa. Disse que eu estava ótima naquela calça stretch e com a minha camiseta da carinha feliz, que eu somente usava quando sabia que não iria sair. Mas eu, claro, somente ri da cara dele e lhe disse que o encontrava em dez minutos novamente na Casa da Árvore, mas embaixo dela, não dentro dela, porque não iria ralar meus joelhos no tronco enquanto subia. Substituí as calças (eu estava com calor com elas, não podia negar) pela saia branca plissada e a camiseta podrinha pela blusa rosa bebê tomara-que-caia, de seda. E os All Stars ficaram jogados em algum canto do meu quarto, assim que optei por uma rasteirinha prateada.


James rolou os olhos quando me viu saindo do jardim da frente da minha casa. Não esperou eu bater o portão e disse:


- Só vamos ao boliche, caramba. Qual é o seu problema? – a julgar pelos seus lábios contraídos, eu sabia que ele estava irritado. Ultimamente as coisas tinham chegado a esse ponto – Precisava de tudo isso? – analisando-me um pouco mais, completou: - E o seu pai já não a proibiu de sair de casa com esse tipo de saia?


Tentei não me aborrecer. Pensava que, se James se incomodava com minhas roupas, era porque eu estava linda e ele estava com ciúmes. Era engraçado pensar que James tivesse ciúmes de outros garotos quando o assunto era a melhor amiga dele, eu, Lily Evans, entretanto, por meros segundos (antes de me aborrecer de verdade com ele) até mesmo ficava lisonjeada.


Inspirando vagarosamente e rolando meus olhos maquiados, falei:


- Meu pai não está em casa – olhei para minha blusa fofa e quis saber: - E qual é o problema com as minhas roupas?


Andávamos em direção ao meu carro velho, aquela camionete que meu avô tinha me deixado antes de morrer. Eu tinha uma relação com aquela lata-velha que só podia ser doentia. Lembro-me de quando era pequena e íamos para a casa de campo dos pais de mamãe. Vovô e eu íamos para todos os lugares do vilarejo com a Miss Strawberry (porque a camionete era vermelha) e eu vivia dizendo que, assim que tivesse idade para dirigir, só conduziria aquele carro. Ele, como o bom velhinho que era, fez a minha vontade: com dezessete anos, depois que consegui a minha carteira de motorista, ganhei a Miss Strawberry. Àquela altura, vovó morava sozinha em um apartamentinho no centro da cidade, menos de vinte minutos de nossa casa; depois que seu marido partira, decidiu deixar o campo para se empestear com o ar poluído e pesado da cidade. Mas, para a minha alegria, manteve a promessa de seu falecido a mim. Eu tinha orgulho da camionete, mesmo que meus colegas e amigos possuíssem carros bem mais novos e seguros (Miss Strawberry tinha mais de quarenta anos. Antes de eu pensar em sair pela cidade com ela, tive de deixá-la mais de um mês na oficina para que melhorassem sua aparência por causa da ferrugem e do motor lento demais). E James não tinha vergonha de andar nela, então isso também somava à minha satisfação.


- Sei lá. Não vamos para Las Vegas, Lils. Não precisava de tudo isso – a entonação de sua voz misturava hesitação e impaciência.


Sorri, fingida. E depois tirei as chaves do carro da minúscula bolsa. Atirei-as para ele.


- Você dirige – comuniquei, deixando-o instantaneamente feliz.


James ainda não tinha reunido todo o dinheiro necessário para fazer a compra de seus sonhos e ele compreendia a situação de seus avós, que viviam de suas aposentadorias e das 155 libras de James, que trabalhava como entregador de frango frito aos fins de semana, até às seis da tarde. James nunca tinha ligado para isso; não se lembrava como era a vida com seus pais. Sua mãe, dois anos após dar à luz ao único filho, descobrira que morreria de câncer de mama; falecera quando James tinha oito anos. Ele não chorou, somente ficou deitado ao meu lado, na minha cama, contando as estrelinhas na minha parede. Perguntei-me por que ele não conseguia chorar. Falei a ele que se minha mãe tivesse morrido, eu teria chorando. James respondeu: “Eu sabia que minha mãe morreria. Cresci conformado”. E para um menino que aparentava ter problemas cognitivos aos oito anos, percebi que lidar com aquilo era muito para ele. E, naquela noite, tinha prometido nunca mais largá-lo. Infelizmente, quase dez anos após a morte de sua mãe, víamos nossa amizade se corroendo aos poucos. Meio que oxidando e deixando pedaços pelo caminho.


Ao deixar as chaves de Miss Strawberry cair nas mãos de James, sabia que faria com que ele recolhesse a sua irritabilidade para comigo. Não sabia se ele fingia deixar nossos assuntos pendentes jogados em um canto escuro de seu cérebro, ou meramente se esquecia deles, realmente. Não havia indícios de mágoa, entretanto sentia-o se afastar mais e mais de mim, a cada dia.


- Você sabe o que a Emma vai dizer de suas roupas, não sabe? – James me perguntou, ligando o carro com um ronco estrondoso. Disso eu ainda não tinha conseguido me livrar.


- Dane-se a Emma – exclamei, acomodando a minha bolsinha no meu colo, de modo que pudesse pescar qualquer coisa de lá de dentro – Ela é uma invejosa que dorme com metade do colégio. Até parece que ligo para as opiniões de pessoas assim.


Às vezes achava que eu era muito hipócrita. A maior de todas, na verdade. Mas eu não podia contar ao James.


- Hm – ele fez, acho que medindo suas palavras – É verdade.


Não tive reação. Não fiquei feliz ou satisfeita. Apenas fui procurar o meu gloss de framboesa.


Percebi quando meu melhor amigo olhou torto para mim, assim que puxei o espelhinho da minha carteira para mais perto de meus lábios.


James detestava aquela Lily. Não que eu tivesse cem por cento de certeza, mas digamos que setenta por cento, eu tinha. Mas o que eu podia fazer? Eu ainda tentava ser boa para ele, tentava não me aborrecer e tentava esconder a nova Lily de qualquer jeito. Não achava que ele pudesse reclamar muito. Ele mal enxergava aquela Lily mudada. Tudo o que via eram as roupas, mas elas eram somente o fiozinho de todo o novelo de lã. E eu não estava (com certeza nunca estaria) preparada para desenrolar aquele novelo de lã. Se o fizesse, iria magoá-lo, e James era meu melhor amigo. Ninguém (muito menos eu) tinha o direito de machucá-lo. Eu tinha prometido estar com ele para sempre. Não se pode quebrar uma promessa tão grandiosa.


Balancei a cabeça repentinamente, afastando meus pensamentos manchados de minha mente.


Eu tinha o melhor amigo do mundo. Por que não me contentava com isso?


James, em algum ponto do trajeto, ligou o rádio. Não estava prestando muita atenção no trânsito ou no que James me falava. Fazia muito tempo que não me agarrava a essas coisas, mas James relevava, acho que por consideração ou amizade. No todo, ele era um bom garoto. Não era como os caras do colégio que se achavam o máximo e se enroscavam com qualquer uma. Ele era calmo e sempre pedia a minha opinião se fosse sair com alguma garota. Eu era uma espécie de consultora feminina. Eu gostava disso. Gostava quando ele precisava de mim. No entanto, já fazia quase quatro meses que James não tocava no assunto “garotas”, e eu achava que ele não estivesse saindo com ninguém, caso contrário já teria visto a cara da menina, considerando que estávamos sempre grudados (mesmo com todo o clima diferente).


- E então, e a Maddy? – perguntei.


- Não sei. O que quer saber? – ele estava atento no semáforo logo na nossa frente.


- Você nunca mais falou dela, e eu nunca mais a vi com você – fechei o tubinho brilhoso e comentei.


- Ah, você sabe – ele deu de ombros – Todas as meninas começam a ficar chatas depois de um tempo em um relacionamento.


Tombei a cabeça um pouco para o lado.


Será que eu também era chata? Bem, não tínhamos relacionamento amoroso algum, mas, ainda assim, era um relacionamento. Quase um casamento, eu diria.


- E você nunca foi muito com a cara dela, Lily! – ele riu, olhando-me de esguelha.


Senti-me culpada. Nunca gostara de nenhuma de suas namoradas rápidas. Eu me sentia invadida, sabe. Como se todas elas quisessem roubá-lo de mim.


- Ela sempre queria sair com você aos fins de semana – retruquei – Os fins de semana são nossos. Você deveria estar comigo, não com ela, todas aquelas vezes.


James riu. Eu fechei a cara.


- Awn, Lily – ele falou – Se eu não a conhecesse tão bem diria que está com ciúmes.


Você não me conhece bem, James, pensei, E sim, eu estou com ciúmes. Qual é o seu problema?


- Eu não estou com ciúmes – menti, olhando para a rua, encontrando um modo de não perceber seu olhar em cima de mim – Eu só estava colocando as cartas na mesa.


- Sei – ele riu baixo – Você sempre as coloca, não coloca? 


- É – parei de tentar respirar devagar – Mas acho que não fazemos isso há um tempo.


James me respondeu com um silêncio. Eu sabia que estava doendo.


- Vamos dormir na Árvore? – ele propôs. Seu tom estava o mais fofo possível. James sabia me dissuadir.


Meus pais me liberavam de dormir no meu próprio quarto às sextas e aos fins de semana para eu usufruísse da precariedade da Casa da Árvore junto com o James. Nunca reclamávamos dos mosquitos ou do friozinho na madrugada. E por mais que minha mãe sempre entortasse o nariz quando eu lhe dizia “Boa noite, mãe. Vou dormir lá na Árvore com o Jay”, eu amava sair da minha casa para estar na segurança das risadas de James. Minha mãe nunca foi rude, mas não sei se via com bons olhos a filha mais nova dormir no quintal no mesmo colchão que um garoto. Claro que ela adorava o James e sabia o quanto ele era especial para mim, mas vovó tinha a ensinado nunca se misturar com rapazes antes dos dezoito, ou algo assim. Só que mamãe sabia que não tinha o direito de me separar de James, considerando que tínhamos tantas histórias e tantos anos de amizade. Porém nunca deixava de pontuar sua opinião: meninas e meninos não dormem juntos se não têm nada a sério.


Mas eu e Jay sempre tivemos algo a sério. Nossa amizade era a coisa mais preciosa que eu jamais conquistara.


- Não sei – falei.


Não que aquela resposta fosse de toda mentirosa. Não mesmo. Mas não era o que minha vontade queria lhe falar.


Para quem colecionava segredos, uma meia verdade era a coisa mais próxima que eu conseguia dizer ao James. Não que me orgulhasse: jamais. Eu me odiava por não ser verdadeira com ele. Amigos merecem verdades, não merecem?


Ainda que ele fosse do tipo que não admitia uma traição (de qualquer tipo e nível), nunca me pressionava a confessar o que eu fazia quando não dormia ao lado dele, ou quando sumia na hora do almoço, às quintas-feiras. Ele nunca tinha sido de cobrar muito; sempre me dava espaço.


- Ah – ele já estava acostumado a ouvir “não sei” um trilhão de vezes por dia. Já não o perturbava – Para onde vai?


Pisquei desconcertada.


Não, ele não tinha me pegado. Sua mente não chegaria nem perto da verdade que eu lhe escondia.


- Para lugar algum – dei de ombros, tentando recuperar a minha falsa felicidade.


- Por que estou com um pressentimento de que você não está me contando as coisas? – James me inquiriu.


Corei, mas sabia que naquela escuridão ele não podia notar.


- É coisa da sua cabeça, Jay – eu ri sem vontade.


- Será mesmo?


- Com certeza – afirmei.


- Mas se você estivesse me escondendo algum segredo... um dia você me contará, não contará?


Se pudesse tinha contado ali, naquele minuto. Mas ele me odiaria para sempre. Já odiava a Nova Lily, imagine se descobrisse o que eu fazia nas madrugadas de sextas-feiras!


- Sabe, James, existem coisas que não preciso compartilhar com você – a frase tinha doído até em mim.


- O quê? – ele exclamou, alarmado – Então, você está escondendo alguma coisa!


- Sim. Coisas de meninas – dei de ombros – Você não fica me contando as suas coisas de meninos – observei.


- Eu praticamente conto tudo a você – ele me olhou com a testa franzida – Você não pode reclamar.


- Não conta, não – contradisse-o – Nunca contou o que fazia com aquelas meninas com quem namorou, por exemplo.


Não que estivesse interessada em saber, era só um desvio de atenção. Eu estava ficando ótima naquele jogo de esconde-esconde.


- Você nunca perguntou – ele assinalou.


- Eww – fiz, com cara de nojo – Por favor, não me conte.


- Está vendo?


- Eu já sei o que você fazia com elas, não preciso ouvir você me dizer – expliquei.


- Ah. Certo – balançamos a cabeça, juntos. Parecia que fazíamos tudo sincronizado – E você?


- Eu o quê? – quase enfiei o dedo no olho.


- Você e os garotos, Lily – ouvi-o suspirar paciente. Provavelmente muitas vezes ele achava que eu me surpreendia de propósito, só para ter tempo de inventar alguma mentira. O que era mesmo verdade.


- Hum – olhei rapidamente para seu perfil – Nada de garotos – dei de ombros.


- Ah...


Nossas conversas costumavam ser assíduas; agora tinham se transformado em fragmentos, como um livro mal escrito.


x.x.x


Penguin Boliche 19:21h


Ele foi a primeira pessoa que vi. Sorriu para mim discretamente e foi para o lado de Marlene, ajudá-la a escolher uma bola. Ambos estavam perfeitos. Ele com aquela calça justa que eu tanto amava, ela com aquele vestidinho curto, vermelho. Sirius e Marlene formavam o Casal do Colégio. Tinham se falado pela primeira vez com doze anos, se beijado com quatorze e começado a namorar naquele mesmo ano. Estavam juntos há séculos. Não, há três anos. Mas para mim, eram séculos. Sempre felizes e apaixonados, iam de mãos dadas para todos os lugares. James ainda não acreditava que seu melhor amigo tinha se prendido em uma relação por tanto tempo. Marlene, mesmo depois de três anos, era a menina mais apaixonada que eu conhecia. Sempre ficava com os olhinhos brilhando quando falava sobre o namorado. Ganhava pulseiras, colares e cartõezinhos amorosos.


- Pensei que não viriam mais – Emmy me deu um cutucão nas costelas, fazendo-me saltar de susto.


- Ah, o James estava lendo – indiquei o meu melhor amigo com a cabeça, que já estava cumprimentando o Sirius na pista.


- Esse cara tem que parar de ser assim, falando sério – Dorcas se enfiou na conversa, mascando o seu chiclete de tuti-fruti – Ele é lindo, mas meninas não gostam de caras certinhos e esquisitos.


Olhei para James. Ele ria com Marlene.


- Eu gosto do James assim – comentei.


- Você – Emmy apontou para a minha barriga – é outra esquisita.


Sorri feliz. Eu gostava de ser esquisita. Claro que não era mais tão esquisita quanto antes, mas ainda tinha ficado alguns resquícios de esquisitice, provavelmente adquiridos com o James, por tantas horas que ficávamos juntos.


Olhei em volta, quando as meninas foram pegar as bolas. Sirius teclava no blackberry.


Logo em seguida recebi uma mensagem. Eu não precisava adivinhar de quem era. E eu também não precisava adivinhar que ele não estava me convidando para ser sua dupla no boliche.


 


HOJE – 22H


 


Percorri mais uma vez os olhos pelo local. As meninas, incluindo Marlene, estavam fofocando perto das pistas, e James tinha sentado perto do placar central e estava já bebericando um café extra-forte com leite.


Se eu olhasse bem de perto para os lábios de Sirius perceberia um sorrisinho, quase imperceptível. Com certeza Marlene não era capaz de vê-lo.


James e Sirius eram meio inseparáveis também, tal como James e eu. Mas eles faziam coisas de homens e conversavam sobre coisas de homens. Não que meus assuntos com James fossem de menininha, claro que não. Enquanto ele e Sirius davam festas com bebidas alcoólicas e falavam sobre garotas, ele e eu conversávamos sobre qualquer coisa que não fosse roupas e garotas. Mas isso, obviamente, era antes. Agora não conversávamos direito nem sobre o tempo. Nossas conversas minúsculas eram preenchidas com silêncios torrenciais e maçantes. Ultimamente nossas respostas eram nossos corações bombeando e nossas mentes em alta velocidade, ao passo que nossas bocas não imitiam nenhum som.


Eu odiava aquilo, mas se fosse para não perdê-lo, até mesmo pararia de vê-lo todos os dias.


Meu coração pinicou no peito. Eu podia senti-lo fervilhando aos poucos, pronto para ser devorado por um bando de coiotes.


Sentindo-me nervosa e observada, teclei rapidamente e com as mãos tremelicando. Eu não tinha muitas alternativas. Minhas desculpas estavam se esvaindo de meu cérebro.


 


NÃO POSSO. É SEXTA-FEIRA. VOU DORMIR NA CASA DA ÁRVORE.


 


James se aproximou de mim, vagaroso, como uma lombriga preguiçosa.


- Café? – ele me perguntou. Eu neguei, abrigando meu Nokia entre as coxas.


Observei Sirius. Ele sempre conseguia o que queria. E conseguia, ainda mais, fazer com que todos caíssem na dele. Talvez, eu pensei, as possibilidades para ele estivessem apenas crescendo, ao contrário das minhas.


- Vamos jogar? – James tentou outra vez, ainda com o copinho de isopor entre os dedos. O café extra-forte com leite ainda estava fumegando.


Cocei o nariz, fingidamente. Sempre que eu ficava nervosa ou ansiosa demais, coçava o nariz, mas achava que James ainda não tinha descoberto aquela minha falha.


Meus olhos caíram sobre Sirius, que ainda estava apoiado no tampo da mesa de metal como se apenas fosse parte da decoração. Seus cabelos rebeldes e compridos lhe cobriam seus olhos azuis. Eu adorava aqueles cabelos. Quase tanto quanto adorava os de James.


Minhas mãos apertaram insignificantemente meu celular, entre minhas coxas.


Sirius estava de olho no dele, e eu sabia que já tinha recebido minha mensagem, embora sorrisse bobamente para a pista, onde as meninas já tinham começado uma partida.


Lambi meus lábios cheios de gloss e saboreei o gosto amargo com uma cara fechada. Olhei para minhas unhas rosa-bebê salpicadas de pintinhas pink. A pontinha do mindinho estava descascando. Desviei meus olhos, porque sabia que se persistisse, acabaria descascando ainda mais.


- Não quero – respondi, demonstrando certa rudez. Não me virei para James para analisar seu rosto e constatar que eu o magoara com minhas palavras, coisa que eu constantemente fazia.


- Poderíamos jogar contra Sirius e Marlene – James disse em uma voz bastante calma e displicente.


- Eu não quero, James – repeti, agora frisando a “não” – Se quer jogar tanto isso, jogue sozinho.


Agora eu sabia que o tinha magoado. Eu sabia por que tinha visto. James tinha parado na minha frente, bloqueando a minha visão de Sirius e da pista.


Seus olhos ficaram baixos e ele deu mais um gole silencioso no café extra-forte.


Por mais que eu desejasse que ele ficasse o mais longe possível de mim naquele momento, havia uma parte de mim que o queria abraçado em meu tronco, completamente entrelaçado em mim, para que eu nunca o perdesse.


E, assim que ele deu um passo em minha direção (fazendo assim que eu quase chocasse minha testa em seu tórax), eu tremi. Notei que não queria mais o contato. Notei que nem mesmo o queria me rondando, como ele sempre fazia.


- Então, por que você veio, Lily? – ele me confrontou, parecendo aborrecido, mas admirado.


Tirei os olhos de seu rosto inexpressível.


James sempre foi bem mais complacente do que eu. Na verdade, do que todos do nosso grupo. Ele tinha uma alma de criança, que chegava a ser ingênua de tão boba. Mas era daquilo que eu gostava nele. Antigamente, ele me fazia rir até soltar lágrimas de meus olhos. Ele me tinha feito gostar de filmes sangrentos e de terror. Eu tinha descoberto boa parte do mundo ao lado dele.


Dei de ombros, esperando que ele saísse de meu campo de visão central, para que eu pudesse apreciar o jogo das meninas.


James colocou cuidadosamente o copo em cima da mesa ao lado de Sirius, e nesse meio tempo eu pude contemplar a face tranqüila de Sirius observando-me como um cachorro teimoso. James voltou com passos largos e pousou suas mãos em meus ombros, novamente cobrindo-me a visão.


Suspirei, chateada. Encarei-o de modo afiado.


- Por que está bloqueando minha visão, cara? – eu perguntei, cruzando os braços.


James revidou com os olhos também ferinos.


- Qual é, Lil, você nunca foi assim. Tem certeza de que não quer me contar? – sua voz estava mais enfadada do que nunca.


Pressionei meus braços ainda mais. Eu estava perdida. Ele ia me colocar na parede. E seria o nosso fim.


E era por isso que não podia ser verdadeira com ele. Não suportaria que ele me virasse as costas. Não depois de tudo o que tínhamos passado e depois de tudo que construímos. Era uma vida inteira juntos. Lado a lado. Batalhando em igualdade.  


- E por que eu deveria contar alguma coisa? Quem me garante que a criminosa sou eu? – rebati, mantendo a voz baixa, mas ainda assim equilibrada o suficiente.


E foi bem quando ele ouviu a palavra “criminosa” que a postura de James se modificou. Agora ele relaxou os dedos sobre minha pele exposta e seus lábios não estavam mais pressionados. Eles pareciam arrebatados demais para se contraírem.


- Eu não estou culpando você de nada, Lily – ele afagou o lóbulo da minha orelha, discretamente, bem como costumava fazer quando eu tinha, sei lá, quinze anos – É só que... – ele olhou um segundo para meus pés encaixados perfeitamente na rasteirinha prateada e em seguida voltou seus olhos verdes para mim: - Você sabe que eu fico preocupado com você. Você é a minha melhor amiga.


Eu imaginava que Sirius estava observando aquilo e que a raiva crescia dentro de seu peito. Imaginava também que a qualquer segundo ele poderia pular em cima de James e me arrancar dele, como se James fosse um intruso que estivesse tentando abusar de mim.


Mas eu só imaginava, porque eu sabia que não havia nenhum sentimento corrosivo dentro do peito de Sirius, e que ele nunca arranjaria briga com o melhor amigo por minha causa. Sirius sabia que James tinha muito mais liberdade comigo do que ele.


Talvez fosse por isso que aquele negócio começara. Por pura inveja. Por pura competitividade.


- Se afasta um pouco, Jay! – pedi, sentindo minha pele arder com o contato entre nós – Me deixe respirar. Você parece a minha mãe! – e então quebrei aquele elo maravilhoso. Empurrei-o e ele deu alguns passos para trás, observando-me como se eu estivesse com um chicote na mão pronta para castigá-lo.


Mas eu sabia que, por mais que eu o machucasse, por mais que eu o decepcionasse, ele estaria ali por mim. James iria para qualquer lugar comigo, eu pedindo ou não. Ele apenas respirava para me manter ao seu lado, estava claro.


- Você é quem manda – James disse com um tom cortante e arrogante.


Ele caminhou até seu café extra-forte, que pairava ao lado de Sirius (que ainda estava me observando com uma expressão esquisita). Ele comentou algo sobre o jogo com o amigo e James não deixou nenhum olhar decepcionado escorregar para o meu lado.


Instintiva e imediatamente senti-me culpada e arrependida.


Não desejava que ele se afastasse realmente de mim. Não daquele jeito tão bruto.


Mas, pensei bem, era melhor daquele modo. As coisas estavam difíceis. Se eu forçasse ainda mais aquela coisa que eu tinha certeza de que não existia mais, eu a acabaria quebrando de vez e nunca que conseguiria consertá-la.


Passei o resto da noite sentada no banquinho no corredor A, apenas assistindo a todo mundo jogar e bradar, como se aquilo valesse algo real.


Por que apenas eu enxergava as coisas daquele modo tão péssimo, tão ilusório, tão decadente?


Até mesmo Sirius, depois das oito resolveu se enturmar nos grupinhos das meninas e participar.


Sirius era competitivo. Não gostava de perder nem mesmo uma vírgula errada para ninguém. Ele, também, não era muito fácil de lidar. James era muito mais flexível. Sirius fazia aqueles meninos de Upper East Side parecerem maricas.


Às vezes, quando ele sabia que ninguém estava olhando, jogava um olhar para mim, talvez para me tentar mudar de idéia em relação ao lance daquela noite. Eu, entretanto, já tinha decido: não era sempre não. Claro que muitos talvez começaram a aparecer, mas só para James.


Quer ir ao parque? Talvez.


Quer um sorvete? Talvez.


Quer escutar Kings Of Leon? Talvez.


E eu já estava cheia de responder talvez quando queria responder sim ou não. Aquela história de talvez não era para mim. Eu queria começar a ter certeza das coisas, começar a fazer as situações ficarem mais parecidas comigo. Mas a linha tênue que me separava daquele mundo me acertava na cabeça quando eu menos esperava e eu tinha que me afastar. As mentiras estavam cada vez piores. E elas iriam, de fato, explodir em cima de mim.


E eu esperava que, se aquilo viesse a acontecer, James me perdoasse.


Em minha mente, ele totalmente me perdoava. Mas o James da minha imaginação era muito mais dócil do que o da realidade. O James real estava se tornando uma pessoa muito capaz de desvendar pequenas mentiras, e eu duvidava que minhas desculpas fossem amolecê-lo.


Assim que a nova música irritante da Christina Aguilera terminou, eu puxei a camiseta de James do modo mais carinhoso que pude. E do modo mais fingido também, se quer saber.


- Vamos embora? – questionei, falsificando um sorriso feliz.


James estava sentado na mesa de antes, lendo uns e-mails pelo seu Sidekick.


- Ainda são oito e quinze – ele avisou, olhando para o próprio relógio.


- Achei que pudéssemos fazer uma surpresa para seus avós chegando mais cedo – falei, sem ter idéia do que realmente dizer - Podíamos fazer pipocas e assistir a filmes de guerra com seu avô – sugeri com insegurança.


James olhou bem para mim.


- Qual o seu problema? – ele me perguntou – De repente você quer vir para o boliche, e quando chegamos aqui, decide que não vai jogar e depois de menos de uma hora você quer ir embora! – ele me olhava com raiva nos olhos.


Opa, parecia que eu não estava agradando.


Olhei para os dizeres da camiseta dele, que diziam “TENHO ERVA E ESTOU DOIDÃO”, sem saber por que eu estava me sentindo tão solitária àquele momento, mesmo estando perto de James.


- Eu só não estou me sentindo legal – falei, esperando que meu tom soasse como se eu estivesse realmente doente.


- Está enjoada ou algo assim? – de tudo que eu mais apreciava em James era a preocupação dele que me fazia às vezes parar de ser a Nova Lily, mesmo quando eu sabia que ele estava bravo comigo.


- Eu... só quero ir para casa, tudo bem? – sussurrei, evitando olhar para Sirius, que dividia um milkshake com Marlene. Ela estava sentada em seu colo, completamente se sentindo.


E eu estava ali na frente de James quase vomitando.


- Podíamos dormir juntos hoje – falei, tentando jogar com cartas mais altas.


Uma coisa que meu pai sempre me dizia é que com a palavra certa podíamos ganhar quem quiséssemos.


E ele estava certo. Todo mundo é movido a alguma palavra, seja ela boa ou má. Dinheiro, sexo, status. Qualquer coisa que você quiser.


James, porém, me olhou desconfiado.


- Não sei se estou no clima, Lily – ele me revelou, e eu me senti como se ele tivesse apunhalado minha barriga.


- Faz tempo que não dormimos na Árvore – comentei.


- Você disse que não sabia se queria, quando lhe perguntei mais cedo – James disse – O que foi? Desmarcou algum encontro só para ficar comigo? Ou então levou um pé na bunda? – seu sorrisinho triunfante estava me irritando.


Eu ri, só para não fazer feio. Só para que ele não percebesse que me pegara. Que quase me pegara, na verdade.


Mas assim que parei de rir (uma risada desprovida de qualquer emoção), contentei-me em observar seus olhos verdes. Às vezes, quando éramos mais jovens costumávamos nos sentar na Árvore e ficar olhando um para os olhos do outro por um tempão. James dizia que aquilo nos conectava e que ele sempre saberia quando eu mentiria para ele. Parecia que, então, suas convicções tinham ido por água abaixo.


- Eu sei que não estou sendo uma boa amiga – eu disse, encostando minha testa em seu peito largo e confortável.


Não estava ligando para quem quer que estivesse nos vendo. Ele era meu melhor amigo, ok?


Ele desceu seus olhos, analisando-me por inteira.


- Eu gostava quando você usava qualquer coisa para vir ao boliche. E gostava também quando você implorava para sua mãe, quando criança, para ir à escola de pantufas no inverno – James me disse.


- Mas eu não sou mais aquela menininha, James – comentei.


Ele acariciou meu pescoço.


- Queria que fosse, sério – ele confessou, com o tom muito baixo, ao pé do meu ouvido.


- Então? Vamos dormir na Árvore hoje? – perguntei com animação, tentando perceber se com esse meu tom de falsete ele fosse sair de perto de mim. Nossas peles não respondiam bem uma à outra mais como antigamente.


x.x.x


- Mais um cobertor? – James me perguntou, desdobrando alguns cobertores que sua avó cedera a ele.


À noite, mesmo no outono, fazia frio à noite na Árvore. Mas era realmente confortante sentir meu corpo engolido pelo o de James durante a madrugada, como se fôssemos um só. Eu queria experimentar aquela sensação de novo. Eu estava tentando me redimir, tentando ser a Velha Lily.


- Seria melhor, não? – eu ri, e constatei que estava mesmo rindo. Não era um fingimento barato.


James sorriu, acho que também notando meu riso sincero.


Eu estava me sentindo como aquelas menininhas de sete anos que vão dormir na casa da melhor amiga, sabe? Eu sei que era muito ridículo, mas eu adorei a sensação. Era a sensação que eu tinha (ainda que vagamente) da Velha Lily.


- Não acredito que estamos fazendo isso – James declarou, feliz.


Eu tinha carregado o meu travesseiro e o Boo (meu cachorro de pelúcia, e sim eu o usava todas as noites. Parecia que, como eu não tinha mais o James por perto todas as noites como antes, o Boo me ajudava a superar essa coisa), como nos velhos tempos. James me dera Boo quando eu fizera sete anos, de aniversário. Ele era um Husky Seberiano de olhos azuis. Eu fingia que ele tinha os mesmos olhos verdes de James e ficava olhando para ele como fazia com James.


- Não é legal? – perguntei, admirada com aquela sensação de ansiedade em minhas veias.


- Eu sabia que você ia voltar a fazer essas coisas comigo, Lil! – ele exclamou.


- É... faz tempo que não agimos como melhores amigos – constatei.


Enfiamo-nos no colchão de ar de meu pai; eu abracei Boo e James abraçou a coberta. Fiquei olhando para o teto escuro e ouvindo os grilos nas flores.


- Você acha que algum dia você vai voltar a ser a Lily de sempre? – James me perguntou, muito perto de meu ouvido.


Ele me abraçou pela cintura e ficamos ali, respirando ridiculamente enquanto eu pensava em uma resposta que não fosse enraizada em nenhuma mentira.


- Não sei – confessei com sinceridade.


Minha garganta pinicou. Eu queria poder chorar ali, com ele, mas eu sabia que ele não se contentaria em apenas afagar minha cabeça.


Senti-o se esgueirar ainda mais para perto de mim e então ele plantou um beijo em minha testa.


- Boa noite – ele me disse.


Pisquei muitas vezes, sendo engolida por aquele escuro que parecia ter garras.


- Boa noite, James – desejei e entrelacei meus dedos com os dele.


Naquele momento, eu poderia ter adormecido e sonhado com as coisas mais assustadoras do mundo. Nada me faria ter medo com James perto de mim. 




:::

N/a: oi oi. Metade do capítulo já estava pronto, então foi fácil postá-lo hoje. Espero os comentários (:

Nina H.


26/05/2011

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Comentários (2)

  • luise mau

    aiai, que james mais cuti-cuti! *-* e a lily safa demaissss. desde que descobri, não consigo para de ficar com dó da marlene! chifruda, coitada! louca pra saber o resto. bjos

    2011-05-30
  • Caroline Black Malfoy

    UAU! Lily tem um caso com o Sirius? A Lily gosta do James? minha cabeça esta cheia de perguntas e estou morrendo de curiosidade. Eu amei o capitulo, e estou esperando o próximo, bjus ;*

    2011-05-26
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