A experiência




Capítulo 3 - A experiência




Dois dias mais tarde, o seminviso parecia ainda pior.



- Hagrid?



- Aqui atrás, professor - veio a voz do quintal.



O professor de Trato das Criaturas Mágicas estava perto do viveiro, o cachorro horroroso a seu lado, e a gaiola apoiada no banquinho, com o seminviso exposto ao sol fraco de inverno, mesmo no horário do meio-dia. Nem pegando sol e ar puro o bicho melhorava de aspecto.



As feridas continuavam tratadas, com curativos à mostra, mas o bicho parecia ter ganhado mais costelas, que estavam a ponto de perfurar sua pele. A falta de alimento trazia um tom opaco a pelos que normalmente deveriam ser lustrosos e sadios.



- Algum progresso?



Desolado, Hagrid abanou a cabeça:



- Infelizmente, só para o pior. A bichinha está que é pura pele e osso. Ela se recusa a comer. Não sei mais o que fazer.



Snape quis saber:



- Normalmente um seminviso dá tanto trabalho assim?



- Até onde eu saiba, não. Mas como eu disse, não há muita informação sobre eles e seminvisos raramente foram considerados bichinhos de estimação. Felizmente, o Ministério não requer permissão para se criar um - só um registro para controle do departamento encarregado. Eu já fiz o registro.



- E ele... - ele se corrigiu - er, ela pode mesmo nos entender?



Hagrid disse, quase em lágrimas:



- Ela me ignora, professor. A pobrezinha vai morrer se continuar assim.



Snape olhou para a gaiola e disse:



- Ela deveria saber que está muito bem cuidada aqui. Você é a melhor pessoa para cuidar dela, Hagrid.



O seminviso olhou para Snape, parecendo curioso, e inclinou um pouco a cabeça. O Mestre de Poções dirigiu-se diretamente ao animal:



-É verdade. Você se daria melhor com Hagrid.



O seminviso voltou a baixar a cabeça, desinteressado. Snape suspirou:



- Muito bem. Eu estou disposto a experimentar, se você realmente quiser minha companhia.



Dessa vez o animal se sentou nas patas traseiras, os olhos negros fixos em Snape. Ele parecia prestes a cair, incapaz de agüentar o próprio peso. Snape continuou:



- Não sei se realmente pode me entender, mas se estiver pronta, podemos ir ao meu aposento.



Hagrid estava emocionadíssimo.



- Vai cuidar dela, professor? Eu sabia!



Snape ignorou-o e continuou se dirigindo ao animal, abrindo a gaiola:



- Eu prometo não machucar você e também jamais manter você numa jaula. Mas você vai ter que se portar com dignidade. Não abro mão de hábitos de higiene impecáveis. Tampouco vou tolerar ataques de temperamento, como recusa a alimentação e similares. Essas são as minhas condições. Se quiser aceitá-las, pode vir comigo.



O animal cambaleou até sair da gaiola, gemendo. Hagrid adiantou-se em pegá-lo no colo, mas Snape o deteve:



-Não, Hagrid. Deixe que ele caminhe sozinho.



- Mas professor, ela não pode andar. Veja: ela mal se agüenta em pé!



O seminviso ofegava e tremia, olhando para os dois. Snape ergueu uma sobrancelha e disse:



- Você está muito fraca. Excepcionalmente, posso carregá-la até sua nova casa? Prometo não fazer isso a não ser que seja necessário.



Um gemido alto e o bicho caiu deitado no banquinho, ao lado da gaiola, ofegando, as costelas se movimentando para cima e para baixo. Aparentemente, a resposta era sim.



Hagrid começou a se movimentar:



- Deixe que eu ajeito tudo, professor. Enquanto isso, deixe eu lhe dizer o que eles comem e como cuidar de suas feridas.



Em alguns minutos, Severo Snape atravessava o gramado de volta ao castelo de Hogwarts com um grande embrulho nos braços, um cobertor de lã estranhamente dobrado. Chegando às masmorras, ele depositou a carga junto à lareira, verificando que a bichinha estava adormecida. Pediu um prato de folhas escuras e legumes cozidos ao elfo que atendeu a seu chamado e deixou-o perto do nariz do animal. Como esperava, logo o bicho saiu do meio das cobertas e foi até o prato. Comeu um pouco, mas o estômago não agüentou o alimento e ela vomitou tudo no chão. Contudo, a bichinha insistiu e comeu tudo que tinha sido regurgitado. Depois se arrastou para as cobertas e voltou a dormir, exausta.



Snape tinha que voltar para as aulas, mas tinha muito que fazer para deixar o mais novo habitante das masmorras mais confortável. Contemplou seu dilema por alguns minutos. Resolveu que o seminviso não ia a lugar nenhum, e foi para a sala de aula. Ele mesmo tinha ficado sem almoço.



Quando voltou aos aposentos, aparentemente o bicho não tinha se mexido e continuava a dormir. Mas o prato de comida estava vazio.



Ele substituiu por água fresca, e quando depositou a tigela no chão, viu que dois olhos negros o observavam.



- Sente-se melhor?



O animal parecido com um macaco limitou-se a observar Snape. O Mestre de Poções percebeu que o bicho ainda não tinha muita segurança se era mesmo querido ou se estava a ponto de sofrer nova rejeição. Portanto, manteve a voz calma e baixa, e os gestos simples.



- Está na hora de cuidar de seus ferimentos. Eu tenho ungüentos e poções para fazê-los melhorar. Com um pouco de mágica, eles não vão arder. Tenho sua permissão para encostar em você?



O seminviso pareceu considerar a questão. Depois olhou para Snape e gemeu baixinho. Bom, esse era o máximo de resposta que ele obteria.



Com cuidado e gestos lentos, Snape espalhou o ungüento nos machucados e nos pontos onde havia falhas de pelo. Depois o animal não agüentou mais o toque de seu novo dono, mancou até a pequena cama feita de cobertor e, com um suspiro, deitou-se e dormiu.



Mais tarde, enquanto Snape corrigia alguns trabalhos do primeiro ano no início da noite, ele ouviu passos abafados no chão. O animal ficou parado na porta que dava para fora dos aposentos, um olhar pedinchão lançado a seu novo dono. Snape instantaneamente entendeu que ele queria ir para fora e cuidar de suas necessidades.



- Você quer sair? Bom, lembra-se quando eu falei que era rígido sobre higiene? Bom, eu não posso ter você emporcalhando os gramados da escola, posso? Portanto, vamos ter que cuidar disso aqui mesmo. Venha comigo.



Capengando, o seminviso seguiu-o até o banheiro e lá Snape mostrou uma caixa de areia num canto do aposento de banho, explicando:



- Este é o lugar para suas necessidades. Eu mesmo limparei diariamente, e até separei um feitiço desinfetante para isso. Use apenas este lugar, entendeu?



Numa demonstração, o animal se dirigiu à caixa e deixou um jato de urina batizar sua nova privada. Apesar de não ter parâmetros para comparar, Snape imaginou que aquele seminviso era mais inteligente do que um seminviso mediano.



Assim que o animal terminou suas necessidades, Snape aplicou o feitiço desinfetante e voltou para suas tarefas. O animal se sentou nas patas traseiras e ficou olhando Snape.



- Você não faz muito barulho, não é?



O seminviso não se mexeu.



- Desculpe se eu achar que você vai se comportar como um cachorro ou um gato. Na verdade, mais como um cachorro. Se você tivesse um rabo balançando para eu adivinhar alguma resposta... Mas você é quietinho, e eu acho que isso é uma bênção. Talvez possamos nos dar bem, no final de contas.



Mais tarde, a respiração profunda e ritmada do seminviso o fez imaginar qual teria sido a última vez que conseguira ter um sono tão profundo. Se é que algum dia ele tivera. Certamente tinha sido antes daquele dia fatídico.



Snape fechou os olhos e apertou os dedos contra o copo de uísque de fogo, o estômago se apertando.



Flashes de imagens e vozes do passado pipocavam na sua mente sem terem sido convidados. Vozes que nunca mais soariam.



- Não, professor!...

- Ah, nova namoradinha, Snape? Virou papa-anjo?...

- Cerquem-na!...

- Professor!!...

- Você não escapa, menina!...



Maldições voando, feitiços cortando o ar, gritos desesperados no dia que se tornou noite, aurores enfrentando Comensais da Morte...



Harry Potter salva o dia mais uma vez...




CRACK!



O copo quebrou-se entre os dedos de Snape, finos cacos de vidro penetrando em sua mão, a dor insignificante comparada à dor interna que ele experimentava no momento.


Ele olhou para o lado, para ver se a seminviso tinha acordado com o barulho. Estranhamente, o animal lutava com seus próprios pesadelos, gemendo, mexendo as patas como se combatesse invisíveis demônios da noite. "É", pensou Snape, "provavelmente ela também é uma sobrevivente da batalha".



Mas não podia deixar a agonia do pobre animal se prolongar, portanto ele fez barulhos altos e finalmente bateu palmas para acordar o bicho sem encostar nele. Deu certo. Meio zonzo e ofegante, o seminviso olhou em volta tentando se situar e deixou seus olhos pousarem no Mestre de Poções. Aquilo o acalmou e deu a Snape um novo olhar a respeito de seu companheiro. Ele repentinamente sentiu um novo nível de conexão com uma criatura que tinha seus próprios demônios para combater nas longas horas da noite.



Dois perdidos numa noite sem fim.










Na manhã seguinte, uma batida na porta deixou Snape intrigado. O seminviso pôs-se sentado, mas seu corpo todo estava alerta, tenso. A tensão de Snape se desfez quando ele viu um corpanzil à sua porta:



- Bom-dia, professor. Como está a nossa menina?



- Bom-dia, Hagrid. Estamos num período de adaptação mútua.



Hagrid ergueu a caixa que trouxe:



- Eu tinha encomendado algumas frutas de terras distantes. Achei que ela fosse gostar. Aqui tem bananas, tâmaras, abacaxis... Ué, onde ela está?



Snape olhou em volta, alarmado. Nada de seminviso. Mas ela não tinha fugido - ela nem podia se movimentar com rapidez suficiente para tentar escapar. Portanto, ela só podia ter sumido.



- Pode aparecer - disse Snape, em voz alta - Ninguém vai machucar você.



Hagrid ficou todo feliz:



- Que gracinha! Ela já está desaparecendo, é? Então ela está melhor do que eu pensei!



- Por algum motivo, sua visita a assustou. Mas eu não entendo a razão, já que ela deve saber que você não vai machucá-la... - ele se deteve, uma idéia na cabeça - Ah, acho que entendo. Ela deve ter achado que você veio levá-la. Pode aparecer - ele ergueu a voz - Hagrid não vai levá-la. Ninguém vai tirá-la daqui.



Um barulho vindo da área da cama fez os dois se virarem. O bichinho colocou a cabeça para fora, saindo de debaixo da cama, tremendo muito. Snape ajoelhou-se perto dele, com movimentos suaves e explicou:



- Ninguém vai tirar você daqui, nem colocá-la numa gaiola. Hagrid é um amigo, e veio trazer belas frutas para você.



O semigigante ficou boquiaberto quando os olhos cheios de terror adquiriram outro olhar e se voltaram para ele. Snape continuou dizendo:



- Agora acho que seria mais educado você sair daí para agradecer a gentileza de Hagrid. Está tudo bem.



Após uma pausa extremamente longa, o seminviso relutantemente saiu do espaço debaixo da cama e posicionou-se atrás de Snape, os grandes olhos negros voltados para Hagrid. Snape insistiu:



- Você pode confiar em Hagrid. Ele jamais vai fazer a mal a você.



Agora foi a vez de Hagrid olhar para a pequena criatura enrodilhada atrás de Snape. Hesitante, ela se aproximou a passos muito lentos e cheirou as botas de Hagrid. Quando ele se agachou para acariciar o seminviso, o bicho sumiu de repente.



Snape deu de ombros:



- Ela ainda está assustada, acho. Desculpe por isso.



- Não se amofine, professor - disse Hagrid - Eu fico imaginando o que terá acontecido à pobrezinha para ela ficar tão machucada e desconfiada. Mas tenho certeza de que isso vai passar. Nada indica que seminvisos sejam tão desconfiados. Na verdade, alguns até especulam que eles sejam telepatas.



- Isso parece muito duvidoso.



- Eu também acho - disse o guarda-caça de Hogwarts - Mas eu tenho a impressão de que os animais são muito mais desenvolvidos do que nós em pegar as emoções dos outros. Digo, eles sabem se uma pessoa não gosta deles, ou se está com medo. Instinto, sabe?



- Isso é algum tipo de sugestão?



- Não, apenas uma constatação. Se eu fosse dar alguma sugestão, eu diria que é mais fácil pegar moscas com mel do que com vinagre. Ditado trouxa - Hagrid deixou a caixa com frutas no chão - Talvez ela goste de um nome. Não pode chamá-la de você a vida toda.



Snape não tinha se dado conta de que o animal não tinha sido batizado.



- Pense nisso - o gigante deu de ombros - Bom, eu tenho que voltar agora. Se precisar de mim, estou às ordens, professor.



- Eu o deixarei avisado, Hagrid. Boa-noite.



Quando Snape fechou a porta atrás de Hagrid, sentiu novamente a sensação de ser observado. O seminviso o olhava com curiosidade do outro lado do quarto. Snape também o observou, as palavras de Hagrid ecoando na sua cabeça.



- Hum, vamos ter que arranjar um nome para você. Hagrid tem razão.



Pareceu-lhe que os olhos negros passaram a ter um brilho diferente.



- Mais uma vez perdoe-me, mas meu primeiro impulso é tratá-la como um cachorro. E só me vêm nomes de cachorros à cabeça. Rex? Fido? Toby?



O animal não pareceu entusiasmado.



- Claro que não, você é fêmea. Que tal... Duquesa? Princesa? Condessa?



Os títulos de nobreza não a impressionaram. Parecia que o interesse estava indo embora lentamente.



- É, concordo com você. Bom... se gostar da sugestão, posso lhe oferecer um nome que me é muito significativo. É apelido de alguém que... me perturba o sono, por motivos que não vale a pena investigar no momento, mas que não é nada do que você supostamente possa estar imaginando... Que tal se eu chamar você de Tessa?



Timidamente a seminviso se aproximou de Snape e roçou sua bochecha na perna dele - o primeiro toque por iniciativa dela.



Aquilo tocou Snape mais do que ele gostaria de admitir.



E foi assim que o seminviso virou Tessa e passou a atender instantaneamente a seu novo nome.




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