Mirflu



Mirflu


Alice entrou no seu quarto e trancou a porta. Helena havia saído com a promessa de voltar no dia seguinte, se a menina resolvesse ir mesmo estudar em Amgis. O pai de Alice ainda não estava totalmente convencido da seriedade da bruxa, mesmo diante de todas as provas que Helena dera. Assim, ele não confirmou nada, mas prometeu que pensaria sobre o assunto e daria a resposta no dia seguinte. Alice dissera aos pais que aceitava sua condição de bruxa e queria conhecer esse novo mundo que, em opinião, era o mundo ao qual realmente pertencia. Mas ela sabia que seria difícil. Sentia que por trás de toda a preocupação que seu pai demonstrava, escondia-se um dos piores medos do ser humano: o medo do desconhecido.


Ela foi até a cama e sentou-se apoiando a cabeça nas mãos e olhou para suas bonecas que estavam todas no chão do quarto, na cozinha e na sala da nova “casa” que a menina criara. Então, a boneca que estava mais próxima, uma barbie loira com um vestido rosa, falou:


-“O que aconteceu, Alice? Você está com um ar tão triste!”


-“Triste não!” – falou uma boneca ruiva vestida de verde – “Está parecendo mais preocupada!”


-“Realmente, estou preocupada, mas triste não, de forma nenhuma. Como eu poderia estar triste, se hoje descobri a explicação para todas as coisas estranhas que aconteceram e acontecem na minha vida?”


As bonecas fizeram cara de espanto, a ruiva tornou a falar:


“O que você descobriu? Pois não está triste, mas algo a impede de estar totalmente feliz, o que é?”


Alice contou sobre a visita de Helena e sobre a hesitação de seu pai em deixá-la estudar em Amgis.


-“Ele demorou mais do que eu para aceitar essa verdade,” - completou a menina – “até mamãe já entendeu!”


-“Isso tudo é realmente muito complicado, mas no fim dará certo, você vai ver!” – disse outra boneca loira, esta vestida de azul.


-“Obrigada, garotas! Não sei o que seria de mim sem vocês!” – falou Alice, com sinceridade.


 A boneca vestida de rosa, que normalmente só pensava em si mesma, perguntou:


-“Alice, você contou sobre o prato que se refez para dar um exemplo de seus poderes mágicos, mas você não contou sobre... eh... nós, não é mesmo?”


-“Não!” – respondeu a garota. A barbie suspirou aliviada.


-“Quem bom! Sabe, eu sempre tive medo do que a sua mãe faria se descobrisse que nós falamos e andamos...”


Alice sorriu. A boneca ruiva, que entre todas era a mais esperta, seguiu com a conversa:


-“Aquela moça, Helena, ela disse onde fica a escola?”


-“Não, ela disse que nem mesmo os bruxos sabem exatamente. ela só contou que eu tenho que ir até São Paulo para pegar um ônibus que me levará até Amgis.”


-“Mas como o ônibus encontra o caminho?” – perguntou uma boneca morena, que ainda não tinha entrado na conversa.


-“Mas isso lá é pergunta que se faça?” – indignou-se a barbie de rosa – “É um ônibus mágico, oras! Ele encontra o caminho com magia! Eu pessoalmente acho que deve ser um ônibus voador...” – e ergueu a cabeça, olhando para o teto como se esperasse ver um ônibus passar voando de um lado a outro do quarto.


Alice riu com o comentário.


-“Isso eu não sei, e talvez nunca descubra, se papai não me der permissão para estudar em Amgis! Eu queria que ele se decidisse logo! Vai ser um longo dia e uma longa noite até amanhã, quando ele me der sua resposta!” – disse ela, deitando-se na cama com a barriga para cima.


As bonecas, vendo que a garota sofria com a angústia, nada mais disseram e voltaram-se para seus próprios pensamentos.


 


O dia afinal não fora tão longo quanto Alice previra. Logo depois do almoço, seu pai lhe comunicou que ele e a Sra. Elsea haviam aceitado que a filha era uma bruxa, e assim sendo, devia ser educada como tal. Naquele momento, uma inesperada felicidade tomou conta de Alice, ela abraçou os pais e eles também se alegraram ao vê-la tão radiante.


Logo em seguida despacharam uma carta para Helena – ela havia deixado uma coruja na casa dos Elsea para que eles pudessem manter contato. Alice estranhou, era a primeira vez que usava o correio-coruja, mas ficou impressionada com a rapidez do novo sistema, já que recebeu a resposta no mesmo dia.


 


            Cara Alice,


 


             Fiquei muito feliz em saber que você vai estudar Magia.


            Conforme lhe falei, vou lhe ajudar a comprar seus matérias. Encontre-me na frente do Hotel Nacional amanhã às dez horas da manhã.


            Um abraço,


 


 


                                                                                                          Helena Jacobs.


 


Assim a garota fez. Nove e meia da manhã ela já estava na frente do hotel. Ela ainda não conseguia pensar em lugar algum aonde pudesse ir para comprar livros de feitiços, quits de ervas do sol ou uniformes para uma escola de magia, assim sendo, a curiosidade nela era latente.


Dez horas em ponto, Helena apareceu. Dessa vez, não estava com nenhuma roupa de jóquei, mas usava uma saia tipo cigana com uma jaqueta de couro estilo cow-boy, o que fez Alice rir e perder um pouco do nervosismo.


-“Bom dia!” – cumprimentou uma sorridente Helena. – “Hoje o dia está tão bonito!”


-“Realmente.”–  falou Alice – “Mas diga, a Srta. está hospedada aqui?”


-“Por favor, Alice, Srta. eu sou na sala de aula! Chame-me apenas de Helena!” – ela sorriu – “Sim, eu estou hospedada aqui, sim!”


-“Helena, onde se pode encontrar livros de feitiços para comprar?” – perguntou Alice, sem conseguir conter a curiosidade.


-“Aí está uma boa pergunta! Sim, sim, muito boa pergunta. Bom, eu diria que, no Brasil, temos três respostas para essa pergunta. Sim temos, três respostas: a primeira é Salvador, há um grande mercado lá, muito bom para comprar ingredientes para poções, principalmente ervas do sol e...”


 -“É para lá que estamos indo?”


-“Hohoho! Devagar aí! É sim, muito devagar aí! Não vamos para Salvador, não dessa vez. Mas como eu dizia, temos três respostas para essa pergunta, a segunda delas é Porto Alegre, ótimo lugar para se comprar vestes! As vestes mais bonitas que se podem encontrar no Brasil estão lá! Mas ainda não é para onde vamos...”


 Helena fez sinal para que Alice entrasse no saguão do hotel. Assim que entraram, a bruxa continuou:


-“Hoje nós vamos para a nossa terceira resposta: São Paulo!”


 


-“São Paulo?”


-“Exatamente! Já esteve lá?”


-“Só de passagem, mas não conheço bem a cidade. Não é lá que temos que pegar o ônibus para Amgis?”


-“Exatamente! Mas quer saber por que vamos para lá?” – e sem esperar uma resposta, Helena prosseguiu. –“Por que é o único mercado bruxo que tem tudo que você vai precisar! Salvador pode ter as melhores ervas, mas não tem uniformes de Amgis, Porto Alegre pode ter as melhores vestes, mas com toda a certeza, ervas do sol você não vai encontrar por lá!”


As duas entraram no elevador e Helena apertou o botão do 5° andar. Elas suspenderam a conversa durante a subida, pois havia trouxas no elevador. Alice aproveitou para pensar um pouco, então, quando as duas estavam sozinhas novamente, ela disse:


-“Helena, se estamos indo para São Paulo, por que estamos entrando no hotel? Não deveríamos estar saindo?”


-“Oh não! Não, não, para irmos até São Paulo, teremos que visitar uma amiga bruxa, já que você não sabe voar de vassouras e, é claro, ainda não tem permissão para aparatar!”


-“Aparatar? O que é isso?”


Mas, antes que obtivesse uma resposta, a porta em frente a elas se abriu e dela saiu uma mulher.


-“Helena!” – exclamou a mulher, que aparentava ter cerca de sessenta anos, mas falava como se fosse uma adolescente. –“É muito bom vê-la novamente! Sabe, quando você me mandou aquela coruja dizendo que vinha usar a minha passagem de mirflu eu quase não acreditei! Fiquei tão feliz em saber que você se tornou professora! Mas conte-me, como está Amgis? E Marlon, minha velha amiga, como está? E Adalberto, o velho Adalberto Faria ainda leciona Transfiguração?”


-“Tereza, perdoe-me, mas estamos com pressa! Além disso, não é bom ficar falando em Amgis no meio do corredor, os trouxas podem ouvir!”


-“Oh, os trouxas! É mesmo, é mesmo, entre!”


Assim as três entraram no quarto de Tereza, que continuou falando após fechar a porta:


-“Você está indo para São Paulo, não é mesmo? Vai visitar o ‘Witch’s House’?”


-“Sim, vamos, precisamos comprar o material de Alice.”


Tereza, que estivera de costas procurando algo em seu armário, virou-se com tanta rapidez que Alice levou um susto. A senhora só agora pareceu reparar na menina que entrara em seu quarto, olhou para Helena, pedindo uma explicação.


-“Ah, bem, Sra. Mattos, está é Alice Elsea, ela vai começar seu primeiro ano em Amgis em breve.”


Alice sorriu e murmurou um “como vai?” quase inaudível, que se perdeu no ar em poucos segundos, como se nunca tivesse sido pronunciado. A senhora a encarava de uma maneira, no mínimo, muito constrangedora. Tereza Mattos olhou para a menina como se a examinasse da cabeça aos pés, depois seu olhar deteve-se nos olhos da garota e ali ficou. Mas alguns segundos depois ela sacudiu a cabeça dizendo:


-“Mais uma jovem bruxa! Espero que tenha sorte! Olhem, aqui está, finalmente encontrei, meu precioso saquinho de pó de mirflu!”


Então a bruxa atravessou o quarto energicamente e parou em frente a um enorme espelho, emoldurado em ouro, que ia do chão até o teto.


-“Estão prontas?” – ela perguntou, parecia estar ansiosa em ver as duas visitantes pelas costas.


-“Hum, bom,” – gaguejou Helena – “Alice nunca fez isso antes, deixe eu explicar como funciona o método.”


-“Está bem, mas seja breve!”


-“Hum, ok, hum, serei, serei breve!” – disse Helena, ficando cada vez mais nervosa – “Bem, eh..Alice, nós bruxos temos algumas maneiras diferentes de viajar, uma delas é através  da rede de mirflu. A rede de mirflu é um sistema muito fácil de se usar, basta atirar um pouco de pó de mirflu no espelho, entrar nele e dizer bem alto o nome do lugar para onde se quer ir. Vá na frente, eu a seguirei logo depois.”


Alice ficou confusa. Viajar através de um espelho? Mesmo sabendo que era bruxa, aquilo não era algo com o qual ela teria sonhado, nem em seu sonho mais absurdo. Ainda relutante, ela deu um passo na direção do espelho e pegou um punhado do pó que Tereza lhe oferecia. Parecia pó de giz.


-“Quando entrar no espelho, diga apenas ‘The Witch’s House’, certo?” – recomendou Helena.


A menina acenou com a cabeça e, sentindo-se idiota, atirou o pó no espelho, imaginando que ele iria bater na superfície de vidro e cair, sujando todo o tapete de pó de giz. Porém, ao contrário de qualquer expectativa que a garota pudesse ter formulado, o pó de mirflu simplesmente entrou no espelho, fazendo com que o vidro assumisse uma aparência de mercúrio líquido. Lentamente, Alice colocou o pé direito dentro do espelho, depois deu um passo completo e todo o seu corpo entrou: era como mergulhar em uma banheira de água fria sem se molhar.


Olhando para todos os lados, confusa, por uma fração de segundo ela esqueceu-se do que deveria fazer. Sentia o fluído do espelho em todo o seu corpo, nem líquido, nem pastoso, começando a entrar-lhe pelas orelhas e invadir-lhe as narinas. Seus olhos estavam inundados de uma claridade prateada mas, em alguns pontos, transparente.


Quando pensou que ia sufocar, lembrou-se do que deveria dizer e gritou com todas as forças:


-“The Witch’s House!”


Então sentiu seus pés serem puxados como que por mãos invisíveis e foi escorregando, escorregando e descendo, até que algo a empurrou para frente e ela caiu em um frio chão de pedra de uma cafeteria no meio de um shopping center.


 


 


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