Façamos um trato




Capítulo 2 - Façamos um trato





A noite foi passada praticamente em claro, e, deitado em sua cama, de olhos fechados, Snape experimentou uma sensação de peso no peito e um rosto que cismava em aparecer nos olhos de sua memória.



Theresa Applegate.



Ele sequer gostava dela, mas sabia que a moça tinha desenvolvido uma afeição por ele. Apesar de não ser correspondida, a moça tinha continuado a enrubescer quando ele lhe dirigia a palavra, a suspirar quando ele passava, a lançar-lhe olhares românticos quando pensava que ele não estava vendo.



O Mestre de Poções sequer tinha podido conversar com sua aluna de sétimo ano para fazê-la ver que aquela afeição era altamente imprópria e mal-dirigida. Certamente a moça logo esqueceria esses sentimentos quando um de seus colegas lançasse para ela o tipo de olhar que ela aparentemente esperava receber de Snape.



Tudo teria sido um incidente de menor monta, quase corriqueiro numa escola para adolescentes, se não fosse um detalhe inesperado.



Voldemort.



Snape se ergueu abruptamente da cama, o quarto iluminado apenas pelas chamas bruxuleantes da lareira. Ele conjurou um copo de água e sentou-se à beira da lareira, observando o fogo. Os demônios o observavam, calados e imóveis.



Ele adormeceu na cadeira, um ar de sobressalto na qualidade seu sono.



Pareceu-lhe que tinha fechado os olhos por cinco minutos quando já era hora de acordar. Mal-humorado, ele aprontou para comparecer ao café. Não que tivesse fome, mas só de pensar em agüentar outra sessão de chá com perguntas de Alvo Dumbledore o motivava a sair das masmorras.



Foi quando ele finalmente se viu frente a frente com a criatura que o assediava em silêncio.



O bicho estava parado em frente à porta que levava ao corredor. Grandes olhos negros o encaravam por debaixo de uma pelagem longa e sedosa, também negra. O animal não era muito grande, do tamanho de um cachorro médio, e estava sentado nas patas traseiras, observando cuidadosamente a reação de Snape.



Era um seminviso.



Isso explicava por que da sensação de ser observado. Seminvisos podiam desaparecer em situações de perigo iminente. Seu pelo era usado na fabricação de capas de invisibilidade por causa dessa sua peculiaridade.



Snape calculou que esse seminviso deveria estar ali há alguns dias, e poderia ter aproveitado uma brecha para entrar nos aposentos. Não era à toa que ele sentia outra presença em seus aposentos. Ele estava acompanhado.



Seria esse o companheiro a que o Barão Sangrento se referiu? Era o mais provável: fantasmas podiam enxergar criaturas invisíveis.



Ele observou atentamente o animal que se mostrava para ele. Olhando melhor, o pelo não era tão sedoso assim: havia falhas aqui e ali, e marcas de ferimentos na pele. O animal precisava de ajuda.



Mas de onde a criatura teria vindo?



Deixando de lado perguntas que não tinha como responder, Snape usou sua voz mais suave e clara para dizer:



- Eu não vou machucá-lo.



O animal sequer piscou, de olho nele.Os dois se encararam mais alguns minutos e Snape lentamente tirou sua varinha, conjurando um prato com frutas e uma tigela. Sempre com movimentos lentos e bem à vista do animal, ele colocou o prato no chão e levou a tigela até o banheiro, enchendo-a de água e uma poção calmante.



Quando voltou para os aposentos, encontrou o animal parado no mesmo lugar, mas o prato com as frutas estava vazio. Ele colocou a tigela com água no chão e deu alguns passos para trás, esperando.



Demorou quase cinco minutos completos até que o seminviso se mexesse. Ele andava com as quatro patas, mas o esforço era grande. Quando ele se mexia, Snape verificou que ele estava tão magro que as costelas podiam ser contadas só de olhar para ele. Foi direto para a tigela, cheirou-a e pegou-a com as patas dianteiras, levando-a à boca pequena e rosada. Após beber uma grande quantidade de água, ele voltou a seu lugar, ainda olhando Snape.



Não demoraria muito.



Dito e feito. Logo ele começou a cambalear, sob efeito da poção, e aparentemente aquilo o confundiu e assustou muito. Ele tentou andar e tropeçou nas próprias pernas, indo ao chão. Ele olhou para Snape com olhos tristes e sumiu.



O Mestre de Poções não se mexeu. Em menos de cinco minutos, a forma inconsciente do seminviso adormecido apareceu perto da cama.



Snape olhou o bicho, intrigado.



Pouco tempo depois, outros olhos observavam o animal. Olhos pequenos e negros num grande corpo encararam o bicho adormecido no chão com surpresa.



- Como ele chegou aqui, professor?



- Não faço idéia - respondeu Snape - Está machucado e faminto. Pode cuidar dele?



- Espero que sim. Nunca cuidei de um desses antes.



- Apenas leve-o daqui e não deixe que ele volte.



Hagrid ajeitou o animal adormecido nos braços com cuidado.



- Vou cuidar direitinho do pobrezinho. Imagino por que teria se mostrado para o senhor. Eles são muito ariscos.



Snape deu de ombros:



- Talvez quisesse sair, ou quisesse comida.



- O senhor me dá licença? - Hagrid se deitou no chão e olhou embaixo da cama - Ele estava fazendo um ninho aqui. Provavelmente por isso se mostrou: eles gostam de viver em bandos.



- Ia trazer um companheiro seminviso para cá? - escandalizou-se Snape.



- Não, acho que queria constituir seu próprio bando aqui. Com o senhor.



- Francamente! Não me faltava mais nada! - Ele ajeitou a capa esvoaçante com impaciência - Se já terminou o que veio fazer, será que eu agora posso voltar para começar minhas aulas?



- Claro, professor - disse o semigigante - Eu mando notícias.










Severo Snape se esqueceu completamente do episódio durante três dias inteiros até que Hagrid mandasse notícias sobre o seminviso. E elas não eram nada boas.



- Acho que ela não vai sobreviver, professor - disse o guarda-caça, desolado - Poderia vir até minha cabana vê-la?



Com um olhar frio e uma voz mais gelada ainda, Snape disse:



- Acredito que isso não seja mais problema meu. Cuidar do animal faz parte do seu trabalho, não do meu.



- Sim, professor, mas eu preciso fazer tudo que eu puder para salvar o animalzinho. E acho que ela gostou do senhor. Se o senhor aparecesse, quem sabe ela reagiria?



Irritadiço, Snape estreitou os olhos e disse, impaciente:



- Nesse caso, devo fazer o que me pede só para mostrar o quanto está errado, Hagrid. Espere-me depois das aulas na sua cabana.



No final da tarde, os alunos viram as capas negras esvoaçando pelo gramado, indo rumo à cabana de Hagrid num passo rápido e duro. Snape adentrou o local assim que Hagrid abriu a porta e disse, azedo:



- Vamos logo com isso porque outros afazeres me chamam. Onde está o amaldiçoado animal?



Sempre animado, Hagrid sequer deu bola para a irritação do Mestre de Poções e disse:



- Logo aqui dentro, professor. A raça dele é do Extremo Oriente. Ele é sensível ao frio, por isso coloquei a gaiolinha dela aqui perto da lareira.



Snape logo viu a gaiola a que ele se referia. Estava ao lado da lareira perto do horrível cachorro babão e indolente prostrado numa poltrona, com o nome infeliz de Canino. A gaiola estava em cima de uma banqueta reforçada. O seminviso estava deitado ao fundo da gaiola, tão enrodilhado que poderia passar por um pano preto largado dentro da jaulinha.



Hagrid parecia penalizado:



- Olha só para a pobrezinha, professor. Não come, não some, sequer bebe água.



- Por quê? Está doente?



- Acho que está deprimida e sozinha. Quando eu a tirei da gaiola na primeira vez, ela tentou fugir.



- Por que está chamando o animal de ela?



- É uma jovem fêmea. E eu acho que é quase inteligente.



- O que o leva a pensar isso?



- Ela parece entender o que eu digo. Eu disse a ela que ela não poderia deixar a gaiola e que o senhor não a queria de volta. Ele deixou de tentar fugir e entrou em total desespero - Ele olhou para a gaiola - Veja, professor!



Com surpresa, Snape viu que o animal estava sentado na gaiola, olhando para ele. Os olhos eram extremamente grandes e tristes, quase implorativos. O professor mal podia acreditar:



- Está querendo dizer que esse animal consegue entender o que dizemos?



Hagrid deu de ombros:



- Talvez sim, talvez não. A verdade é que pouco se sabe a respeito dos seminvisos. Os bichinhos foram muito caçados por causa de seu pelo. Mas eles são considerados animais de categoria XXXX pelo Ministério da Magia. Não são considerados ideais para serem bichinhos de estimação.



- Eles são perigosos?



- Não, como eu disse antes, são apenas muito ariscos. Ela devia estar há semanas nos seus aposentos, e só depois disso resolveu se apresentar.



Snape continuava observando o animal, intrigado. Certamente, havia mais ali do que se podia dizer só observando. Ele colocou a mão na gaiola e o animal aproximou-se dela, desconfiado, cheirando. Por um minuto, Snape lutou contra o impulso de acariciar a pequena cabeça cheia de pelos lisos e sedosos.



- Ela definitivamente gosta do senhor, professor - continuou Hagrid - Parece que só responde ao senhor.



- E agora, o que faremos?



Pela primeira vez, Hagrid demonstrou tato:



- Er... Professor, o senhor algum dia já pensou em ter um bichinho de estimação?


A pergunta chocou Snape:



- Mas... Isso é...! Absolutamente não! Nem pense em sugerir isso! É um absurdo! Ridículo! Eu, virando babá de um macaco temperamental!



Hagrid fez uma cara triste e disse:



- Professor - e apontou para a gaiola.



A fêmea de seminviso tinha voltado ao fundo da gaiola, e parecia estar deitada com as costas para os dois. Chocado, Snape aproximou-se da jaulinha e virou-a. O animal estava com as duas patas dianteira apoiando a cabeça. Dos dois grandes olhos, duas grossas lágrimas saíam - e um ruído perigosamente próximo a um soluço escapou do fundo da garganta cheia de pelos.



Snape ficou boquiaberto, mas rapidamente controlou.



- Aparentemente, ela pode mesmo entender o que dizemos. Mas ela não emite som?



O gigante abanou a cabeça:



- Ela gritou feito uma banshee tentando escapar, mesmo fraca e machucada. Não acredito que ela possa ter fala humana, como um furanzão. Mas ela parece ser bem animada, se incentivada. Quando não está triste como agora, pode ser bem espertinha.



- Está tentando me convencer a levar esse animal comigo?



Hagrid deu de ombros:



- Sinceramente, eu estou sem saída. Do jeito que a pobre coisinha anda, ela pode morrer de pura solidão. É claro que eu gostaria de salvá-la. Ter um seminviso na escola seria ótimo para as aulas de Trato de Criaturas Mágicas. Mas eu sinceramente não sei como posso ajudá-la. Já fiz tudo o que podia. Sinto-me de mãos atadas. Achei que quisesse ajudar.



- Hagrid, você tem alguma idéia do que está me pedindo?



- Professor - disse ele -, não faça nada que não queira fazer, porque ter um bichinho de estimação é como adotar um parente que nunca vimos. Se o senhor quiser, eu me informo sobre os cuidados com um seminviso criado em casa. Também não precisa resolver agora. Mas não demore muito: do jeito que a coisa anda, talvez ela não tenha muito tempo.



Snape mais uma vez olhou para a gaiola. O animal parecia tão largado, tão irremediavelmente infeliz. Os olhos negros e tristonhos perscrutavam o Mestre de Poções de maneira indolente, uma curiosidade desesperançada.



- Eu voltarei, Hagrid - mas a voz tinha perdido o tom ácido e ferino.

Compartilhe!

anúncio

Comentários (0)

Não há comentários. Seja o primeiro!
Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.