O encontro



O encontro

Quando o professor Longbottom me estendeu um copo d’água, minhas mãos tremiam tanto que quase o derrubaram. Ele havia dispersado a turma, arrancado a notícia do quadro-negro e me levado até sua sala com uma rapidez e agilidade impressionantes, e ainda tinha parado para tirar pontos de dois grifinórios idiotas que riam e faziam imitações da minha cena vomitando no caminho.


  Sentada naquela sala silenciosa, cheia de vasos de plantas pendurados pelas paredes, contudo, o tempo parecia demorar mais a passar. Sem saber o que dizer, tomei um tímido gole de água.


 -“Precisa de um chá contra o enjôo?”


 A pergunta era simples e delicada, mas alguma coisa me fazia sentir um desconforto enorme.


 -“Não quero desmerecer uma boa poção,” – continuou ele – “mas quando se estuda Herbologia por muito tempo acaba-se aprendendo que um bom chá da erva certa é tão curativo e até mesmo mais saudável do que qualquer elixir medicinal.”


 Ele parecia a minha avó falando. Minha avó Margareth, a mãe de  Judith. Apesar de se orgulhar muito da filha enfermeira, vovó Margareth adora tagarelar sobre como um bom chá de ervas caseiro tem efeitos ainda melhores do que “aquelas substâncias artificiais”, que é como ela chama qualquer remédio industrializado. Mas minha mãe diz que vovó só é assim porque já consumiu demais de uma certa planta na forma de cigarro.


 Com a voz fraca, respondi que estava bem. Professor Lomgbottom assentiu e puxou a cadeira para se sentar de frente para mim sem que a escrivaninha estivesse entre nós. Ele é muito jovem, o professor Longbottom. Para um professor de Hogwarts, quero dizer. Deve ser o mais jovem professor que nós temos. E ele até que é bem bonitinho.


 -“Ana, eu sei pelo que você está passando.” – Ele começou, em um tom que parecia que meu segredo havia acabado de ser descoberto e mais ninguém sabia, só eu e ele. –“É uma situação muito difícil, você deve estar um pouco confusa”


 Eu já estava farta de todo mundo à minha volta ter pena de mim.


 -“Ah, o senhor não precisa se preocupar não, professor. Eu não estou nem um pouco confusa. Acho que sou inteligente o suficiente para entender o que significa ser filha de Lord Voldemort. A maior parte das pessoas tem medo e ódio de mim, mas há uma fração daqueles que tem pena. Só que entre essas duas coisas, eu prefiro o ódio e o medo, muito obrigada.”


 Era óbvio que aquela resposta era a última coisa que ele esperava. Mas o que ele queria que eu fizesse? Falasse sobre como eu me sentia acuada e chorasse sobre como nem ao menos meus melhores amigos estavam do meu lado? Não, acho que eu não poderia fazer isso.


 -“Por que não tenta fazer alguma coisa para que as pessoas não sintam tanta pena de você?”


 Tenho que admitir que eu também não esperava aquela pergunta. Ele percebeu isso pela minha expressão e continuou:


 -“Tome uma atitude ao invés de esperar que os outros lhe julguem.”


 Não consegui fazer mais do que encará-lo. Só que dessa vez me lembrei de fechar a boca, o que foi um grande progresso, se você quer saber o que eu penso.


 Eu realmente não entendi o que ele queria dizer com aquela história de tomar uma atitude. Quer dizer, o que eu podia fazer? As pessoas me odiavam por causa dos meus pais biológicos, então nada do que eu fizesse ou dissesse poderia fazer a menor diferença.


 Sabe quem realmente poderia me ajudar a mudar isso? Minerva McGonagall. Isto é, se ela não estivesse sumido completamente dos terrenos de Hogwarts e me largado aqui sozinha. Eu teria dito isso ao professor Longbottom se ele me desse chance, mas ao invés disso ficou lá falando sobre como eu precisava erguer a cabeça e passar a encarar a situação toda com uma atitude mais assertiva. No final de tudo eu só disse: “Ok, professor, valeu mesmo, mas agora eu tenho que correr para a aula de Defesa Contra as Artes das Trevas.” – e eu tinha mesmo, porque o sinal havia acabado de tocar.


 Entre descobrir que tem gente querendo me expulsar de Hogwarts, ser abandonada pela professora McGonagall, vomitar na frente de metade da turma do quarto ano e ser rejeitada por meus melhores amigos, não sei bem como sobrevivi ao resto da semana.


 OPA, PARAÍ! Na verdade eu sei...


 EU TINHA UM ENCONTRO COM TROY DAVIES NO SÁBADO!!!


  


Sair com Troy no fim de semana tinha sido a gasolina que mantivera funcionando meu motor nos últimos dias daquela semana horrível. E me lembrar que Devon não riria dessa minha comparação altamente trouxa simplesmente pelo fato de que eu não podia contar pra ele porque ele estava do lado da Jules naquela história idiota de briguinha tirou um pouco do gosto da coisa. Mas não tinha importância, eles que passassem horas comprando delícias gasosas e sapos de chocolate na Dedosdemel sozinhos, eu não ligo. Eu vou tomar uma cerveja amanteigada com TROY DAVIES.


 Quase não consegui dormir na noite anterior tentando pensar no que seria apropriado vestir, e quando acordei, ainda precisei de mais duas horas para finalmente decidir. Não sabia se seria muito exagero passar delineador nos olhos e brilho nos lábios, então simplesmente vesti meu melhor sobretudo vermelho (sim, para mostrar que, apesar de ser uma sonserina, eu também tinha espaço para a Grifinória no meu coração) e fui.


 Quando cheguei à porta de entrada do castelo, contudo, percebi que toda a minha preparação tinha passado longe de ser suficiente. Esperando ao lado de Troy estavam três dos piores exemplos de ser humano do planeta: Connie Tayford, Tereza Hornby e Victoire Weasley. As três estavam lindamente vestidas e maquiadas, com os cabelos louros – à exceção de Tereza, que é morena – caindo em ondulações perfeitas pelos ombros.


 É claro que o meu cabelo estava todo armado, porque eu sou uma negação com feitiços de secagem, e meu rosto estava lavado, sem uma gota de tinta (pelo menos também não tinha manchas de tinta de escrever, já que às vezes eu me sujo estudando ou fazendo os deveres, o que faz a Connie me chamar de “bruxa-tinteiro”).


 Para a minha sorte, quando eu me aproximei de Troy as três começaram a se afastar. Connie ainda conseguiu sussurrar a palavra “aberração” alto o suficiente para que eu escutasse, mas eu nem me dei ao trabalho de me importar. Eu sabia que ela era afim de Troy desde o primeiro ano, mas também sabia que os dois nunca tinham namorado, então era claro que ela estava lá apenas para demonstrar sua profunda inveja. E sabe, eu bem que fiquei com pena dela quando Troy sorriu para mim. Fiquei com tanta pena que desisti de gritar com ela por ter divulgado ao mundo que eu sou filha de Voldemort. “É isso aí, Tayford, agora você sabe o que é ter gente com pena de você.” – foi o que eu pensei ao lançar-lhe o meu olhar mais carregado de “oh, coitadinha dela”.


 Mal as garotas saíram, quem também passou pela porta foram Jules e Devon, acompanhados por duas colegas nossas do quarto ano, Vanessa Thicknesse e Ayla Marchesini. Jules levou o maior susto ao me ver ali, parada ao lado de Troy e deu uma cotovelada em Devon com força nas costelas. Ele, que estivera o tempo todo em um conversa absorta com Ayla gritou um “AI! Qual é o seu problema?” – até que reparou no que era que ela estava apontando e deixou o queixo cair.


 Eu não preciso dizer que fiquei muito satisfeita comigo mesma por ter reparado em toda essa movimentação sem interromper minha conversa com Troy. Nós estávamos falando sobre como as aulas de Herbologia do professor Longbottom são um tédio, apesar de que eu acho Neville um cara super badass, mas Troy não. Ele ficou realmente surpreso quando eu contei aquela história sobre Neville matar a cobra de Voldemort com a espada de Grifindor que ele tirou do Chapéu Seletor, no meio da Batalha de Hogwarts.


 - “Então, vamos?” – eu arisquei, observando que quase todo mundo do terceiro ano para cima já havia saído do perímetro do castelo àquela altura.


 -“Mas o pessoal ainda nem chegou.” – ele disse, simplesmente.


 O pessoal. Ele estava esperando mais pessoas para irem conosco ao nosso encontro romântico a dois. Alguém precisava contar a ele que quando há mais de duas pessoas, um encontro deixa de ser romântico a dois. Além da história do professor Longbottom matando a cobra do mal, parece que tem mais fatos da vida que Troy desconhece.


 Fui salva do trabalho de perguntar quem mais iria com a gente pela chegada de metade do time de quadribol da Grifinória. Juntaram-se a nós: o batedor Rufus Fowler, o goleiro Henrico McMillan, e a dupla de artilheiros gêmeos Patrick e Alicia McLaggen.


 -“Parece que seremos só nós as mulheres hoje.” – Alicia comentou comigo, abrindo um sorriso com dois ou três dentes de ouro (os originais haviam sido arrancados por balaços).


 Eu murmurei uma tentativa de concordância muito mal articulada, primeiro, porque eu não esperava mais ninguém no meu encontro com Troy, e segundo, porque Alicia tinha os mesmos ombros largos e o mesmo maxilar avantajado do irmão, o que tornava realmente difícil diferenciar um do outro.


 -“Então vamos lá!” – disse Troy, liderando o grupo em direção à porta, onde o professor Longbottom estava recolhendo as autorizações que os pais dos alunos tem que assinar para seus filhos poderem ir a Hogsmeade.


 Quando eu passei com Troy e todo aquele pessoal da Grifinória, o professor Longbottom me lançou um olhar esquisito. Se ele estava tentando me lança um olhar longo e carregado de significados para tentar fazer com que eu entendesse alguma coisa, como muito personagens de romances fazem nos livros, bom, sinto decepcioná-lo, porque eu não entendi nadinha.


  Depois que nos afastamos, Troy contou aos amigos a história do professor Longbottom e a cobra de Voldemort, ao que Patrcik McLaggen soltou uma exclamação de espanto tão intensa que assustou um grupinho e terceiranistas da Lufa-Lufa que passava por perto. Fala sério, eu não acredito mesmo que sou a única que presta atenção às aulas de História da Magia.


 Mas depois que Troy mencionou Voldemort (só que ele não chamou de Voldemort, ele chamou de você-sabe-quem) o clima ficou um pouco esquisito. Tipo, no começo estava todo mundo se esforçando para agir normalmente comigo – ou o mais normal que grifinórios podem agir com uma sonserina –, mas depois da história da cobra, todo mundo ficou quieto, me lançando uns olhares tortos de dois em dois minutos, e de vez em quando olhando para o Troy, como se quisessem saber o que deveriam fazer a seguir. A sorte foi que chegamos rapidinho a Hogsmeade.


 Hogsmeade é um povoado inteiramente bruxo, então todo mundo aqui anda com vestes de bruxo, fazendo feitiços e falando sobre assuntos bruxos no meio da rua. A cidadezinha oferece basicamente três atrações aos estudantes de Hogwarts: a Dedosdemel, que vende todos os doces imagináveis, a Zonko’s, que vende bombas de bosta e coisas assim, e o Três Vassouras, que tem a melhor cerveja amanteigada do mundo.


 Quando chegamos ao centro do povoado, flocos miúdos de neve começavam a cair, se acumulando nos nossos casacos e molhando nossos cabelos. O movimento na Dedosdemel e na Zonko’s já estava no auge, de forma que decidimos ir direto ao Três Vassouras. Bom, pelo menos eu pensava que era para lá que estávamos indo quando Troy sugeriu que “fossemos tomar alguma coisa”.


 Guiados por Rufus Fowler, nos afastamos do centro do vilarejo até uma rua menos movimentada. Virando uma esquina, nos deparamos com uma placa em que se lia “Cabeça de Javali”.


 Nem preciso dizer que o lugar era horrível. Não havia velas suficientes, então o ambiente era todo meio escuro. As mesas estavam todas pegajosas por incontáveis litros de cerveja que haviam sido derrubados  – e nunca limpos – por bêbados descuidados ao longo do que deveriam ter sido séculos de existência do bar. Atrás do balcão, um homem de aparentes quarenta anos, muito mal vestido, servia uma dose de uísque de fogo a si mesmo.


 -“Olha se não é o Rufus e sua turma de leõezinhos!” – disse o homem, assim que entramos.


 -“Fala, Mundungo!” – cumprimentou Fowler. – “Manda uma rodada de Uísque de Fogo para todos.”


 Eu não queria Uísque de Fogo, mas não tive como protestar. Quando o tal do Mundungo serviu as doses, porém, eu fiquei agradecida pela bebida ser tão extremamente alcoólica, porque só uma alta concentração de álcool mesmo para matar os germes que com certeza habitavam aqueles copos imundos.


 Sentamos todos à volta de uma das mesas de superfície pegajosa e por um tempo ninguém disse nada. Até que Alicia escolheu o pior assunto possível:


 -“Então, Ana, como está sendo essa coisa de ser filha de você-sabe-quem?”


 -“Huum.” – eu refleti. – “Um pouco difícil, mas eu vou levando.”


 -“Desculpem o atraso.” – quando me virei para ver quem falava, dei de cara com Victoire Weasley e toda a sua perfeição loura bem atrás de mim. – “As meninas definitivamente não quiseram vir.”


 Por “as meninas”, ela só podia estar falando de Connie e Tereza. Mas como Victoire Weasley podia pensar que Connie e Tereza alguma vez pudessem querer se encontrar comigo, eu não tenho nem idéia. Só o fato de Victoire estar lá já era esquisito pra caramba.


 -“Elas é que estão perdendo.” – disse Troy, afastando a cadeira para que Victoire pudesse sentar-se conosco.


 Ó não! E se eles tivessem me atraído para aquele bar sinistro para me matar? Sério, aquele lugar sinistro era perfeito para um assassinato. Tomei um golinho de Uísque por puro nervosismo e engasguei feio.


 Enquanto eu tossia loucamente, Troy contou pela terceira vez a história do professor Longbottom e a cobra de Voldemort. Impressionante como ele tinha ficado apegado àquilo.


 -“Eu conheço essa história.” – Victoire não se impressionou. – “Meus pais e tios são amigos do professor Longbottom. Vocês sabiam que ele foi criado pela avó, uma bruxa doida que usava um corvo empalhado no chapéu? Ridículo, não é mesmo?”


 Todos riram daquela informação. Eu fiquei pasma ao perceber como alguém tão bonita e popular quanto Victoire Weasley poderia ser tão maldosa. Então ela perguntou, toda animada:


 -“E aí, vocês já contaram para ela?”


 Contaram o que para quem? Eu não estava entendendo nada, mas todos estavam olhando na minha direção, ansiosos. Então Troy explicou tudo.


 Segundo ele, como eu era “extremamente talentosa em magia”, eles queriam saber se eu aceitaria formar uma espécie de grupo de estudos. Seria algo para aprofundar os conhecimentos de todos em magia.


 -“Queremos marcar a primeira reunião para a próxima quarta-feira.” – concluiu ele. – “Isto é, se você aceitar ser a nossa líder, Ana.”


 A simples idéia de que alguém esperava que eu liderasse alguma coisa era absurda. Eu não consigo nem liderar a minha vida para começo de conversa! Mas talvez aquela fosse a oportunidade perfeita de fazer exatamente o que o professor Longbottom sugerira: tomar uma atitude mais assertiva em relação àquela história toda de ser filha de você-sabe-quem e fazer as pessoas pararem de sentir pena de mim.


 -“Tudo bem, eu topo.” – respondi, ao que todos sorriram, animados.


 Logo em seguida, a conversa tomou um novo rumo, passando a girar em torno do quadribol. Mesmo só tendo tomado dois pequenos golinhos do meu Uísque de Fogo, eu já me sentia bastante tonta, tanto que foi um alívio quando alguém sugeriu que voltássemos ao castelo.


 Apesar de ter descoberto um grupo de pessoas que não apenas não se importava com o fato de eu ser filha do Lord das Trevas, como também queria a minha ajuda nos estudos em magia, aquele dia tinha sido incrivelmente decepcionante. Tudo o que eu queria era tomar uma caneca de cerveja amanteigada ao lado de Troy – e somente de Troy – no Três Vassouras. Era para aquilo que ele tinha me convidado afinal, não era? Então, enquanto todo mundo conversava animadamente no caminho para o castelo, eu permaneci quieta.


 Assim, foi grande a minha surpresa quando os grifinórios se despediram de mim no saguão de entrada, mas não Troy.


 -“Eu te acompanho até as masmorras.” – ele disse, enquanto passava a mão pelos cabelos para afastá-los dos olhos, da forma mais charmosa que um ser humano seria capaz de fazer.


 E quando chegamos na porta da sala comunal da Sonserina, ele se aproximou e me beijou.


 Troy Davies me beijou. Na boca.


 Eu nunca tinha beijado ninguém antes, então não sabia muito bem como reagir. Graças a Deus ele não tentou enfiar a língua na minha boca. Se eu já não sei o que fazer com os lábios, imagina com a língua.


 Mas que foi bom, isso foi.


Ai, meu Deus! Será que isso significa que nós agora estamos namorando? EU ACHO QUE VOU TER UMA PARADA CARDÍACA!


 -“Boa noite.” – ele disse, sorrindo todo charmoso.


 Não sei como encontrei voz para responder. Não sei como meu cérebro conseguiu fazer minhas pernas andarem para dentro do dormitório. Só sei que eu tive a melhor noite de sono em semanas.


 


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