Capítulo IV



Caminhando silenciosos pela estrada lamacenta dentro da floresta equatorial, enfrentando a atmosfera quente, úmida e pegajosa, Harry e Hermione não ouviam nada mais que o arrulhar de pássaros que voavam de galho em galho no interior das frondosas árvores ao redor deles.

– Tente andar sem bater as botas com tanta força no chão, Hermione. Qualquer barulho pode ser comprometedor.

– Sim, senhor, sargento..

Harry deu de ombros. Hermione estivera a caminhada toda, sobretudo durante as últimas três horas, respondendo-lhe da maneira cínica que acabara de usar.

– Você parece um cavalo velho que não consegue mais trotar.

– Na realidade, nunca me senti tanto uma égua de corrida como hoje. Com o tempo, a pobrezinha fica velha – zombou. – A propósito, sua colocação não foi nada elegante.

Ele teve de sorrir.

– Isso significa que haverá outros estágios?

– Você viverá para descobrir, Sr. sargento da artilharia.

Harry estremeceu. Após tudo por que eles haviam passado, chamá-lo por seu posto era impessoal demais. Sobretudo quando ele tinha de caminhar quilômetros e quilômetros com uma mulher linda tão próxima.

Tudo culpa de Hermione Granger

Quando Harry interrompeu o beijo e se afastou, sabia estar fazendo a coisa certa. Parar ambos, na verdade. Estavam sozinhos ali, tendo apenas um ao outro, como Adão e Eva no Paraíso, mas ele não ia comer o fruto proibido. Mesmo se Mione fosse mais tentadora do que maçãs, mais do que ele tinha o direito de saborear.

Harry achava que deveria sentir-se lisonjeado por Hermione ter ficado tão irritada. Mas isso não aconteceu. Os papéis se inverteram, isso era fato, porém, isso não tinha importância.

Ele a provocara. Não se envergonhava disso, mas conhecia seu lugar de protetor dela, não seu amante.

– Fuzileiro?

Harry estacou e virou-se para olhá-la.

– Será que você poderia parar de me chamar assim?

– Eu sou o dever, lembra?

Então era isso.

– Não foi o que eu quis dizer, Hermione, e tenho certeza de que você entendeu o que falei.

– Entendi... é lógico que sim. A última pessoa com quem quero me envolver, em qualquer nível que seja, é um fuzileiro naval.

Harry não estava certo se apreciou do modo como Hermione dissera “fuzileiro naval”. Como se isso deixasse um gosto ruim em sua boca.

– O que tem contra fuzileiros navais, afinal?

– Nada... como eu poderia ter algo contra a nata mais fina de nosso país?

A expressão dele tornou-se mal-humorada.

– Sendo assim, qual é o problema?

– Estou tentando definir com perfeição os limites entre nós dois, a fim de evitar que você fique meio pavoneado, como já ficou.

Hermione lhe deu um olhar intenso e afetado, que foi engraçadinho e irritante ao mesmo tempo.

– Você quis me beijar também, Srta. Granger.

– Sim, de fato. Não lhe pareceu que eu estava gostando?

Ele comprimiu os lábios, mas ela seguiu avante, fingindo que não notava:

– Embora isso tenha sido, imagino, uma reação normal a eu ter sido quase engolida por uma serpente venenosa.

Harry arqueou uma sobrancelha, o que deu a ela a certeza de que acertara em sua conclusão.

– No entanto, não gostei da maneira como você acendeu e apagou uma chama a minha custa em nome do dever. Já fui usada antes, sargento, e não permitirei que isso se repita.

As pupilas dela faiscaram com uma intensidade que ele não vira ainda. Tolo como era, aquilo o atraía.

– Ouça, doçura, não conheço seu pai, e isso pouco importa. – Elevou a entonação, ameaçador. – Cheguei aonde estou graças a meu próprio mérito. E se você pensa que eu seria capaz de usar uma mulher para lucro profissional, então não me conhece nem um pouco.

Por que eles estavam tendo aquele tipo de conversa? Suas vidas não se achavam de modo algum conectadas. E o que Harry ganhava se dormisse com Hermione?

– Está certo, sargento, você não conhece meu pai. Nem a mim tampouco. Portanto, estamos quites.

– Digo e repito: qual é seu problema?! – Harry vociferou.

– Você sempre beija completas estranhas?

– Querida, tenho fantasias sobre completas estranhas.

Entretanto, nada semelhantes às que vinha tendo com ela.

Hermione o fitou, sedutora.

– E essas tais fantasias são...

– A primeira é ver você sentada no colo de seu pai, como um boa menina.

– E a segunda?

– Não vai querer saber...

– Se perguntei é porque quero uma resposta, sargento Potter.

Harry se aproximou, empurrando-a de leve para trás.

– Deixá-la nua e beijar cada milímetro desse corpo delicioso até você gemer, pedindo que eu a ame,com paixão.

Todas as extremidades nervosas de Hermione pulsaram.

– Fui bastante claro agora, Srta. Granger?

Hermione piscou diversas vezes e engoliu em seco.

– Sim. Claro o suficiente. – Por que estava respirando com dificuldade, ofegando daquele jeito?, perguntou a si mesma, intrigada. – Vê? Agora estamos chegando a algum lugar.

Harry a olhou fixo. O sorriso dela era malicioso e perverso, o que o pôs em um estado de excitação absurdo. Não precisava mais ser instigado, nem seduzido. O que sobrava era apenas um estado interminável de confusão.

Harry coçou a cabeça.

– Mulher, você está me deixando louco...

– Eu sei. Que tal sentir-se assim? Não é bom?

Harry soltou uma gargalhada alta e sonora, e então se aproximou mais um pouco.

– Você sempre lida com isso de maneira quente e fria ao mesmo tempo? – Hermione quis saber.

– Sim. Por quê, isso a aborrece? – Harry esperou por um comentário dela.

– Não se esconda atrás dessa insígnia de honra e dever, fuzileiro. Pelo que sei, não sou um país que precisa de Força de Paz.

Ele lhe a mediu da cabeça aos pés de um modo que os mamilos dela ficaram rijos. Ainda bem que Hermione estava usando a camisa de camuflagem de Harry, larga o suficiente para disfarçar.

– Honra e dever não são coisas atrás das quais eu possa me esconder... estão sempre presentes. – Harry tornou a dar de ombros, e voltou a encará-la. – Ainda está aborrecida com aquele beijo?

– Nunca estive. Me zanguei por achar que você parou por todas as razões erradas.

– Jesus! Eu não tinha de ouvir isso!

– Porque sou seu dever?

– Não, já tive sexo na cabeça, moça.

– E?

Por Deus, ele queria apenas que ela fechasse a boca, ou pelo menos, mudasse de assunto.

– Esse é um nível que achei que não deveríamos atingir. – murmurou Harry. – E, antes que pergunte, uma vez que sei que você não deixará isso acontecer, sexo não é algo que eu aceite casualmente. É uma coisa bem mais íntima para mim. Quero dizer, meu corpo estará dentro do seu, afinal de contas.

As palavras apenas fizeram com que Hermione tremesse de desejo. Todavia, pelo bem de toda a raça feminina e pelo bem dos homens que pensavam que podiam tê-las a qualquer momento porque eram ardentes e poderosos, Mione o fitou como quem insinuasse: “Você gostaria disso?”

– Não há nada a esconder, Hermione. Não se pode fingir emoção, a menos que a pessoa seja um ator.

– Há quem finja um clímax. – Ela a fitou com seriedade.

– O que considero uma bobagem. Ou você obtém satisfação ou é injusta e egoísta. – Harry bebeu água, passando as costas da mão sobre a boca. – Tive mulheres que faziam isso... não eram honestas quando as confrontava. Como se eu fosse muito tolo para saber.

“Ora, ora, que rapaz esperto...”

– Então o que você fez?

Ele lhe dirigiu um sorriso maldoso.

– Fiz com que elas atingissem o clímax, a satisfação.

– Como um trabalho inacabado?

– Não, como a razão de estarmos sob os lençóis, benzinho. Para encontrar prazer mútuo. Para total troca de carícias. Sem isso o sexo não é tão bom quanto deveria ser, e estou certo de que não quero ser considerado um parceiro torpe.

– Sua reputação de amante deve ser uma beleza, então.

– Garanto que não é das piores. – E Harry recomeçou a andar.

Hermione o seguiu, prosseguindo na provocação:

– Quer dizer que você é um romântico?

– E é ruim ser romântico?

Ela meneou a cabeça.

– Não ruim. Eu diria inesperado. Em especial vindo de um fuzileiro naval.

– Só porque uso armas isso não significa que não posso ser romântico. Uma coisa não tem nada a ver com a outra, Srta. Granger.

Hermione não precisava perguntar se ele estivera em combate muitas vezes. Harry era do Grupo de Reconhecimento. Isso dizia tudo.

– E também quero que você saiba que sou muito sincero. Não suporto desonestidade de forma alguma. Ela não serve para ninguém.

“Nossa, que homem honrado!”, pensou ela.

– E se for para proteger-se?

Harry ponderou por um instante, mentalizando operações da CIA.

– Depende do motivo.

Acima da cabeça dos dois, o firmamento escureceu com nuvens cor de chumbo que indicavam chuva iminente.

– Coração partido? Desilusão? Raiva?

Harry estacou e arqueou as sobrancelhas.

– Sobre o que você está falando?

– A omissão da verdade deixa algumas pessoas magoadas, sargento Potter.

– Como assim?

Ótimo, ela o estava fazendo pensar.

– Como com meu pai, por exemplo. Não conto para as pessoas que ele é meu pai, e isso evita que eu seja usada e que as pessoas gostem de mim por causa dele.

– Eu não gostaria de você por causa de seu pai, disso pode ter certeza.

Hermione ignorou-o, e continuou com seu raciocínio:

– Sempre fui enganada por homens queriam me namorar. E por gente que eu pensava ser amiga.

– Sim, entendo aonde quer chegar, Hermione.

Ele voltou a caminhar.

– Era algo que me deixava desconfiada, e eu detestava isso. Por esse motivo, parei de contar sobre mim e sobre minha vida aos outros, e fugi para o lugar mais distante a que eu pude ir.

– E isso ajudou? – Harry quis saber.

– Não, apenas fez de mim uma solitária – afirmou, com olhos tristes.

– Mesmo cercada por aqueles aldeões?

– Ah, não, eles eram sensacionais... Deixei alguns bons amigos para trás. Mas me fizeram compreender que meus problemas eram pífios, e senti-me envergonhada.

Harry afastou galhos quando ela teve de pular uma tora.

– Por outro lado, a experiência foi boa para mim. Aquelas pessoas precisam de coisas simples, e eu, me sentir útil em ajudá-las.

– Céus! – exclamou ele. – Aqueles indivíduos lhe deram uma lição de vida.

Hermione estava encabulada por ter de admitir isso. Assim, não o fez.

– Eles a alertaram para algumas verdades, Mione, mas vejo que você não dá o devido crédito a si mesma.

Harry se virou com um sorriso tão terno que Hermione achou que ia derreter. Como conseguiria manter seu coração fora daqui tudo, quando ele se esforçava tanto para lutar contra ela? Ou talvez até mesmo lutar contra os próprios sentimentos?

Harry a estudou.

– Você não confia no que as pessoas dizem, certo?

– Não até que eu as conheça bem, e ainda assim, algumas vezes, elas me decepcionam.

– Bem, eu disse exatamente o que quis dizer e acho que sei aonde você quer chegar.

– Sabe mesmo? – indagou, desconfiada.

– Sim. Tive três irmãos. Todos eles trabalham no negócio da família, e eu trabalhei também, porque isso é o que era esperado. Até que não foi o bastante para mim.

– E então você escolheu perigo e excitação. E, como não podia deixar de ser, optou pela profissão de fuzileiro naval.

– Entrei para a corporação porque me parecia a coisa certa a fazer. Em seu caso, Mione, vir para esta floresta selvagem no fim do mundo não lhe pareceu certo também?

– Sem sombra de dúvida.

– Sendo assim, não ponha a responsabilidade em seu pai ou na opinião dos outros. Isso é o que você necessitava fazer. E a única opinião que importa é a sua própria.

Naquele exato momento, uma enorme arara azul e amarela fez um barulho imenso, e eles até pararam para admirá-la por alguns minutos.

– Voltando ao tema, Harry, é difícil dizer isso quando os sentimentos ficam envolvidos.

– Se a situação não nos emociona, é porque não vale a pena.

“Jesus amado, será que ele existe mesmo?” Hermione deu um riso aberto e inclinou-se para beijar-lhe o rosto.

Harry piscou, e seu olhos emitiram um brilho intenso.

– Qual é a razão disso? – quis saber. – Um beijo ao acaso é muito significativo.

– Por você ser um sujeito bom e adorável, Harry Potter.

Harry ficou visivelmente tenso, o olhar vagando sobre ela da cabeça aos pés..

– Eu posso ser muito bom, sabia?

– A antecipação tortura a mente, Harry.

– Não é sua mente que quero torturar.

Hermione passou a língua sobre os lábios, umedecendo-os.

– Você está me deixando excitado, garota.

– Só tem sexo na cabeça, lembra, sargento? Sendo assim, não irá mesmo demorar muito para eu deixá-lo sobre o fio da navalha.

– Oh, sim...

– Não é nada bom o fato de que estamos fugindo de nossas vidas.

– Sim, nada bom mesmo.

– Portanto, o que faremos agora?

Lá estava de novo aquela situação em banho-maria, indefinida entre eles, Harry concluiu.

Ele acabaria ficando mesmo louco antes que aquilo terminasse. E, muito provável, feliz também.

– Continuaremos avante, em direção ao objetivo – respondeu ele.

– Nesse caso, talvez devêssemos checar aquilo ali antes.

Hermione apontava para a direita, onde um caminho em aclive dirigia-se para a montanha.

Harry o examinou e concluiu que sem dúvida se tratava de uma trilha ascendente, coberta por um vinhedo que dava ao caminho com aspecto de romântico encantamento. Os minúsculos cachos de uva ainda verdes pendiam dos ramos numa total profusão.

Rápido, Harry estudou o terreno em volta. Se havia uma trilha e uma grande extensão de vinhas, então era uma área cultivada. E a possibilidade de ser conservada e guardada por inimigos era evidente.

Desse modo, empurrou Mione para baixo, de leve, fazendo-a andar agachada e devagar por sob a videira, procurando por armadilhas caseiras.

– Fique aqui – Harry ordenou, afastando as vinhas para os lados com o cano do rifle.

Assim, também agachado, rastejou por baixo de toda aquela estrutura verde e bela, porém selvagem.

Hermione, nervosa, enfiou a mão no bolso da camisa de tecido camuflado que estava usando. Eles ainda utilizavam o aparelho de escuta, para o caso de ficarem separados por algum motivo. Quanto a ela, não tinha a mínima intenção de estar a menos de cinco metro de distância de Harry.

– Alguma coisa? – ela perguntou, assustada e curiosa.

– A área está limpa. Desimpedida, ao que tudo indica. Pode vir.

Hermione observou em torno, e, sempre agachada, entrou na trilha, num movimento que imitava o andar dos patos.

De cócoras, Harry ligou sua lanterna e moveu-se para a esquerda.

– Virgem Maria! – exclamou ele.

– O que foi?

Armas. Um par de rifles enfileirava-se na parede externa de uma pequena cabana de madeira. Notando que a porta da casa se encontrava aberta, ele entrou na frente para certificar-se de que havia ninguém lá dentro. Em seguida, fez um gesto, chamando Hermione para segui-lo
.
No chão da sala, achou caixas de material volátil, uma bobina com uma espécie de arame, caixas de papelão e mais rifles. E havia pacotes muito distintos de uma substância branca empilhados no canto.

– São rifles russos.

– Como sabe, Hermione? – Ele a fitou, perplexo.

– Simples dedução. O cartel de drogas carrega esse tipo de rifles o tempo todo. São muito fáceis de serem adquiridos, disseram-me.

– Sim, tem toda a razão. São russos, um par de rifles de assalto que se parecem com os nossos.

Hermione segurou um, inclinando-o em direção à luz da lanterna.

– Estes são velhos e não lubrificados. Este aqui é de origem militar americana.

– Não me diga que o Discovery lhe ensinou isso também?

– Não. Neste caso, basta saber ler. É um M-16 mais velho, bem diferente dessa coisa que você tem. – Apontou para o rifle MP3 que Harry segurava. – E com as palavras “Propriedade do Governo dos Estados Unidos”, chega-se fácil à acertada conclusão.

Harry ergueu o corpo alto, a cabeça tocando o teto de zinco.

– Há apenas um jeito de entrar e sair daqui.

– Não vi barco algum no rio, e o solo está coberto de vegetação. – Hermione observou.

– Mas remexido o suficiente para se notar que alguém o vasculhou.

– Deus! – Hermione fitava a pequena porta da cabana.

– Temos de sair daqui. Agora. E correr o mais possível. Trata-se de uma unidade de estocagem – afirmou Harry, em voz muito baixa. – Sou capaz de apostar que alguém está avisando o chefão.

Hermione pareceu confusa, e ele acrescentou:

– Não pode ser um armazém. Não há tanto narcótico aqui, não como se fosse produções em massa, entende? É uma estocagem particular. Mas, com toda a certeza, alguém virá atrás dessa mercadoria para vendê-la.

Harry já estava saindo quando Mione falou:

– Temos de destruir todo este pó. O pó branco, e não a poeira reinante, é claro. – Ela se admirou ao notar seu senso de humor intacto numa hora daquelas.

Harry se virou, aturdido.

– Temos? Nós? Por Deus, não! Não podemos nos arriscar tanto, Mione. Somos em menor número e mal armados para um ataque maior e mais poderoso.

Ela passou a mão no arsenal.

– De quantas armas a mais você precisa? – Hermione deixou de lado o rifle e ajoelhou-se junto a um engradado, abrindo-o. – Granadas...

– O que é isso?! – Harry, ao fitá-la, constatou que estava séria. – Mione, venha para fora... agora.

Ela o encarou fixo.

– Estas armas estão em mãos erradas, concorda?

– Sim.

– Serão usadas para ferir gente inocente.

– Concordo.

Ele sentiu que estava sendo conduzido para o caminho da retidão.

– Os bandidos usam isso para ajudar a transportar droga para os Estados Unidos, Harry. O governo colombiano já está na área, fazendo uma varredura, mas não tem ciência disto aqui. Não podemos deixar as coisas ficarem assim. É uma questão de consciência de foro íntimo. Tenho razão?

Harry assentiu com um gesto de cabeça e deixou cair o rifle no chão. Hermione mudava de posição, deslocando o peso do corpo de um pé para o outro.

– Temos de estar longe daqui para efetuarmos o serviço – ela murmurou.

E agarrou um carretel de cordas, como um garoto exibindo seu melhor presente de Natal.

– Poderemos usar isto como pavio para o gatilho ou detonador, ou o que quer que seja. – Harry coçou a nuca.

Naquele exato momento, ouviram um ruído estranho por perto, como algo ou alguém pisando em folhas secas, que estalavam.

Assustado, Harry tomou a apanhar seu rifle e colocá-lo em posição de mira, e vasculhou o piso em volta, olhando e ouvindo. Foi quando percebeu a presença de uma cobra rastejando pelo solo poeirento e coberto de folhas mortas da parreira em frente à porta aberta da cabana.

Ela avançava, sorrateira, em posição de dar um bote em Harry, que se mantinha parado ao lado da entrada. Por puro instinto, ele apontou a arma em direção do réptil, mas lembrou-se a tempo, antes de efetuar o disparo, que o barulho do tiro seria comprometedor e que, por causa dele, correriam risco de serem descobertos no momento seguinte ao estampido.

Por isso, com esperteza e habilidade Harry lançou mão de um pedaço de pau que achou no momento certo, e com ele esmagou, por diversas vezes, a cabeça da cobra venenosa.

Hermione sentiu-se aliviada e embevecida com o ato de heroísmo de seu bravo Tarzã.

Jogando a cobra morta para o lado, Harry voltou-se para Mione: – Está sugerindo que façamos uma bomba?

– Isso mesmo. – Ela sorriu.

Hermione estava mesmo excitada com a possibilidade de destruição do arsenal.

– Tenho receio de perguntar se você sabe como fazê-la. Afinal de contas, tem se mostrado uma especialista nesse tipo de coisa.

– Não. Na realidade, química de enfermagem não entra nessa área de especialização. Mas olhe para toda essa cocaína estocada, Harry. – Apontou para as drogas. – Não podemos deixar isso sair daqui. Temos de tomar uma atitude.

– Poderemos jogá-la no rio e deixar que afunde.

– E poluir a água ou deixar algum aldeão vizinho levar a culpa?

Ela estava certa. E ele tomou uma decisão.

– Tudo bem, vamos lá. Não quero estar aqui mais que o necessário.

– Eu também não.

Quando Harry mencionou isso, tudo pareceu mais fácil. A estrutura da cabana era de madeira com teto de zinco. Fora feita assim com a intenção de conservá-la seca. E, pela visão das nuvens no céu se aglomerando, parecia que era questão de minutos para o firmamento desabar sobre eles. E alguém poderia vir para remover a droga.

Harry, no chão, mexia-se entre as munições.

– Sei como poderemos fazer isso.

Hermione sabia que ele poderia. Além de Tarzã, havia um Super-Homem dentro daquele sargento.

– Teremos de ser rápidos, Harry, a tempestade vem vindo.

Num curto período, a quantidade de chuva estaria formada para cair. E seria corre-corre.

– Não dá para ter pressa, não com este narcótico todo – disse ele. – Não dá para saber desde quando está depositado aqui.

Hermione passou um dedo sobre os quilos de drogas.

– Deve fazer poucos dias. Não deu para juntar muita poeira, veja.

Ela era muito esperta, decidiu ele, removendo sua mochila.

Harry a instruiu que arrumasse as armas e o material volátil em um círculo, as drogas dentro, entre os engradados. Hermione foi cuidadosa em não se aproximar enquanto ele removia as granadas.

Ajoelhou-se, observando-o.

– Fique perto da porta, Hermione.

– Elas são voláteis?

– Não sei. Só por precaução. Uma pessoa prevenida vale por duas.

– Então talvez você não devesse manejá-las.

Harry não lhe deu atenção, desenrolando fios e atando-os através dos anéis de detonação das granadas.

– Estamos nisso agora – foi o que acabou dizendo.

– Céus, pareceu-me uma idéia tão boa na ocasião... – Hermione meneou a cabeça.

– É boa. Deveríamos fazer isso, mas, por favor, vá para a soleira e fique de olho. Está com sua arma?

– Pode apostar.

– Mesmo assim, pegue um rifle – aconselhou-a.

– Qual deles?

– Aquele. – Harry inclinou a cabeça para a direita. – É o mais limpo.

– E o mais assustador.

– Vamos lá, querida, você colaborou o dia inteiro. Pode lidar com isso.

Vagando pelas munições, o olhar de Harry cruzou o de Hermione. Ele confiava nela, percebeu Mione, e a conclusão lhe causou um estranho prazer.

Ela fez como Harry pediu, saindo da cabana. Não havia movimento algum, a não ser as nuvens baixas. Eles tinham ainda de atravessar o rio. Se a chuva começasse antes que fizessem o trajeto, teriam de ficar daquele lado da margem. Com toda a corja de maus elementos.

Hermione aninhou-se a uma árvore próxima, com a vegetação alta obscurecendo-lhe a visão. Agachada, segurou a arma semi-automática pronta para atirar. Se seu pai pudesse vê-la naquele instante, decerto estaria orgulhoso.

Mione se concentrou ao máximo no barulho da selva, nos pássaros que chilreavam e nos macacos que pulavam de galho em galho. Avistou um bicho-preguiça que galgava uma árvore a sua frente, almejando chegar ao topo. A distância, podia escutar a correnteza do rio. Parecia um trovão.

Hermione olhou para trás, na direção da cabana, quase não delineando as formas de Harry, que dispunha as granadas no lado de fora.

– Parabéns, Harry. Muito engenhoso de sua parte. Você, além de bastante prático, é habilidoso – elogiou-o.

Ele parou, analisando-a por um segundo.

– Estou apenas tentando ser mais esperto do que o último sujeito – disse, ao depositar a última granada, com todo o cuidado no chão.

Os anéis de detonação estavam ligados com fios que funcionariam como gatilho numa rede em volta das armas e drogas. Harry se movimentava devagar. Afrouxou os pinos detonadores o mais que pôde.

– Harry?

– Sim.

– Lembre-se, um miserável da pior espécie fez essas coisa.

A gargalhada contida dele chegou através do aparelho de escuta.

– Acredite-me, sei disso.

A instabilidade das granadas deixou Hermione tão nervosa que as mãos ficaram frias sobre a arma. Desejava muito que ele se apressasse.

– Você ouve ou vê alguma coisa, Mione?

– Não, nada.

“Exceto meu coração batendo na garganta.”

Harry trouxe os fios e a corda juntos, atando-os de tal modo que quando puxasse, eles se romperiam ao mesmo tempo.

– Estou quase acabando. – O suor escorria-lhe pelas face quando ele pegou sua mochila e todo seu equipamento e foi na direção dela.

Hermione respirou aliviada quando Harry chegou a seu lado. Olhou-o de soslaio, resistindo à vontade de tocá-lo.

– Essa ação foi um tanto ousada. Você precisou de muita valentia.

– Não lidei com tudo aquilo muito bem.

– Está tentando me impressionar, fuzileiro?

– E funcionou?

Eles se entreolharam. Ela esboçou um sorriso cândido e franco.

– Sim, mas não deixe que isso lhe suba à cabeça.

Mas era Harry quem estava impressionado. Hermione observava tudo como um franco-atirador, o corpo delicado atrás de folhas gigantes e samambaias selvagens, apenas a ponta do cano da arma exposta.

– Estamos prontos?

– Quero que você se dirija para aquele caminho. – Harry gesticulou com a cabeça, indicando a montanha e os rochedos.

–Não sem você. De jeito nenhum, Harry.

Harry saiu de trás do local que disfarçara com a vegetação.

– Hermione, não me deixe irritado e nervoso... isso é perigoso.

Ele caminhava para trás, olhando para todos os lados e desenrolando um pouco mais de corda.

– Posso correr, fuzileiro, e não irei para lugar algum sem você - Ela ajustou o rifle. – Lide com isso.

“Criei uma moça teimosa. Além de obstinada, e... sedutora”

– Vou adorar torcer seu belo pescocinho mais tarde.

– Sim, você e qual batalhão? – Hermione murmurou.

Meneando a cabeça, ele ignorou o comentário e desenrolou mais linha de detonação.

– Fique atenta. – Harry andou para trás, Hermione fitava a frente.

– A detonação gerará uma explosão total, para todos os lados. Teremos de estar acima dela para evitar os estilhaços.

– Espero que estejamos sozinhos aqui, nesse momento.

Assim esperava ele também.

Harry tinha de fazer uma linha direta, do material estocado em frente da cabana para a posição deles, ou os pinos de detonação lido seriam puxados com força suficiente. Se. apenas um detonasse, isso faria pouco estrago, atirando as armas contra as paredes e , talvez pondo fogo numa caixa de material volátil. E chamando muita atenção para o local onde eles estavam.

Harry rezava para que apenas algumas poucas granadas pusessem fogo no arsenal inteiro.

– Este é o máximo que podemos nos distanciar de lá. Não há mais linha.

Mione, então, voltou o fitar a área.

A chuva começou a cair, suave, umedecendo o ar.

As aves ficaram silenciosas, empoleiradas nos galhos das altas árvores, num contraste total com os macacos, que pareciam endoidecidos, pulando sem cessar para lá e para cá.

Engraçado como, mesmo em situações alarmantes e perigosas certas lembranças vinham à mente, tais como os daquele momento, pensava Hermione, vendo as gotas cair e aumentar pouco a pouco.

Quando adolescente, ainda na casa do pai, Mione adorava chuva forte, tamborilando na vidraça. Recolhia-se ao recesso de seu quarto, metia-se sob as cobertas e ficava assistindo à televisão ou lendo um dos muitos romances empilhados sobre o criado-mudo. Seus favoritos eram os policiais, sobretudo aqueles em que, no final, o mordomo era sempre o criminoso.

Ou então histórias de amor, nas quais apareciam príncipes belíssimos e espadaúdos que se apaixonavam por donzelas também belíssimas, mas paupérrimas. Quase sempre uma versão de A Gata Borralheira, e mesmo assim, Hermione devorava um livro atrás do outro, enquanto a tempestade desabava lá fora. Como naquele dia.

Só que agora o mistério não se achava no romance policial, sim nos olhos misteriosos de um certo fuzileiro naval, que não deixava de ser um príncipe encantado numa selva tropical perdida nos confins do mundo.

Naquele momento, espantando os devaneios, Hermione viu Harry retirar do bolso na perna de sua calça Um pequeno envelope metalizado. Mione mal acreditava no que via.

Harry piscou um olho, com malícia, usando os dentes para rasgar o envelopinho..

– Sim, é o que você está pensando. – Harry desenrolou o preservativo sobre a ponta do cano do rifle. – Só que não é para a finalidade que imaginou que seria. Ele mantém a água da chuva afastada da boca do cano, e posso atirar através dele. Entendeu? – E deu aquele sorriso sedutor e fascinante. – Eu a decepcionei?

Ela não respondeu, apenas sorriu-lhe de volta.

Harry entregou-lhe um preservativo, indicando com a cabeça que fizesse o mesmo com o rifle em suas mãos.

– Vá andando. – Ele olhava para o alto da montanha ao lado.

O caminho era íngreme e denso. Quando Hermione o encarou com rebeldia, Harry acrescentou:

– Pelo amor de Deus, não discuta comigo! – O tom era de comando, e ele lhe lançou um olhar demolidor, e tão penetrante que ela experimentou um calafrio, dizendo a si mesma que haveria, sem dúvida, conseqüências.

Sem verbalizar uma única palavra sequer, Hermione entrou na mata.

Quando a viu longe o suficiente, Harry contou até três e puxou.

Nada. O gatilho improvisado não funcionou.

– Raios! – praguejou.

Mione parou de andar, horrorizada. Virou-se para trás.

Harry rebobinava as linhas de detonação, indo para o local onde as granadas e tudo o mais fora colocado.

– Continue andando, Mione. Tenho de ficar mais perto ou elas não explodirão.

– Então esqueça isso e venha! Não seja louco!

– E deixar que algum garoto encontre isso e puxe a carga?

– Tudo bem, tudo bem... Você é quem sabe.– teve de concordar, embora apavorada.

No entanto, mas só Deus sabia o que passava no coração de Hermione. Medo? Companheirismo? Ou seria amor?

– Vá, vá! Suba mais alto!

– Mas...

– Eu a encontrarei, Mione, juro.

– Certo, eu vou. Apenas não arrisque sua vida, por favor – implorou.

Harry se voltou para o mato cerrado e quase não distinguiu a figura dela entre o movimento da vegetação rasteira e folhas gigantes.

A borrasca aumentava cada vez mais. Relâmpagos faiscavam no firmamento, como se para iluminar o trabalho Harry. Ele percebeu de relance um movimento perto do rio. Por um átimo de segundo, diferenciou entre natural e humano.

– Dobre o passo, Mione, temos companhia.

– Isto aqui está ficando cada vez melhor – brincou, sorrindo de nervoso.

Harry podia ouvir, pelo aparelho de escuta, a respiração ofegante de Hermione. Rezou para que ela estivesse longe o suficiente. Ele contou os segundos. Quatro... três... dois...
E puxou as cordas do gatilho.

A explosão foi gigantesca, quase o próprio apocalipse. Uma atrás da outra, como o estouro de uma metralhadora de repetição.

O terreno em volta tremeu. Estilhaços e pedras foram atirados alto para o ar, algumas caindo na água lá embaixo. Antes que os estilhaços voltassem para o solo, Harry pusera-se a correr pela floresta, a caminho do alto da montanha.

O som de idioma espanhol gritado ecoava pelo vale, ricocheteando pelas montanhas e pelos penhascos sem direção certa. Harry não precisava entender a língua para adivinhar que os homens estavam furiosos e dirigiam-se para aquele caminho.

Então foi a vez de o material volátil explodir, produzindo o barulho de um batalhão executando um assalto por terra com fogo de artilharia pesada. Harry esperava que quem quer que estivesse atrás dos dois pensasse que mais do que um fuzileiro desembarcara ali.

Nesse segundo, a tempestade desabou, com toda a força e violência possível. Era a fúria de um elemento da natureza contra um pobre e indefeso pedaço da chão.

Enquanto Harry percorria o caminho em aclive dentro do matagal, suas botas afundavam até os tornozelos na lama que se formou quase no mesmo instante. Seus músculos doíam ao agarrar vinhas e arbustos para galgar a ladeira.

O que era aquilo, o fim do mundo? Um novo dilúvio? Harry pensou em livrar-se da mochila e do equipamento, porém, se assim o fizesse, eles não sobreviveriam à noite.

– Mione! Por Deus, onde está você? Responda, por favor!

– Estou bem.

Ela caminhava, a respiração tão forte que vinha através do aparelho como se estivesse bem ali ao lado de Harry.

Os lábios dele tremeram quando Hermione sussurrou uma de suas pragas inofensivas.

E nesse minuto o pior aconteceu.

Um grito tão aterrorizante que a pele de Harry esticou-se pela tensão, e seu coração disparou em louco descompasso. Em seguida, o grito foi cortado. Silêncio total.

Harry chamou por Hermione, uma, duas, diversas vezes, mas a única resposta que teve foi um silêncio desafiador.

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