CAPÍTULO V



CAPÍTULO V

- O que espera que eu faça?
- Que fique preso a este leito, como um entrevado, enquanto você e meu pai saem em campanha pelo príncipe?
- Por que não? - disse Harry.
- Esqueça-se disso!
Rony levantou-se cambaleante da cama e ficou longo tempo parado, como se não estivesse seguro de habitar seu próprio corpo. Sua cabeça girava e ele teve que se apoiar a uma das colunas para arrancar a camisola de dormir.
- Onde estão as minhas roupas?
- Como posso saber?
- Não sabe onde foram guardadas?
- Sinto muito, mas não sei. - A voz de Harry suavizou-se. - Vou levá-lo de volta para a cama, antes que desmaie.
- Ainda vai chegar o dia em que verá um Weasley perder os sentidos!
- Já aconteceu uma vez, lembra-se?
Rony soltou uma torrente de pragas e, com esforço, caminhou até a arca das roupas.
- Sei como se sente, meu amigo. É difícil permanecer impassível, enquanto outros se movimentam ao nosso redor. Mas você não está ainda em condições de suportar a viagem.
- Pois eu lhe digo que estou.
- Gwen afirma que não.
- Que direito tem aquela garota de controlar minha vida?
- O direito de quem o salvou.
Rony passou a mão pela barba, que deixara crescer, e permaneceu mudo.
- Seria uma pena ver todo o trabalho dela perdido só porque você é orgulhoso demais para guardar o leito, até se restabelecer.
- Maldito seja o Campbell que me impossibilitou de sair com meu pai para convocar os chefes dos clãs! Estou ansioso para participar dos debates, Harry!
- Haverá tempo para isso, Rony. Estamos apenas no começo da campanha.
Harry sorriu aliviado, ao perceber que a cólera de seu amigo estava esfriando, e já conseguia raciocinar com clareza. Quanto ao gênio, era muito parecido com a irmã. Pena que Gina não se acalmasse com a mesma rapidez!
- Quero lembrá-lo de que o objetivo de nossa saída é uma inocente caçada na floresta. É isso, pelo menos, que queremos que os outros acreditem.
- Compreendo. - Rony sabia que não estava suficientemente forte para viajar rumo ao oeste. E, se insistisse nesse propósito, iria retardar seus companheiros. - Irão se encontrar com os MacDonald e os Cameron?
- Acredito que sim. Os Drummond e os Fergusson se farão representar por seus emissários.
- Não deixem de falar com o Camerom de Lochiel. Ele foi sempre fiel aos Stuart. E suas opiniões são ouvidas e respeitadas por toda a comunidade.
Rony correu os dedos pela farta cabeleira acobreada.
- Com todos os diabos! Eu devia estar lá, com meu pai, para mostrar a todos que estou do lado do príncipe!
- Ninguém irá duvidar disso. - começou Harry, mas interrompeu-se quando Gwen entrou com a bandeja da refeição matinal.
- Espero que não tenha feito arrebentar nenhum ponto. - disse ela, inclinando-se para olhar o ferimento do irmão.
Rony panhou rapidamente o lençol e cobriu-se.
- Tenha um pouco mais de respeito, menina!
Com um sorriso gentil, ela colocou a bandeja na mesa e depois virou-se para Harry.
- Bom dia, Harry.
- Harry, hein? - murmurou Rony, olhando um e outro com olhos indagadores. - Parece que vocês dois se tornaram bastante íntimos!
- Dispensamos todas as formalidades, enquanto estávamos à sua cabeceira.
Harry vestiu o capote e depois fez um gesto rápido na direção da cama.
- Parece que seu paciente vai lhe dar um pouco de trabalho, Gwen. Ele está fora de si.
- Rony não me dá trabalho algum. - respondeu ela, suavemente, enquanto afofava os travesseiros. - Venha, querido. Você se sentirá melhor depois de ter tomado sua refeição. Mais tarde se quiser dar um passeio pelo jardim, eu o acompanharei.
Harry sufocou uma risada. O pequeno anjo de Rony não tinha o domínio e altivez de sua irmã mais velha, mas sabia fazer-se obedecer.
- Você está em boas mãos. Agora posso ir embora.
- Harry...
Ele colocou as mãos nos ombros do amigo.
- Estarei de volta dentro de uma semana. - Muito fraco para discutir, Rony disse apenas:
- Que Deus o acompanhe.
Harry abriu a porta e saiu para o corredor. Mas parou bruscamente ao ver Parkins à sua espera com um saco de viagem na mão.
- Resolveu voltar para a Inglaterra, Parkins?
- Pelo contrário, my lord. Pretendo acompanhá-lo em sua caçada.
- Que eu seja danado se vou permitir isso! - exclamou Harry, com súbita ira na voz.
Um pequeno tremor no canto da boca de Parkins foi a única indicação de seu nervosismo.
- Eu o acompanharei, senhor.
- Não seja teimoso, homem! Se precisasse levar alguém comigo, levaria Jem. Ele, ao menos, sabe cuidar dos cavalos.
Parkins manteve-se firme.
- Estou convencido de que lorde Potter irá precisar de meus serviços.
- E eu estou convencido do contrário! - explodiu Harry, passando por ele e dirigindo-se para a escada. - Pode ir, agora.
Seu criado não deu sinal algum de retirar-se.
- Vou acompanhá-lo, my lord.
Lentamente, quase certo de não ter compreendido, Harry voltou-se para ele. Sua atitude era respeitosa, mas despida de qualquer sombra de receio ou servilismo.
- Você está intimado a ficar aqui! - ordenou-lhe, com fria precisão.
- Lamento profundamente contrariá-lo, senhor. - respondeu Parkins com voz grave. - Mas tenho consciência de que meus serviços serão necessários.
- Estou com uma vaga idéia de despedi-lo, sabia?
- Essa é uma prerrogativa de V. Excia. Mas eu irei assim mesmo.
- Pois então vá! - Harry virou-se, exasperado, e pôs-se a descer a escada. - Mas vá por sua própria conta. E não se preocupe com minhas botas ou minhas roupas!
Plenamente satisfeito, Parkins sorriu.
- Sim, my lord.
Harry saiu resmungando para a estrebaria. O dia começara mal. Já havia travado duas discussões! Enfiou o grosso casacão, pensando que seria um alívio montar seu cavalo preferido e cavalgar para longe dali. Enquanto caminhava, lançou um olhar a uma das janelas do solar. "Longe dela", quase emendou com raiva.
Depois daquela tarde, Gina passara a evitá-lo, mal lhe dirigindo algumas palavras secas e pedantes à hora do jantar. Não esperava tamanha frieza. Afinal, ela era a única culpada! Atacara-o verbalmente e depois atracara-se com ele num corpo a corpo tão ardente, que a situação escapara ao seu controle. A necessidade de quebrar-lhe a resistência convertera-se numa obsessão. E a custo controlara a ânsia de arrancar-lhe as roupas e apossar-se dela de corpo e alma.
Ela zombava dele, provocava-o, censurava-o... fascinava-o. Que fosse para o inferno!
Chutou uma pedra e desejou poder descartar-se de Gina com a mesma facilidade. Seria ótimo passar uma semana longe dela. Quando voltasse, aquela loucura teria passado. Então, ele a trataria com o respeito devido à irmã de seu melhor amigo, mas com total desinteresse.
Não pensaria, em hipótese alguma, no modo como aquele corpo encantador reagira às suas carícias, nem lembraria o gosto daqueles lábios sôfregos e macios ao calor de seus beijos. E preferia ser consumido lentamente nas chamas do inferno, a recordar com que doçura ela dissera seu nome no instante da paixão. Não, mil vezes não! Poderia até matá-la, se ela atravessasse novamente seu caminho.
Ainda zangado, chegou à estrebaria. Antes que pusesse a mão na aldrava, a porta abriu-se e Gina emergiu do interior. Estava pálida, com os olhos pisados e o corpete do vestido manchado de sangue.
- Gina, meu amor, você está ferida... - Segurou-a pelos ombros e puxou-a contra si. - Quem lhe fez isto?
- O quê?
Cansada e tensa, ela se deixou abraçar e apoiou a cabeça no peito dele.
- Harry... Lorde Potter...
Era difícil até pensar, quando ele a mantinha aninhada em seus braços.
- Onde está o infame que a magoou? - perguntou Harry, desembainhando subitamente a espada.
Gina olhou-o com assombro.
- A quem quer matar? E por quê?
- Por quê? - Ele a fitou transtornado. - Você está coberta de sangue e ainda pergunta por quê?
Confusa, ela olhou para o próprio vestido. Depois explicou:
- Jem e eu estivemos trabalhando a noite toda no parto de Betsy. Ela teve gêmeos, e o segundo potrinho não vinha à luz tão facilmente quanto o primeiro.
- Oh...
- O senhor não está se sentindo bem?
Harry deu um passo para trás.
- Eu estou muito bem! E peço-lhe que me perdoe. Não sabia a razão desse sangue em seu vestido.
Por um instante Gina ficou sem saber o que dizer. Ele havia erguido a espada como se estivesse disposto a enfrentar um exército por ela. E a chamara de "meu amor"... Mas quando conseguiu abrir a boca, as palavras saíram formais, inadequadas:
- Preciso mudar de roupa.
Sentindo-se um perfeito tolo, Harry procurou mascarar sua confusão.
- A égua e as crias estão passando bem?
- Sim, muito bem.
Gina tornou a olhar para o vestido e, de repente, sentiu vontade de rir. Não deixava de ser engraçado: Lorde Potter empunhando a espada, como um anjo vingador, para defendê-la de um inimigo imaginário!
- Chame a isso um acidente, se quiser. - disse, sem conseguir conter um riso nervoso.
- Meu engano a diverte, senhora? - A voz dele soou fria e ríspida.
Ela suspirou.
- Desculpe se o ofendi. Mas estou muito cansada.
Ele fez menção de abrir a porta.
- Não quero prendê-la mais.
"Não pode deixá-lo ir embora zangado", desafiou-a sua consciência. "Não é justo!"
- My lord.
Ele virou-se, o olhar gélido, a expressão indecifrável.
- Sim?
As palavras custavam a vir-lhe aos lábios. Não podia despedir-se dele com um simples voto de boa viagem. Outro qualquer teria se contentado com isso: mas não aquele inglês indomável e altivo!
- O senhor vai partir com meu pai e os homens da aldeia?
- Vou.
- Desejo-lhe boa sorte... na caçada.
Harry ergueu as sobrancelhas. Ela também sabia. Mas não era tão surpreendente assim, tratando-se de uma Weasley!
- Obrigado, senhora!
Ela o fitou com intensidade antes de acrescentar:
- Eu daria tudo para acompanhá-lo!
Antes que ele pudesse refazer-se da surpresa, Gina recolheu as saias e saiu correndo.
Ele ficou parado à porta, vendo-a descer apressadamente para a casa. Era a mais terrível das ironias: estava apaixonado por ela! Acompanhou-a com os olhos e suspirou fundo. Estava apaixonado por uma mulher que preferia lhe enfiar uma adaga no coração antes de entregar-lhe o seu!

A jornada constituiu-se numa longa e difícil cavalgada por campos desolados, convertidos em duro gelo. O vento varria a sua superfície, deixando expostas rochas nuas e arestas congeladas que se assemelhavam às águas crespas de um lago branco. No horizonte, picos cinzentos e fragas escarpadas emergiam sob o peso da neve.
Cavalgaram durante horas sem ver uma única choupana. Por fim, após atravessarem uma ponte arruinada, avistaram uma aldeia construída na encosta de um monte. A chegada de um grupo de cavaleiros era um acontecimento raro naquelas paragens, e todos saíram às portas de suas casas para cumprimentá-los e ouvir as últimas notícias.
Era uma Escócia agreste, freqüentemente estéril, mas onde a hospitalidade imperava em toda a sua amplitude. Ao meio-dia, fizeram uma parada e foram convidados para almoçar na cabana de turfa de um pastor. Havia uma sopa grossa feita de cevada, batatas e trigo, pão ázimo, morcela e cerveja. Todos fizeram honra à mesa, sabendo que a refeição simples constituía um festim naquelas colinas solitárias.
- Receio que privamos o pastor e sua família de seu estoque de alimentos. – observou Harry, quando de novo mergulharam na desolação que reinava fora, rumando para o oeste.
- O proprietário das terras onde trabalham providenciará para que não lhes faltem nada. Essa é a lei dos clãs. - tranqüilizou-o Arthur Weasley.
Ele cavalgava ereto na sela e parecia infatigável.
- Homens como esse proprietário acham que o príncipe Charles fará a Escócia prosperar.
- E os Cameron?
- São também valentes e devotados à causa. Quando os encontrar em Glenfinnan, poderá julgá-los por si mesmo.
- Os jacobitas necessitarão de bons soldados e também de bons generais. A rebelião só será bem-sucedida se o príncipe cercar-se de conselheiros sábios.
Arthur lançou-lhe um olhar penetrante.
- Você traduziu os verdadeiros motivos de meus receios.
Harry olhou em torno. O solo rochoso era um campo de batalha perfeito. Os homens que integravam a comitiva, e os que ali viviam, deviam conhecer suas vantagens e seus pontos fracos.
- Se travarmos batalha aqui, venceremos. E a Bretanha será unificada.
- E o maior desejo ver um Stuart no trono da Inglaterra. - afirmou Arthur. - Mas já vi outras guerras acontecerem. Em 1715 e em 1719. E vi extinguirem-se todas as esperanças de liberdade. Não sou tão velho assim para que meu sangue não se aqueça à idéia de lutar, à esperança de consertar os velhos erros. Mas esta será minha última batalha.
- Você viverá para ver outras, Arthur.
- Esta será a última. - tornou ele a dizer. - Não para mim, mas para todos nós.
Enquanto se aproximavam de Glenfinnan, uma rude, mas imponente fortaleza, a neve começou a descer em rajadas enceguecedoras dos altos dos picos situados a oeste, e o vento a soprar com fúria sobre as águas revoltas do lago. A música da gaita de fole, quebrando o silêncio do céu pesado, coberto de nuvens plúmbeas, anunciou a chegada da comitiva. E, enquanto flocos de neve molhada caíam a seu redor, Harry compreendeu por que um homem podia chorar seus mortos ou lutar ao som daquelas notas.
Uma vez dentro do castelo, os criados se encarregaram da bagagem e cuidaram para que os fogos fossem alimentados. Quando o uísque começou a circular livremente, Donald MacDonald proferiu a saudação habitual, erguendo a taça à altura da cabeça.
- Bem-vindo a Glenfinnan, senhores. A sua saúde, Arthur Weasley.
Arthur bebeu, os olhos aprovando a excelência do uísque de seu anfitrião.
- E à sua, Donald.
Preenchida essa formalidade inicial, MacDonald voltou-se para Harry.
- Lorde Potter, meu velho amigo deixou-o à vontade?
- Inteiramente, obrigado.
- Então o senhor é filho de Mary MacDonald, de Sleatin Skye?
- Neto, my lord.
- Eu me lembro de sua avó, embora fosse apenas um menino naquela época. Era uma linda moça. Foi ela que o criou?
- Sim, depois que meus pais morreram. Eu tinha dez anos então.
- Parece que ela fez um bom trabalho. - MacDonald sorriu. - A ceia será servida logo.
- E os outros chefes? - perguntou Arthur, olhando à sua volta. - Chegarão amanhã?
Um leve ruído de passos no corredor fez MacDonald voltar a cabeça. Então abriu um sorriso.
- Ah! Aí está minha Hermione. Lembra-se dela, Arthur?
Harry virou-se para a porta e viu uma jovem de compleição miúda e cabelos escuros, vestindo um traje formal de veludo azul-escuro, que combinava perfeitamente com a cor de seus olhos. Ela inclinou-se numa reverência e depois adiantou-se para Arthur com as mãos estendidas e um sorriso que abriu covinhas em suas faces delicadas.
- Aqui está nossa moça!
Ele beijou-a em ambas as faces e depois recuou para admirá-la.
- Você cresceu, Mione.
- Faz dois anos que não nos vemos. - disse ela com voz suave.
- Sua filha é o retrato da mãe, Donald. Não puxou a você, graças ao Senhor!
Havia orgulho na voz de MacDonald, quando ele disse:
- Lorde Potter, permita que lhe apresente minha filha Hermione.
Maggie fez outra reverência e estendeu os dedos para Brigham.
- My lord.
- Srta. MacDonald... É um prazer ver um lírio-do-vale nestas rudes paragens.
Ela deu uma risadinha.
- Obrigada, my lord. O senhor é grande amigo de Rony, não?
- Sou, sim.
- Pensei... - Os olhos dela voltaram-se para Arthur. - Seu filho não o acompanhou, lorde Weasley?
- Não por vontade dele, Mione. - Ele sorriu paternal. - Há alguns anos eu era o tio Arthur, lembra-se?
Ela ergueu-se na ponta dos pés e beijou-lhe o rosto barbudo.
- Para mim, o senhor será sempre o tio Arthur.
Arthur afagou-lhe os cabelos e depois voltou-se para o seu anfitrião.
- Rony e Harry tiveram alguns problemas durante a viagem de Londres para cá.
- Vai ter que contar isso, Arthur.
Houve um tremor na voz de Mione, que revelava mais do que ela teria desejado manifestar, quando perguntou:
- Ele foi ferido?
- Já está convalescendo, querida. Mas Gwen achou que ele não estava ainda suficientemente forte para viajar.
- Diga o que aconteceu, por favor! - MacDonald sorriu para a filha.
- Mais tarde, querida. Agora, faça com que um criado acompanhe nossos hóspedes a seus quartos. Poderão lavar-se e descansar um pouco antes do jantar.
- Oh! Desculpe-me. Eu mesma lhes mostrarei o caminho.
Graciosamente, ela recolheu as saias e guiou os visitantes pela escada em caracol. No corredor, ela estacou.
- O jantar será servido dentro de uma hora, se lhes convém.
- Nada me conviria mais. - disse Arthur, afagando-lhe a mão. - Você se tornou uma linda moça, Mione. Sua mãe sentiria orgulho de você. - Ela o fitou com olhos angustiados.
- Tio Arthur... Rony foi seriamente ferido? - Ele sorriu.
- Rony está se restabelecendo bem. Não se preocupe.
Jantaram com elegância, sentados ao redor de uma grande mesa de carvalho, em cujo centro havia ostras enormes, salmão preparado de diversos modos, como também pato assado, aves miúdas regadas com molho de groselha e quartos de carneiro, acompanhados de um clarete precioso. Para finalizar, foram servidos pastéis recheados com uvas passas, maçãs e amêndoas, tortas, pêras cozidas, confeitos.
Mione executava seus deveres de dona de casa com graça e competência. Quando ela deixou a mesa, a fim de que os homens saboreassem sozinhos o porto, havia encantado a todos, de Arthur a seu mais humilde dependente.
A conversa girou então sobre política. Enquanto os criados traziam velas e alimentavam o fogo, debateram e dissecaram as intenções do rei Luís, discutiram o apoio a ser dado aos jacobitas e ao príncipe Charles.
Ali, naquela imponente sala de jantar de um castelo da Alta Escócia, havia o consenso geral de sustentar incondicionalmente o belo príncipe, acreditando que à gloria que ele conquistaria com seus feitos de armas se somaria a glória de um governo bem conduzido.
Falou-se muito e era tarde quando Harry recolheu-se a seu quarto. O fogo ardia na lareira, as pesadas cortinas abafavam os ruídos exteriores. Deitado em sua cama, ouvindo o vento esquadrinhar os postigos das janelas, seus pensamentos, indisciplinados, voltaram-se outra vez para Gina.
Estaria ela repousando tranqüilamente, ou acordada, como ele, a mente em turbilhão, o corpo tenso, a sexualidade alimentada pelas chamas do fogo noturno lutando para libertar-se?
Que estranho fascínio o atraía para aquela mulher que o detestava tanto, quando havia outras mais lindas, indiscutivelmente mais doces e submissas, que o divertiriam na cama ou fora dela, sem se importar se ele era um lorde inglês ou um campônio francês?
Mas por que nenhuma delas o fizera perder o sono, mergulhando-o em doces visões de mãos brancas e esguias, de cabelos cor de fogo, macios como seda? Por que nenhuma delas o fizera inflamar-se à lembrança de um nome, de um rosto, de um bater de pálpebras?
No entanto, não havia nada comum entre eles, a não ser lealdade a uma casa real deposta. E não havia certamente motivo ou lógica para que um homem de sua posição entregasse o coração a uma mulher que encontrava prazer em humilhá-lo!
Mas ele a amava. E dava mais valor a esse sentimento do que à sua consciência ou à causa jacobita!

Esse pensamento o perseguiu em seu sono leve e, quando despertou, nas horas frias da madrugada, ainda o assaltava.
Já estava de pé, quando os portões escancararam-se para dar passagem aos Cameron, seguidos dos MacDonald das ilhas do oeste, dos Mackintosh, dos Drummond e dos outros Weasley de distritos remotos. Por volta do meio-dia, o hall transbordava de gente. A reunião tomou ares de celebração, quando as gaitas de fole começaram a tocar, acompanhando as canções, as rodadas de uísque, as conversas e os risos.
Os convidados haviam trazido presentes: veados, lebres e gamos caçados durante a jornada, que foram servidos ao jantar. Dessa vez, a grande sala, iluminada por quatro candelabros de prata, abrigava um grupo numeroso e variado: chefes de clãs de nobre estirpe ou seus representantes, ricos proprietários de terra acompanhados de seus filhos, rendeiros e agricultores.
A mesa rangia ao peso das iguarias. A cabeceira, havia carne de porco, carne de veado, aves, cabritos e lebres, acompanhados de tortas, de pão, compotas de mel e frutas, e de um fino clarete. Na parte inferior, imensas terrinas de carne temperada, tigelas de pirão grosso enriquecido com folhas de couve e fatias de suculento toucinho, acompanhadas de cerveja. A comida era abundante e ninguém parecia ofendido com a distinção.
Terminado o longo festim, ergueram-se brindes. Bebeu-se à saúde do verdadeiro rei, do Príncipe Galante, de cada chefe de clã, suas esposas e filhos, dos proprietários de terras, até as garrafas ficarem vazias.
Quando, como um só homem, os convivas erguiam suas taças ao rei de além-mar, suas aclamações eram indubitavelmente sinceras. Mas, enquanto a conversa girava em torno dos Stuart e à possibilidade de guerra, Harry descobriu que nem todos os presentes eram do mesmo parecer.
Havia alguns, de temperamento mais exaltado, que desejavam marchar sobre Edimburgo imediatamente, com as espadas erguidas e as gaitas tocando hinos guerreiros. Velhos ressentimentos vieram à tona, e o veneno destilou das chagas reabertas. Banimentos, execuções, casas queimadas, propriedades confiscadas, famílias inteiras enviadas aos campos, em amarga servidão. Era algo que não podiam perdoar nem esquecer.
Em contrapartida, havia outros pouco inclinados a colocar suas vidas e suas propriedades nas mãos de um príncipe inexperiente. Eles já tinham participado de uma guerra e, tendo visto cair por terra seus homens e seus sonhos, mostravam-se céticos.
Cameron de Lochiel, chefe efetivo de seu clã enquanto seu pai permanecesse no exílio, hipotecava seu coração ao príncipe, mas com reservas.
- Se lutarmos sem o apoio das tropas francesas, os ingleses levarão a melhor. Seremos obrigados a recuar e a nos refugiar nas colinas e nas cavernas. Os Cameron são leais ao verdadeiro rei, mas os clãs não podem enfrentar sozinhos as bem treinadas e bem armadas forças do governo. E uma derrota agora quebraria a espinha dorsal da Escócia.
- Que sugere então? - James Weasley bateu com o punho na mesa. - Que fiquemos sentados junto ao fogo com as nossas espadas embainhadas, envelhecendo enquanto esperamos por uma desforra?
- Espada embainhada não pode ser quebrada. - retrucou Lochiel calmamente.
O chefe da tribo MacLeod assentiu, enquanto tomava seu porto.
- Não é de meu gosto ficar inativo, sofrendo todos os males da conquista, mas seria loucura lutar sem a certeza da vitória. Perdemos antes e pagamos um preço alto demais pela derrota.
- Os Weasley apóiam o príncipe até seu último homem. - disse James determinado. - E estaremos do lado dele, quando ele se sentar no trono.
- Sim, companheiro. - disse Arthur com voz controlada.
Ele sabia que James herdara de seu pai a lealdade à causa, mas não a sua prudência.
- Mas Lochiel tem razão. Desta vez, devemos ponderar muito, antes de cruzar espadas com o inimigo.
- Lutaremos como mulheres, nesse caso? - perguntou James com voz meio abafada pela ira. - Apenas com conversas!
O uísque que circulara com abundância, começava a produzir seus efeitos, aquecendo o sangue dos mais exaltados. As palavras de James já haviam provocado murmúrios de reprovação. Antes que os ânimos se exaltassem mais, Arthur falou novamente, atraindo a atenção de todos:
- Lutaremos como chefes de clãs, como o fizeram nossos pais e avós. Eu lutei ao lado de seu pai, James, e do seu, quando éramos ambos jovens. - acrescentou, voltando-se para Lochiel. - Sentirei orgulho de desembainhar minha espada em favor dos Stuart. Mas quando lutarmos, deveremos lutar com as cabeças frias e a mesma habilidade com que manejamos a espada e o arco.
- Ainda não sabemos se o príncipe pretende lutar. - observou um dos comensais. - No passado, demos apoio ao pai dele e isso resultou em nada.
Arthur fez um sinal ao criado para que enchesse novamente seu copo. Depois voltou-se para Harry.
- Você passou algum tempo com o príncipe, quando esteve na França. Diga-nos o que ele pensa fazer.
Fez-se silêncio total, quando Harry começou a falar:
- O príncipe pretende lutar por seus direitos e pelos direitos de sua casa. Disso não há a menor dúvida.
Ele fez uma pausa e lançou um olhar em torno. Todos estavam atentos a suas palavras, mas nem todos pareciam convencidos.
- O príncipe conta com o apoio dos jacobitas, tanto aqui como na Inglaterra, e espera convencer o rei Luís a sustentar sua causa. Tendo a França como aliada, grandes serão as chances de confundirmos os inimigos e depois abatê-los.
- Os habitantes da Baixa Escócia irão engrossar as fileiras do exército do governo. - disse Lochiel, pensando com tristeza nas mortes e na destruição que se seguiriam. - Como o príncipe Charles conta enfrentá-los, jovem e inexperiente como é?
Harry assentiu, reconhecendo a justiça da observação.
- Ele irá precisar tanto de conselheiros prudentes quanto de bons soldados. Mas não duvide de suas intenções. Ele virá à Escócia, erguerá seu estandarte e necessitará que os clãs lhe jurem lealdade, oferecendo-lhe suas mãos e suas espadas.
- Terá ambas as coisas de mim. - afirmou James, enchendo sua taça até a borda e erguendo-a em desafio.
- Se é intenção do príncipe legitimar sua soberania, tão grata aos corações escoceses - disse Lochiel devagar - os Cameron lutarão com ele e por ele.
A discussão continuou noite adentro e nos dias que se seguiram. Alguns dentre os convivas se convenceram de que deviam se colocar à disposição do príncipe. Outros estavam bem longe disso.
Quando os viajantes se despediram dos MacDonald, o céu estava tão sombrio quanto os pensamentos de Harry. Ele temia que muitos contestariam o direito do príncipe Charles ao trono inglês e, que, com isso, os caminhos diante e atrás dele se fechariam, extinguindo para sempre seus brilhantes projetos de unificação.


N/A: Agradecimento especial:
Bianca: A ruiva vai relutar muito sobre seus sentimentos pelo Harry, mas a família realmente caiu nas boas graças do Harry. Beijos.


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