CAPÍTULO OITO



OITO

O chuveiro é o lugar onde sempre consigo organizar melhor minhas idéias. A noite é hora de preocupações, reflexões e análises. Mas de manhã, debaixo da água quente, vejo as coisas com clareza. Então, enquanto lavo o cabelo, sentindo o cheiro de grapefruit do meu xampu, reduzo tudo a uma verdade essencial: o que Harry e eu estamos fazendo é errado.

Nós nos beijamos por um longo tempo ontem à noite e depois ele me segurou por ainda mais tempo, poucas palavras ditas entre nós. Meu coração bateu forte contra o dele quando disse para mim mesma que ao evitarmos que a coisa evoluísse tínhamos emplacado uma espécie de vitória. Mas nesta manhã, acho que ainda assim foi errado. Simplesmente errado. Tenho de parar. Vou parar. A partir de agora.

Quando era pequena, costumava contar mentalmente até três quando queria me proporcionar um novo começo. Se eu estivesse roendo as unhas, arrancava os dedos da boca e contava. Um. Dois. Três. Já. Então eu zerava minha ficha. Daquele momento em diante não era mais uma pessoa que roía as unhas. Usava essa tática com muitos dos meus maus hábitos. Então, depois de contar até três, vou me livrar do hábito Harry. Vou ser uma boa amiga novamente. Vou apagar tudo, consertar tudo.

Conto lentamente até três e uso a técnica de visualização que Brandon me disse que usava durante a temporada de beisebol. Ele me explicou que imaginava o taco batendo na bola, ouvia o estalo e via a poeira subir enquanto deslizava em segurança para a base. Ele se concentrava apenas nas boas jogadas, e não nas vezes em que se dava mal.

Então é isso o que faço. Me concentro na minha amizade com Cho, mais do que nos meus sentimentos por Harry. Imagino um filme na minha cabeça, com cenas de Cho ao meu lado. Vejo nós duas instaladas na cama dela num dia em que dormi em sua casa, quando ainda estávamos no primário. Discutimos o futuro, quantos filhos vamos ter e como se chamarão. Vejo Cho aos dez anos, apoiada nos cotovelos, os dedos mindinhos na boca, explicando que se você tem três filhos, o do meio deve ter sexo diferente dos outros, de forma que cada um deles tenha alguma coisa especial. Como se fosse possível controlar essas coisas.
Vejo nós duas nos halls da escola em Naperville, trocando bilhetes entre as aulas. Seus bilhetes, dobrados das formas mais intrincadas, como origamis, eram muito mais divertidos dos que os de Lila, que apenas relatavam o quanto ela estava entediada em sala. Os de Cho eram repletos de observações interessantes sobre os colegas de sala e comentários mordazes a respeito dos professores. Tinham também pequenos jogos para que eu me divertisse. Ela escrevia citações do lado esquerdo da página e os nomes das pessoas do lado direito para que eu correlacionasse as duas colunas. Eu morria de rir enquanto traçava uma linha de, por exemplo, "Belos faróis, meu chapa" até o nome do pai de Lila, que fazia esse comentário sempre que um motorista esquecia o farol alto ligado. Ela era engraçada. Às vezes dura, até mesmo completamente má. Mas isso só a tornava mais engraçada.

Enxáguo meu cabelo e lembro de mais uma coisa, uma lembrança que ainda não tinha vindo à tona. É como encontrar uma foto sua que você não sabia que havia sido tirada. Cho e eu estávamos no primeiro ano do segundo grau, de pé, ao lado dos nossos armários, depois da aula. Becky Zurich, uma das garotas mais populares do último ano (não daquele tipo popular legal, mas da espécie má e temida) passou por nós ao lado do seu namorado, Paul Kinser. Com seu quase inexistente queixo e lábios para lá de finos, ela realmente não tinha nada de bonita, embora naquela época tenha de alguma forma convencido muitas pessoas, inclusive eu, de que era. Então, quando Paul e Becky passaram por nós, olhei para eles, porque eram pessoas populares do último ano e eu ficava impressionada, ou no mínimo curiosa. Tenho certeza de que queria ouvir o que eles estavam falando de forma que pudesse ter uma idéia do que significava ter 18 anos (tão mais velha!) e ser legal. Acho que foi apenas um olhar casual na direção deles, mas talvez eu os tenha encarado.

De qualquer maneira, Becky me retormou um olhar exagerado, fazendo os olhos ficarem esbugalhados, como nos desenhos animados. A esse olhar ela acrescentou uma risada tipo hiena, e, com os lábios retorcidos, disse:

- O que você está olhando?

Paul contribuiu:

- Por acaso você está caçando moscas?

(Tenho certeza de que namorar Becky fez Paul se tornar mais perverso, ou talvez ele tenha apenas chegado à conclusão de que ser perverso movimentava mais a vida dele.)

Como era de se esperar, meu queixo caiu. Mortificada, tratei de fechar a boca de uma vez. Becky riu, orgulhosa de ter intimidado uma garota do primeiro ano. Então, retocou seu batom rosa cintilante, colocou um outro pedaço de chiclete de canela em sua boquinha perversa e me fez ainda mais uma careta, só para garantir.

Cho estava mexendo em alguns livros no nosso armário, mas obviamente captou o significado da interação. Virou-se e lançou um olhar de repulsa para a dupla, um olhar que ela já havia treinado e aperfeiçoado. Então imitou a risada esganiçada de Becky, esticando exageradamente o pescoço para trás e pondo os lábios para dentro até torná-los invisíveis. Ela ficou pavorosa - e parecida com Becky em meio àquela gargalhada. Segurei o riso enquanto Becky pareceu momentaneamente desorientada. Então ela se recompôs, deu um passo à frente em direção à Cho e cuspiu nela a palavra "piranha".

Cho ficou impassível enquanto olhou de volta para a dupla de veteranos e disse:

- É melhor do que ser uma piranha feia. Você não concorda, Paul?

Foi a vez de Becky encarar com a boca escancarada sua adversária recém- descoberta. E antes que ela pudesse formular qualquer contra-ataque, Cho disparou mais um insulto, só para garantir:

- E, a propósito, Becky, este batom que você está usando? É tão ano passado ...

De repente, todos os detalhes daquele momento entram em foco. Posso ver nosso armário enfeitado com fotografias de Patrick Swayze em Dirty Dancing - Ritmo quente. Posso sentir aquele cheiro característico de carne cozida que vem do refeitório próximo dali. E posso ouvir a voz de Cho, enérgica e confiante. É claro, Paul ficou sem resposta para a pergunta dela, já que estava claro para nós quatro que Cho tinha razão - ela era a mais bonita das duas. E isso, na escola, às vezes dá a você a última palavra, mesmo que você seja do primeiro ano. Becky e Paul se mandaram e Cho simplesmente ficou conversando comigo sobre qualquer coisa, como se Becky e Paul fossem totalmente insignificantes. O que eles realmente eram. Só que não é fácil se dar conta disso quando se tem 14 anos.

Desligo o chuveiro, enrolo meu corpo numa toalha e pego outra para a cabeça. Vou telefonar a Harry assim que chegar ao trabalho. Vou dizer a ele que isso tem de parar. Desta vez é para valer. Ele está se casando com Cho e eu sou a madrinha. Nós dois a amamos. Sim, ela tem defeitos. Ela pode ser mimada, egocêntrica e mandona, mas também é leal, bondosa e muito divertida. E ela é para mim o que mais se aproxima de uma irmã.

Durante o trajeto para o escritório treino o que dizer a Harry, chegando até mesmo a falar em voz alta no metrô. Quando chego ao trabalho, já tenho minha fala tão decorada que nem soa mais como uma coisa roteirizada. Inseri as pausas apropriadas na minha declaração de Disposições e Futuras Intenções. Estou pronta.

Exatamente quando estou prestes a fazer a ligação, noto que tenho um e-mail do Harry. Abro, esperando que ele tenha chegado à mesma conclusão. O título da mensagem é "Você".


Você é uma pessoa incrível e eu não sei de onde vêm os sentimentos que
desperta em mim. O que sei é que estou completa e totalmente na sua e quero que o tempo congele para eu poder estar sempre ao seu lado e não ter de pensar em mais nada. Gosto literalmente de tudo a seu respeito, inclusive
a forma como o seu rosto revela tudo o que você está pensando e especialmente
o modo como fica quando estamos juntos e seus cabelos estão para trás, seus olhos fechados e seus lábios entreabertos. Certo, isso era tudo o que eu queria dizer. Apague isto.


Estou sem ar, tonta. Ninguém jamais escreveu palavras como essas para mim. Leio mais uma vez, absorvendo cada uma delas. Também gosto literalmente de tudo a seu respeito, penso.

E, assim, minha resolução vai por água abaixo. Como posso acabar uma coisa que nunca experimentei antes? Uma coisa pela qual tenho esperado por toda a minha vida? Ninguém antes de Harry jamais tinha feito eu me sentir assim. E se eu nunca mais encontrar isso? E se isso for o fim?

Meu telefone toca. Atendo pensando que pode ser Harry e torcendo para que não seja Cho. Não posso falar com ela agora. Não posso pensar nela agora. Estou entorpecida pela minha carta de amor eletrônica.

- Saudações, baby.

É Rony, telefonando da Inglaterra, onde mora há dois anos. Estou tão feliz em ouvir a voz dele. Ele tem uma voz sorridente, sempre soando como se estivesse prestes a rir. Na maioria das coisas, Rony ainda é como aquele menino da 5a série. Ainda é cheio de compaixão, ainda tem bochechas de querubim que ficam vermelhas no frio. Mas a voz mudou. Surgiu no segundo grau, com a puberdade, tempos depois de a amizade ter tomado o lugar da minha paixão colegial.

- Oi, Rony!

- O que diz o regulamento sobre desejar a alguém feliz aniversário atrasado? - pergunta ele. Desde que comecei o curso de Direito, ele adora ficar disparando termos legais para cima de mim, freqüentemente deturpando o significado. "Dolo de morango" é o seu favorito.

Rio.

- Não se preocupe, foi apenas o meu trigésimo.

- Você me odeia? Você deveria ter me telefonado e me lembrado. Depois de 18 anos sem esquecer, estou me sentindo um completo imbecil. Merda. Minha cabeça está falhando e ainda nem fiz trinta anos, sem querer Jogar isso na sua cara.

- Você também esqueceu o meu aniversário de 27 anos - interrompo.

- Esqueci?

- Esqueceu.

- Acho que não.

- Esqueceu, você estava com Fleur...

- Pare. Não diga esse nome. Você está certa. Esqueci o de 27 anos. Isso faz esta infração parecer menos egrégia, certo? Não quebrei um padrão... E então? Como é que estão as coisas? - Rony assobia. - Não consigo acreditar que você esteja com trinta anos. Você ainda deveria ter 14. Está se sentindo mais velha? Mais inteligente?Mais experiente? O que você fez na grande noite? - Ele dispara suas perguntas de um jeito frenético como se tivesse transtorno do déficit de atenção.

- É a mesma coisa. Eu continuo a mesma - minto. - Nada mudou.

- É mesmo? - pergunta. É a cara dele insistir na pergunta. Como se soubesse que estou escondendo alguma coisa.

Faço uma pausa, minha mente está a mil por hora. Conto a ele? Não conto? O que ele vai pensar de mim? O que ele vai dizer? Rony e eu nos tornamos bem próximos no segundo grau, embora nosso contato seja esporádico. Mas sempre que conversamos, retomamos de onde paramos. Ele daria um bom confidente nesta saga principiante. Rony conhece todos os principais jogadores. E o mais importante: ele entende de chutar o balde.

As coisas começaram bem para ele. Teve um bom resultado nas provas de admissão das universidades, formou-se em segundo lugar na nossa turma e foi eleito o que tinha mais chance de ser bem-sucedido, concorrendo com Amy Choi, nossa colega que tirou primeiro lugar e era muito quieta e tímida para receber votos para o que quer que fosse. Ele foi para Stanford e depois de se formar conseguiu um trabalho num banco de investimentos, apesar de a ênfase de seus estudos ter sido história da arte e de ele não ter interesse por finanças. Rony instantaneamente passou a desprezar toda a cultura dos bancos. Disse que virar a noite trabalhando não era natural e se deu conta de que preferia sono a dinheiro. Então trocou o terno por uma jaqueta confortável e passou os anos seguintes subindo e descendo a Costa Oeste, tirando fotos de lagos, árvores, fazendo amigos pelo caminho. Teve aulas de criação literária, arte e fotografia, financiadas pelos empregos temporários em bares e pelos verões que passava trabalhando com pesca no Alaska.

Foi lá que ele conheceu Fleur - "Fleuma", era como eu a chamava antes de perceber que ele realmente gostava dela e que ela não era apenas uma aventura passageira. Eles já namoravam há alguns meses quando Fleur ficou grávida (insistindo que fazia parte dos 0,05% de mulheres terrivelmente sem sorte que usam a pílula como método anticoncepcional, embora eu tivesse minhas dúvidas). Ela disse que um aborto estava fora de cogitação, então Rony fez o que achava ser a coisa certa e se casou com ela no centro de Seattle, na prefeitura. Rony e Fleur enviaram convites de casamento artesanais e incluíram uma foto em preto e branco dos dois numa caminhada. Cho debochou do curtíssirno e apertadíssimo short jeans de Fleur.

- Quem diabos faz caminhadas com shorts à moda Daisy Dukes? perguntou ela.

Mas Rony parecia bem feliz.

E, naquele verão, Fleur deu à luz um menininho ... um adorável e robusto bebê esquimó, com olhos que logo se tomaram escuros como carvão. Fleur, de olhos azuis como Rony, implorou por perdão. Rony anulou o casamento na hora e Fleur voltou a morar no Alaska. Provavelmente para localizar seu amante nativo. Acho que Fleur desanimou Rony dessa coisa de pôr o pé na estrada e viver ao ar livre. Ou talvez ele tenha apenas desejado alguma coisa nova. Porque ele se mudou para Londres, onde escreve para uma revista e trabalha num livro sobre a arquitetura londrina. Um interesse que ele não havia adquirido até botar os pés em solo britânico. Mas é assim que Rony é. Ele vai decidindo as coisas pelo caminho, sempre pronto a recuar e começar de novo, nunca se rendendo a pressões ou expectativas. Gostaria de poder ser mais como ele.

- Então? O que você fez no seu aniversário? - pergunta Rony.

Fecho a porta do escritório e desabafo.

- Cho fez uma festa-surpresa para mim, bebi demais e acabei ficando com Harry.

Acho que é isso o que acontece quando você não está acostumado a ter segredos. Você não tem experiência na arte de não contar. De fato, estou surpresa de ver o quanto demorei. Dá estática na linha enquanto as notícias atravessam o Atlântico. Entro em pânico e desejo poder sugar as informações de volta.

- Ah, vai se foder. Você está brincando comigo, certo?

Meu silêncio diz a ele que estou falando sério.

- Ohhh, merda.

A voz dele ainda está sorrindo.

- O quê? O que você está pensando? - Preciso saber se ele está fazendo julgamentos. Preciso saber o que ele pensa de mim, se ele está do lado da Terninho Chanel.

- Espera aí. O que você quer dizer com ficou com o Harry? Você não dormiu com ele, dormiu?

- Hum. Sim. Na verdade dormi.

Estou aliviada de ouvir sua risada, apesar de dizer a ele que não tem graça, que este é um assunto sério.

- Oh, pode acreditar em mim. Isto é engraçado.

Consigo imaginar a covinha na bochecha esquerda dele.

- E o que exatamente é tão divertido assim?

- A senhorita toda metida a boazinha traçou o noivo da amiga. Isso é comédia pura, da melhor qualidade.

- Rony!!

Ele pára de rir tempo suficiente para perguntar se eu poderia estar grávida.

- Não, nós tomamos cuidado.

- Então não houve nenhum dano, certo? Foi um erro. Merdas acontecem. As pessoas cometem erros, especialmente quando estão bêbadas. Veja só o meu exemplo com a Fleur.

- Acho que sim. Mas ainda assim ...

Rony assobia e então diz o óbvio: que Cho iria enlouquecer se algum dia descobrisse.

Minha outra linha está tocando.

- Você precisa atender? - pergunta Rony.

- Não, vou deixar entrar na secretária eletrônica.

- Tem certeza? Pode ser o seu novo namorado.

- Você acha que me ajuda desse jeito? - digo, apesar de estar aliviada que ele não esteja sendo moralista e sério. Esse não é o estilo de Rony, mas nunca se sabe quando alguém vai apelar para padrões morais. E definitivamente aqui há padrões morais em questão por toda a parte, ainda mais considerando que Cho é amiga dele também. Não tão próxima quanto nós dois, mas eles ainda se falam de vez em quando.

- Desculpe, desculpe - diz ele, prendendo o riso. - Está bem, só mais uma perguntinha.

- O quê?

- Foi bom?

- Francamente, Rony! Eu não sei. Nós estávamos bêbados!

- Então foi tudo de qualquer jeito?

- Ah, Rony - protesto, como se não estivesse pensando nos detalhes. Enquanto isso, flashes do Incidente vêm à minha cabeça, meus dedos apertados contra as costas de Harry. É uma imagem perfeita, desenhada com aerógrafo. Não há nada "de qualquer jeito" nela.

- E aí? Você falou com ele depois?

Conto sobre o fim de semana nos Hamptons e sobre Draco.

- Bela jogada. Investindo no amigo dele. Deste jeito, se você casar com Draco, vocês podem fazer um suingue.

Eu o ignoro e continuo com o resto da história: a carona até o ônibus, a noite passada, um resumo do e-mail.

- Hum, merda. Então ... você também sente alguma coisa por ele?

- Eu não sei - respondo, apesar de saber que a resposta é sim.

- Mas o casamento está de pé?

- Está - confirmo. - Que eu saiba.

- Que você saiba?

- Sim. Está de pé.

Silêncio. Ele não está mais rindo, então minha culpa volta com toda a força.

- O que você está pensando agora?

- Só estava pensando no rumo que você quer que essa história tome - diz ele. - O que você quer disto? É uma aventura ou você quer que ele cancele o casamento?

Eu me encolho toda ao ouvir a palavra "aventura". Não se trata disso de maneira nenhuma, mas, ao mesmo tempo, não sei se quero que Harry cancele o casamento. Não posso me imaginar fazendo isso com Cho. Digo a Rony que não sei, não estou certa.

- Hum ... Bem, ele chegou a mencionar o casamento?

- Não, realmente não.

- Hum.

- O quê? O que esse "hum" significa.

- Significa que eu acho que ele deveria cancelar essa merda.

- Por minha causa? - Meu estômago dói só de imaginar que eu possa ser responsável pelo cancelamento do casamento de Cho. - Talvez seja apenas falta de coragem.

Ouço minha voz se elevando esperançosa diante da sugestão de uma mera falta de coragem. Por que um lado meu quer que isso seja tão simples? E como posso ficar tão emocionada ao estar ao lado de Harry, tão profundamente comovida pelo e-mail dele e ainda assim querer, de certa maneira, que ele se case com Cho?

- Mione...

- Rony, sei o que você vai dizer.

Não sei exatamente o que ele vai dizer, mas pelo tom dele tenho um palpite de que tem a ver com como as coisas vão terminar se eu não parar e desistir. Que de algum modo a história vai explodir. Que alguém - provavelmente eu - vai se machucar. Mas não quero ouvi-lo dizer nada disso.

- Certo. Apenas tenha cuidado. Não deixe ninguém pegar você. Que merda.

Percebo que ele está rindo novamente.

- O que foi?

- Só estou pensando em Cho ... de certa forma é gratificante.

- Gratificante como?

- Ah, por favor. Não vai me dizer que um lado seu não gosta de dar uma sacaneada nela. Há uma certa justiça poética aqui. Há anos Cho tem pisado em você.

- Do que você está falando? - pergunto, genuinamente surpresa de ouvi-lo descrever nossa amizade dessa maneira. Sei que venho me sentindo mais irritada com ela ultimamente e sei que ela nunca foi das amigas mais generosas, mas nunca pensei nela como alguém que pisasse em mim. - Não é verdade.

- É sim.

- Não, não é - digo com mais firmeza. Não estou bem certa de quem estou defendendo: a mim mesma ou a Cho. Sim, havia você, Rony. Mas você não sabe nada disso.

- Ah, por favor. Lembra de Notre Dame? As provas de admissão?

Lembro-me do dia em que recebemos da direção nossos resultados, em envelopes brancos lacrados. Estávamos todos de boca fechada, mas loucos para saber os resultados uns dos outros. Finalmente, na hora do almoço, Cho disse:
- Está bem, quem se importa com isso? Vamos apenas dizer quanto tiramos e pronto. Hermione?

- Por que tenho de ser a primeira? - perguntei. Estava satisfeita com meu resultado, mas ainda assim não queria ser a primeira.

- Não seja criança - disse Cho - simplesmente diga pra gente.

- Está bem: 1.300 - respondi.

- Quanto você tirou na parte verbal? - perguntou ela.

Disse a ela: 680.

- Ótimo - avaliou. - Parabéns.

Rony foi o próximo: 1.410.Nenhuma surpresa. Não me lembro quanto Lila tirou ... pouco mais de 1.100.

- E então? - perguntei a Cho.

- Oh. Está bem. Tirei 1.305.

Soube na hora que ela não tinha tirado 1.305. As notas eram sempre múltiplos de dez, não de cinco. Rony também sabia, porque me chutou por baixo da mesa e escondeu um sorriso com seu sanduíche de presunto.

Não me importei com a mentira em si. Cho era célebre por florear as coisas. Mas o fato de ela ter mentido sobre o resultado para ganhar de mim por cinco pontos ... essa parte realmente foi demais. Mas não tiramos satisfações. Não fazia sentido.
Mas aí ela disse:

- Bem, então talvez nós duas entremos para Notre Dame.

Era a repetição da jogada que ela havia feito na 5a série para conquistar Rony.
Como várias pessoas do Meio-Oeste, eu sonhava em entrar para a Notre Dame. Não somos irlandeses, nem mesmo católicos, mas eu quis ir para lá desde que os meus pais me levaram para assistir a um jogo de futebol da Notre Dame quando eu tinha oito anos. Para mim era o modelo ideal de faculdade - construções imponentes em pedra, gramados impecáveis, muita tradição. Queria fazer parte disso. Cho nunca demonstrou o menor interesse por Notre Dame e me irritava que ela estivesse violando os limites do meu território. Mas não me preocupava com a possibilidade de ela pegar o meu lugar. Minhas notas eram mais altas. Além disso, mais de um aluno na nossa escola entrava para a Notre Dame todos os anos.

Naquela primavera as cartas de aceitação e recusa começaram a pingar aos poucos. Eu verificava a caixa do correio todos os dias, numa agonia danada. Mike O'Sullivan, que tinha três gerações de ex-alunos em sua família e era o representante da nossa turma, foi o primeiro a entrar. Imaginei que seria a próxima, mas Cho recebeu sua carta antes de mim. Eu estava com ela quando a correspondência chegou, embora ela não tenha aberto o envelope na minha frente. Fui para casa esperando, muito culpada, que ela tivesse recebido más notícias.

Uma hora depois ela me telefonou em êxtase.

- Não acredito! Consegui entrar! Dá para acreditar?

Em resumo, não. Não dava para acreditar. Ainda consegui dizer parabéns, mas estava arrasada. As notícias podiam significar duas coisas: que ela tinha tirado o meu lugar ou que nós duas iríamos para Notre Dame e ela continuaria roubando a cena por mais quatro anos. Por mais que eu soubesse que sentiria saudade de Cho quando fosse embora, tive uma sensação muito forte de que precisava me estabelecer longe dela. Se ela estivesse junto, minha imagem nunca ficaria nítida de verdade.

Contudo, eu queria ser aceita na universidade mais do que qualquer coisa. E o meu orgulho estava em jogo. Esperei, rezei e até pensei em telefonar para o escritório de admissões para implorar. Após uma semana doentia, minha carta chegou. Era exatamente como a de Cho. Corri para dentro, o coração na boca enquanto abria o envelope e desdobrava o papel que guardava meu destino. Quase ... você é altamente qualificada... mas nada feito.

Fiquei muito mal e no dia seguinte nem consegui falar direito com as minhas amigas na escola, especialmente Cho. Na hora do almoço, enquanto tentava segurar as lágrimas, ela me disse que de qualquer maneira estava indo para Indiana. Que ela não queria saber de estudar numa instituição que me recusasse. Sua caridade me incomodou mais ainda. Pela primeira vez Lila se manifestou:

- Você tirou o lugar de Mione e nem ao menos quer ir para lá?

- Bem, era a minha primeira opção. Mudei de idéia. E como podia imaginar que aconteceria dessa forma? - disse ela. - Pensei que ela fosse entrar. Ganhei dela por apenas alguns pontos.

Para Rony ela já tinha ido longe demais.

- Você não tirou porcaria nenhuma de 1.305, Cho. As notas são todas múltiplos de dez.

- Quem disse que eu tirei 1.305?

- Você - Rony e eu falamos juntos.

- Não, não disse. Eu disse 1.310.

- Oh, meu Deus! - disse, olhando para Lila em busca de apoio, mas a coragem dela tinha se esgotado. Alegou que não se lembrava do que Cho havia dito.

Ficamos discutindo durante o resto do recreio sobre o que Cho tinha dito e por que ela tinha se candidatado a uma vaga na Notre Dame se não queria ir para lá. Nós duas acabamos chorando e Cho saiu da escola mais cedo alegando à enfermeira que estava com cólica. A coisa toda se acalmou quando entrei para a Duke e me convenci a ficar satisfeita com aquele resultado. A Duke tinha um jeito e um clima parecidos com os da Notre Dame - construções em pedra, um campus impecável, prestígio. Era tão boa quanto a Notre Dame e talvez fosse melhor expandir meus horizontes e sair de Indiana.

Só que até hoje fico pensando por que Notre Dame escolheu Cho em vez de mim. Talvez um subalterno qualquer deles tenha gostado da foto dela. Talvez tenha sido apenas a típica sorte de Cho.

De qualquer forma, estou satisfeita que Rony tenha refrescado minha memória sobre Notre Dame. Assim, o episódio da confrontação com Becky Zurich deixa de ser a lembrança mais forte na minha mente. Sim, Cho podia ser uma boa amiga - normalmente ela era -, mas também me sacaneou em alguns momentos cruciais da minha vida: primeiro amor, faculdade dos sonhos. Isso não era coisa sem importância.

- Está bem - digo a Rony. - Mas acho que você está exagerando um pouco. Eu não usaria o termo "pisar".

- Certo, mas você sabe o que quero dizer. Há uma competição velada.

- Acho que sim, talvez - digo, pensando que não se trata exatamente de uma competição quando um dos lados perde sistematicamente.

- Então, enfim, mantenha-me informado. Este assunto é quente.

Digo a ele que sim.

- Mais uma coisa - pede. - Quando você vem me visitar?

- Logo, logo.

- Isso é o que você sempre diz.

- Eu sei, mas você sabe como é. O trabalho está sempre uma loucura... logo, logo eu vou. Este ano, com certeza.

- Menos mal - diz Rony. - Realmente estou com saudade de você.

- Eu também.

- Além do mais - diz ele -, pode ser que você precise de umas férias quando tudo isso terminar.

Depois que desligamos, percebo satisfeita que Rony não me disse nem uma vez para parar. Ele apenas falou para eu tomar cuidado. E vou fazer isso. Da próxima vez que me encontrar com Harry, vou tomar cuidado.

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