A passagem



CAPITULO IV


Ela subiu correndo para o seu quarto, passando por uma das empregadas, que a olhou, intrigada e ansiosa, mas sem nada dizer, Luna trancou a porta e encostou-se nela, tremendo. A reprovação que tinha lido nos olhos do padrasto a deixara doente e profundamente desgostosa. Fechando os olhos, tentou dominar o corpo.
Após um momento, arrancou as roupas e entrou no chuveiro. A água muito fria fez com que se encolhesse, mas foi benéfica para clarear-lhe a mente e acabar de vez com aquela excitação que tinha sentido, antes de Arthur aparecer. Não devia ter deixado Blaise tocá-la. Correndo a mão pelos cabelos embaraçados, mordeu o lábio até sangrar.
Não deixaria nunca mais que ele a tocasse. O choque de abrir os olhos para encontrar o padrasto fitando-a com aquela fúria violenta tinha varrido da sua mente qualquer emoção que não fosse um desgosto profundo. Apanhou a toalha e começou a enxugar-se bruscamente, com raiva, como se quisesse remover do corpo o toque das mãos sensuais de Blaise.
Depois de colocar um vestido, sentou-se na cama, esperando, dominada mais pela tristeza do que pelo nervosismo. O que lhe diria Arthur?
A crua verdade sobre o que havia acontecido era que Blaise não estava, absolutamente, apaixonado por ela. Não tinha sequer fingido que estava: deixara bem claro que era desejo, não amor, o que tinha a lhe oferecer. Na noite anterior, havia flertado com Gina, encantado com seus olhos brincalhões, sem prestar atenção em Luna, pois estava zangado com ela. Uma zanga que nascera única e simplesmente porque ela se recusara a fazer seu jogo quando foram a Atenas. O ego de Blaise não podia aceitar ser derrotado pelas mulheres. Ele se achava irresistível.
Gina fazia questão de confirmar essa imagem, endereçando-lhe sorrisos convidativos e não escondendo que o apreciava. Luna era séria demais para fazer essa espécie de brincadeira com qualquer homem. Nunca se comportava de forma provocante. O flerte era um jogo para o qual não estava treinada. Sua natureza introvertida a fazia recolher-se em si mesma. O tímido é sempre inibido pelo medo de que riam dele, como alguém que tem medo de caminhar sobre o gelo para não cair na água gelada.
Gina alegremente patinava no gelo, certa de que ele não racharia. Naturalmente, sua autoconfiança fazia com que o gelo a suportasse com segurança. É do mesmo tipo de Blaise Zabini, pensava Luna, amargamente. Ambos tinham total confiança em si mesmos. Eram imunes às ansiedades e tensões que afligiam as pessoas como ela. O temporal deixara o ar mais fresco e o céu de um azul lavado e brilhante. O sol voltara a brilhar, refletindo-se no espelho da penteadeira e espalhando-se pelo quarto.
Luna o observava, sentindo-se atormentada e esperando pelo som dos pesados passos de Arthur. Não os ouviu, tão imersa estava na sua tristeza. Quando bateram à porta, pulou, assustada.
— Luna! — chamou Arthur, com a voz áspera e imperiosa.
Ela destrancou a porta, apavorada, Não podia olhar para ele, e ficou de cabeça baixa, os braços caídos e as mãos crispadas. Esperou que ele falasse. Mas o padrasto ficou calado por um momento, e ela ouvia apenas sua pesada respiração, que ressoava muito alto no quarto silencioso. Depois, falou, com voz profunda:
— Não sei o que lhe dizer.
A simplicidade da confissão assustou-a. Havia uma profunda revolta implícita, mas ela notou que ele estava sufocando o que sentia. Percebia-se isso em sua voz.
— Se fosse com Gina, eu poderia entender. Não me iludo com ela. Ela pode chegar até o limite, mas nunca permitiria que alguém a fizesse atravessá-lo. Ela se valoriza bastante, embora seja, às vezes, um pouco selvagem. — Fez uma pausa e continuou: — Mas você, Luna! Jamais esperei vê-la em tal situação, deixando alguém que é quase um completo estranho tocá-la e acariciá-la...
Luna suspirou profundamente, com o peito oprimido e dolorido pelas lágrimas que prendia.
— E você estava permitindo que ele fizesse — gaguejou Arthur.
Não podia sequer negar. Quando ele apareceu, ela estava correspondendo apaixonadamente, nos braços de Blaise, a resistência anterior devorada pelo calor daquela boca.
— Não subi, até sentir que podia conversar com você sem falar nada de que pudesse me arrepender — disse o padrasto. — Se tivesse vindo logo que cheguei à vila, acho que a mataria. Nunca fiquei com tanta raiva em minha vida!
Ela sabia disso. Sentira o seu ódio cego lá na praia e ficara apavorada com a violência.
— Fez com que me envergonhasse de você.
Luna encolheu-se, baixando ainda mais a cabeça. Seu rosto queimava de humilhação e vergonha.
— Você não é mais uma adolescente, sabia bem o que estava fazendo. Vai se casar com outro homem dentro de poucos meses. Entretanto, deixa alguém que conhece há apenas alguns dias tocá-la daquela forma! Como pôde fazer isso? Como pôde se rebaixar tanto e me envergonhar assim?
Esperava por uma resposta. Seus olhos estavam fixos nela e provocavam-lhe uma dor quase física.
Luna moveu os lábios secos e conseguiu sussurrar:
— Sinto muito, papai.
— Sente? -- A palavra ricocheteou e voltou para ela como uma lâmina. Encolheu-se novamente e apertou os braços contra o corpo, como se sentisse necessidade de um escudo para proteger-se.
— Sente, Luna? Essa é uma palavra muito pobre. Você pode dizer que sente quando quebra um prato, quando esquece de me dar um recado, mas, não, nunca numa situação como esta. — Fez uma pausa e respirou audivelmente. — Como pensa que me senti vendo-a lá na praia, com um estranho, comportando-se como uma prostituta?
— Não! — protestou, com voz estrangulada.
— Não gosto de usar essa palavra, mas qual outra serviria?
A cor fugiu de seu rosto. Estava branca e gelada. Olhava para o tapete, mas parecia não enxergar nada.
— Não era só porque ele a estava beijando — explodiu Arthur — Não sou um tolo. Não tenho dúvidas de que Gina permite que homens a beijem uma vez ou outra. Eu a vejo flertando. Refiro-me ao modo como ele a beijava, como a agarrava. Aquilo não era um flerte. Sei o que era. — Interrompeu-se, de repente, e depois tornou-se ainda mais selvagem. — Nós dois sabemos, não é, Luna. É uma palavra feia e eu não a usarei falando com você. Mas ambos sabemos a diferença entre um leve beijo trocado entre um homem e uma moça, após passarem algumas horas juntos, e o que aquele bastardo queria de você.
Ela colocou as mãos no rosto, apertando-as contra os olhos congestionados.
— Não, papai! Por favor, não diga mais nada.
— Pensa que gosto disso? Mas precisa ser dito. E também preciso saber o que mais aconteceu entre você e aquele porco.
— Nada!
— Nada? Isso é uma mentira. Ele não chegaria a esse ponto, se não tivesse acontecido alguma coisa antes. Não foi a primeira vez que a beijou.
— Quase — murmurou.
— O que quer dizer isso? Quase?
— Ele me beijou uma vez, antes.
Arthur praguejou. Jamais havia usado tais palavras na sua frente.
— Está apaixonada por ele?
— Não — respondeu, com voz rouca.
— Não sei o que dizer — murmurou. Depois, falou devagar: — Mandei-o passear, chutei-o de sua vida. Avisei que, se voltar aqui, eu o mato. Digo-lhe o mesmo, Luna: não o veja mais, ou o matarei!
Luna sacudiu -a cabeça, concordando, ainda olhando para o chão.
— Preciso lhe explicar que espécie de porco deve ser ele para se comportar assim?
Ela fez que não.
— Quantas vezes o encontrou às escondidas?
— Às escondidas? — Levantou um pouco a cabeça, o olhar nervoso. — Nunca o encontrei secretamente, nem uma vez. Não havia planejado encontrá-lo na praia, hoje. Ele apareceu inesperadamente.
— Ele sabia que você ia casar com outro homem! É um oportunista, um ladrão, roubando, se puder, o que lhe aparece pela frente. Você não é boba, Luna, precisa saber o que ele pensa a seu respeito. Se Blaise se incomodasse um pouquinho com você, nunca teria tentado fazer amor assim.
Luna já sabia disso. Sabia que Blaise nada tinha a lhe oferecer, senão um relacionamento físico. E ela acreditava, quando o desejo estivesse satisfeito, logo a esqueceria, e iria procurar uma nova aventura.
— Quero a sua palavra de que não vai vê-lo mais.
Luna apenas murmurou:
— Sim, papai.
Arthur continuou a observá-la. Ela levantou os olhos e seus olhares se encontraram.
— Fiquei magoado, quando a vi nos braços dele. Você destruiu algo dentro de mim. Não era assim que eu a imaginava. Você sempre foi calma, tão ponderada. Fiquei revoltado ao vê-la com ele.
Sua palidez deu lugar a uma onda de calor que também a deixou intensamente corada. Desviou os olhos novamente.
— Não vou contar nada a Dimitri — disse o padrasto, após um momento. — Ele ficaria chocado, porque a vê como eu a enxergava. Não quero que tenha uma impressão diferente.
Luna tentou falar, mas não conseguiu. Sabia que, se dissesse agora que não queria casar com Dimitri, o padrasto perderia completamente o controle, e sua raiva podia chegar a um ponto perigoso. Ela olhava para o chão, agitada.
— Não falaremos mais nesse assunto — disse Arthur, dirigindo-se para a porta. — Tentarei esquecer tudo, e sugiro que faça o mesmo. Risque o nome dele da sua memória. — Na porta, parou, e ela sentiu que a observava. — Gostaria que isso nunca tivesse acontecido — disse ele, e depois saiu.
A porta fechou-se suavemente, e Luna jogou-se na cama, com lágrimas silenciosas correndo pelo rosto. Arthur havia descrito a personalidade de Blaise com exatidão. Luna já havia imaginado que espécie de homem era ele muito antes daquele Incidente na praia. Percebera, na primeira vez em que foi beijada, que agarraria qualquer coisa que ela pudesse lhe dar, ignorando completamente o fato de estar comprometida com outro.
A vergonha do padrasto era nada comparada à vergonha que sentia por ter retribuído ao desejo de Blaise. Aquilo feria seu orgulho e seu amor-próprio; tinha sido tratada como um objeto. Blaise caçoava da atitude de Arthur em relação às mulheres e ao amor; no entanto, seu desejo era, para ela, muito mais insultante do que a decisão de Arthur de fazê-la casar-se com alguém que não amava. Ambos a tratavam como se não valesse nada. Cada um deles tentava forçá-la a se comportar como queriam, e os dois tentavam moldá-la à imagem que faziam de uma mulher.
Luna secou as lágrimas com as mãos, mas os soluços continuavam sacudindo seu corpo. Que valor tinha ela, afinal? O que faria naquela situação? Pela primeira vez na vida, sentiu que não era ninguém. Não ocupava realmente um papel na sociedade, porque não tinha tido coragem de ser ela mesma; de não se pôr à vontade dos outros, de dizer não aos que tentavam subjugá-la. Encarou a perspectiva de fazer o que o padrasto queria: que casasse com Dimitri.
Agora, admitia que era impossível. Não poderia continuar, embora isso talvez representasse o fim de sua vida na Grécia. Até agora, sentira-se oprimida entre a odiosa idéia do casamento e o medo das conseqüências que uma recusa causaria. Medo, principalmente, de se separar da família. Teria que partir, teria que deixar a Grécia. Arthur não ia querer vê-la mais, se recusasse Dimitri, especialmente depois de a ter visto com Blaise. Acreditaria que o motivo da recusa fosse bem diferente.
Luna não queria enfrentar tudo aquilo. Vinha lutando com essas penosas idéias durante meses. Era como o esforço de um inseto para escapar da crisálida. Uma luta amarga para alcançar a luz. Não tinha sido capaz de aclarar seus atormentados pensamentos até agora, porque só os examinara por um lado. Mas, naquele momento sua mente conseguira montar a equação.
Arthur e Blaise... não havia diferença entre os dois. Se Luna se deixasse dominar por qualquer um dos dois, estaria renegando seu valor como mulher, permitindo que outras pessoas a manipulassem e controlassem a sua vida como a de uma boneca. Gina se dispunha, por natureza, a aceitar a vida como ela se apresentasse, escapando da dominação masculina com pequenas artimanhas, que ainda lhe davam prazer. Gina conseguiria sempre, de alguma forma, apanhar a melhor parte da vida, mesmo que tivesse de mentir e trapacear, mas Luna não podia imitá-la. Precisava ficar em seu próprio território, conhecer-se profundamente e ter autocontrole. Se perdesse a dignidade e a liberdade, ia se detestar. Quando a porta do quarto foi aberta com um estalido, assustou-se, esperando ver Arthur. Mas seu olhar encontrou o de Gina, parecendo meio perturbada e meio maliciosa.
— O que papai lhe disse?
Luna corou novamente. Então, Gina sabia! Não respondeu, por não saber com certeza o que a irmã conhecia da verdade. Gina aproximou-se, com as mãos nos quadris.
— Eu a vi com Blaise na praia.
As palavras saíram como uma acusação, mas havia também um desafio.
Luna olhou para ela.
— Contou para seu pai?
— Você não devia ter roubado Blaise de mim. — Gina jogou para trás os cabelos rubros e encaracolados, fazendo beicinho. Mas seus olhos agora desviavam-se dos de Luna. Estava claro que ficara chocada com a violenta reação do pai.
— Não o roubei — disse Luna, arrogante. — Não se pode roubar o que não pertence a ninguém. Eu também não o desejo, nem um pouco.
— Não foi isso que eu vi.
— Oh, Ginny! — suspirou Luna, enterrando as unhas na macia colcha que cobria a cama.
A outra sentou-se ao seu lado, olhando-a, em dúvida.
— Papai está tão zangado! Não imaginei que ficasse furioso desse jeito.
— Você o conhece — disse Luna, irônica.
Gina de fato o conhecia como Luna jamais poderia conhecer. Era a voz do seu próprio sangue.
— Pensei que ia ter um ataque — confessou Gina. — Quando voltou da praia, estava fora de si. Entrou na biblioteca e ligou o estéreo a todo volume. — Olhou para Luna. — Você ouviu?
— Não.
— Sinto muito pelo que aconteceu — disse a irmã, confusa, tocando seu braço. — Não teria dito nada, se pudesse imaginar como ele ficaria furioso. Fiquei irritada. E, então, corri para contar a ele, dominada pela emoção do momento.
Luna concordou, com a cabeça baixa.
— Como aconteceu de você nos ver?
Não tinha visto Gina indo para a praia ou se afastando, mas a verdade é que estava tão distraída com Blaise que duvidava que ouvisse um raio cair ao seu lado.
— Cheguei em casa e me pus a procurar por você. Aí me contaram que você tinha ido para a praia debaixo de chuva, e achei seu comportamento muito esquisito. Fui até a praia e parei a alguma distância quando vi você e Blaise. Fiquei louca da vida. Corri para casa, e papai estava justamente descendo do carro; a eletricidade tinha sido cortada em Atenas por causa da tempestade, por isso ele resolveu voltar para casa; contei-lhe tudo, de um fôlego. Não parei para pensar. Estava furiosa.
A atitude da irmã não podia ser reprovada. Luna encolheu os ombros.
— Não faz mal.
Gina a observava.
— O que você e Blaise estavam fazendo, que deixou papai tão zangado? — Havia um toque de excitada curiosidade em sua voz.
— Não quero falar sobre isso.
— Não vou ficar chocada — Gina insistiu.
— Não há nada para ficar chocada. — Luna cruzou as pernas sobre a cama. — Vamos esquecer?
— Por que não quer me contar? Assim, vou ficar imaginando "outras" coisas. — A outra ria, com esperança de obrigá-la a confessar.
— Isso é com você e a sua imaginação — disse Luna, agressiva.
— Não seja chata!
— Estou enjoada do assunto. Vamos esquecer, está bem?
— Sabia que você gostava do Blaise — disse Gina, ainda rindo, mas um tanto aborrecida. — Fez o possível para disfarçar, mas eu percebi.
— Não é verdade!
— Mentirosa. Vi você na praia; não podia ouvir o que falavam, mas, mesmo à distância, era óbvio o que acontecia.
— Me deixa em paz! — explodiu Luna, impaciente, e Gina parecendo ofendida, levantou-se e caminhou para a porta.
— Sabe qual é o seu mal? Leva as coisas a sério demais. — A porta bateu, e Luna cobriu o rosto com as mãos.
Ficara revoltada, ao ver a ávida curiosidade nos olhos da irmã. As emoções de Gina eram todas superficiais, apareciam com facilidade e eram, na maioria, um reflexo da sua vaidade. Gina gostava de seduzir, gostava de flertar e de ser apreciada. Adoraria despertar a paixão de Blaise, mas saberia controlá-lo a distância, sem comprometer-se. Luna nada tinha em comum com ela.
Levo as coisas muito a sério, pensou. Por que não sou como Gina? Ela é como o arbusto que se curva com a tempestade e se apruma de novo quando ela passa, intacto. Não tenho essa habilidade. Gina se casaria com Marcus, teria filhos e um dia seria uma elegante matrona grega, dirigindo a casa com competência, refletindo modelo da sua própria vida para os filhos, se eles permitissem.
Durante os dias seguintes, Luna mal viu Arthur. Ele saía muito cedo para o escritório e passava o dia em Atenas, voltando para casa tarde. Luna sabia que a estava evitando e aquilo a magoava, mas dava-lhe tempo para pensar. Quando a mãe de Luna morreu, deixou para ela uma pequena quantia, que o padrasto aplicara. Luna não era extravagante e já tinha uma soma razoável. Não teria grandes problemas financeiros, se fosse para a Inglaterra. Havia dinheiro suficiente para viajar de volta, procurar algum lugar para morar e arranjar emprego, com calma.
Tendo nascido na Inglaterra, de pais ingleses, seu passaporte era inglês, e o padrasto insistia para que estivesse sempre em dia.
— Este é um mundo incerto — havia dito ele. — Quem pode adivinhar? Você pode precisar dele algum dia.
Luna precisava dele agora, sabia que, se ficasse na Grécia, Arthur tentaria convencê-la, obrigá-la, se necessário, e tinha medo da chantagem emocional que ele podia fazer. Precisava se afastar, encontrar um mundo ao qual sentisse realmente pertencer.

Após a tempestade, a onda de calor diminuiu, e já era possível dormir à noite. Os dias, agora, eram ensolarados, sem nuvens, mas o calor enervante havia desaparecido. Uma tarde, Luna pegou o carro e dirigiu-se para Atenas, para fazer algumas compras. Sabia que, inconscientemente, estava com a intenção de reservar uma passagem para Londres, mas essa perspectiva a amedrontava tanto, que procurava adiá-la.
A rua Ermou estava apinhada de turistas. Luna fez suas compras, sem pressa, e dirigiu-se para uma agência de viagens. Enquanto estava lá dentro, sentia-se tensa, com medo de que algum conhecido a visse e contasse ao padrasto. Mas havia apenas estranhos, turistas marcando seus vôos, esperando, impacientemente, pelas informações dos funcionários. Estava tão perturbada ao sair que caminhou pela rua sem olhar para onde ia, e acabou esbarrando em alguém que estava prestes a entrar na agência.
Começou a desculpar-se, quando, assustada, reconheceu Blaise. O choque paralisou-a. Ele parecia tão surpreendido quanto ela.
— Olá — disse vagarosamente. — Como conseguiu se livrar da vigilância?
Corando, virou-se para ir embora, mas ele segurou-a pelo braço com dedos firmes.
— Não, você não vai. Precisamos conversar.
— Não quero conversar com você.
Agora, ela estava se recuperando da surpresa e sua voz era fria e indiferente.
— Isso é mau porque você vai falar comigo — murmurou ele, segurando-a forte demais para que pudesse escapar. — Vamos tomar um aperitivo.
— Tenho muito que fazer.
As pessoas olhavam para os dois, curiosas, e ela percebeu que estavam bloqueando a calçada.
— Você pode me dar cinco minutos — disse Blaise, empurrando-a para frente. — Há uma pequena taverna na próxima esquina.
— Sempre há uma — disse Luna, zangada e agressiva.
A caminho, não soltou o seu braço, e continuou a empurrá-la, degraus abaixo, para o interior sombreado. O proprietário aproximou-se para servi-los. Blaise fez o pedido, sem hesitar. Quando ficaram a sós, olhou-a com uma expressão irônica.
— Então, você ainda está viva. Fiquei imaginando que ele ia estrangulá-la.
— Obrigada pelo interesse. Ele não ficou zangado o suficiente para chegar a esse ponto.
— No fundo, eu sabia que você sobreviveria. Arthur não me parece um homem que usa violência física para com suas mulheres.
— Não.
— Mesmo quando ele está doente de ciúmes.
Por um momento, Luna pensou não ter ouvido direito. Fitou-o, com os grandes olhos azuis muito abertos e incrédulos. Blaise sorriu.
— Acertei na mosca, não é?
— Do que é que está falando? — Um arrepio gelado correu-lhe a espinha. Havia qualquer coisa em seu rosto que a desagradava.
— Ora, vamos, você sabe do que estou falando. Ele está apaixonado por você.
— Não! — gritou a moça, de tal forma que o homem que trazia as bebidas olhou-a, com surpresa curiosidade, enquanto colocava os copos na mesa.
Blaise esperou que ele se afastasse, antes de dizer, friamente:
— Pode não ser consciente. Talvez você mesma não saiba, mas o sentimento existe, bem à vista. Ele não reagiria com tal selvageria, se não tivesse ficado fora de si.
— Não vou mais ouvir você, isso não é verdade. — Luna ameaçou levantar-se e Blaise segurou-a pelo pulso. — Deixe-me ir! — gaguejou, debatendo-se.
Ele obrigou-a a ficar. O homem atrás do balcão observava a distância, meio inclinado a se aproximar para verificar o que estava acontecendo entre eles.
— Fique e ouça — ordenou Blaise, em voz baixa.
Ela obedeceu, horrorizada. Houve um pequeno silêncio, enquanto seus olhos se encontravam. Nos de Blaise havia uma chispa de raiva que lhe iluminava todo o rosto.
— Ele contou o que fez? Agrediu-me feito um alucinado e me deixou na praia. Num minuto, estávamos gritando um com o outro; no minuto seguinte, ele me derrubou com uma pancada na nuca. Caí como um fardo.
Luna estava chocada.
— Sinto muito. Ele machucou você?
— Oh, não — disse Blaise, com voz gelada. — Eu simplesmente adoro ser socado.
— Ele estava muito zangado — disse Luna, desconsolada.
— Percebi isso perfeitamente.
— Ele não me disse que houve uma luta.
— Não houve nenhuma luta. Não chamo de luta, quando um homem derruba o outro com uma pancada, sem aviso. Será luta na próxima vez que Arthur fizer isso.
— Não haverá uma próxima vez.
— Você vai partir, não é? Posso lhe dizer o que penso?
— Não, não quero ouvir.
— Tenho certeza de que não quer, mas vai ouvir. Ele a deseja para si mesmo, mas, como sabe que não poderá tê-la, está jogando você nos braços de alguém que não representa um perigo para ele. Pelo que você me contou sobre Dimitri, o paspalhão nunca tentará ficar entre você e seu padrasto, e isso é o que Arthur quer.
— Você está louco — murmurou Luna, com os dentes cerrados e a voz apenas audível.
— Tenho olhos para enxergar, e percebi isso na primeira vez em que a vi. Ele a está sempre observando e tocando. E você está meio amedrontada e meio apaixonada por ele, também.
— Não quero ouvir mais nada — disse Luna, abaixando a cabeça.
— É por isso que não a deixará escolher um homem. Depois do que aconteceu no outro dia, ele ficou fora de si de raiva e ciúmes.
— Ele é meu padrasto!
— E o que é que tem isso? Não há laços de sangue, e ele não é assim tão velho, é? Que idade tem? Pouco mais de quarenta? E durante anos, você esteve bem debaixo do nariz dele, tentando-o.
— Cale-se! — murmurou Luna, sentindo-se gelada. Não queria pensar no que ele estava falando. Era uma idéia aterradora. Arthur era como um pai em tudo, exceto no sangue. Olhou para Blaise, com hostilidade. — Sua mente é suja!
— Não, só racional. Uso meus olhos. Comecei a suspeitar disso logo no começo, mas, naquela tarde, na praia, tudo ficou mais claro do que nunca. Ele queria me matar.
— Fale mais baixo. Quer que toda a cidade ouça?
O proprietário lustrava o balcão devagar, com a cabeça abaixada, mas, mesmo não olhando na direção deles, ela percebia que tentava entender o que diziam. O rapaz olhou por sobre os ombros. Depois, tirou algum dinheiro do bolso e colocou-o na bandeja sobre a mesa, levantando-se. Luna também se levantou e seguiu-o. Nenhum dos dois tinha bebido. O sol brilhava radioso, e ela precisou apertar os olhos para não ficar ofuscada. Pararam na porta da taverna, nenhum dos dois sabia o que dizer.
O que Blaise havia insinuado há poucos momentos colocava uma barreira entre eles, contra a qual ela não sabia como defender-se. Tinha sido apanhada de surpresa. Sua cabeça doia. Sua reação inicial tinha sido apenas negar. Mas, à medida que considerava o que fora dito do seu padrasto, sentia-se enraivecer.
— Você está enganado sobre ele, e se pensa que eu... — Era doloroso demais para dizer. Parou, mas, percebendo a ironia nos olhos de Blaise, começou de novo, ainda mais zangada: — Não é verdade. Nada disso é verdade. Só o seu cérebro imaginaria isso. Penso nele como meu pai.
— Verdade?
— Sim!
— E como é que ele pensa em você? O que ele está pensando, quando golpeia o pescoço de alguém e parece um animal faminto?
Luna afastou-se, com uma exclamação horrorizada, e ele prendeu-a, agarrando a alça de sua bolsa. A alça partiu ao ser forçada e a bolsa caiu, aberta, o conteúdo espalhando-se na calçada.
Blaise resmungou, irritado, e ajoelhou-se para apanhar os objetos. Luna ajoelhou-se ao seu lado, jogando as coisas dentro da bolsa, apressadamente, sem olhá-lo. Agora Blaise havia parado, segurando alguma coisa. Luna levantou os olhos e empalideceu.
— Ora, ora, ora! — disse Blaise, exibindo a sua passagem aérea.
— Me dê isso. — Tentou tomá-la dele, mas Blaise afastou a mão.
— Então, vai mesmo para a Inglaterra?
Luna conseguiu apanhar a passagem e guardou-a na bolsa, levantando-se e dando-lhe as costas. Avistou um táxi e fez sinal. Deu ao motorista o nome da rua onde deixara estacionado o seu carro. Blaise não tentou segui-la. O táxi partiu e Luna ficou olhando sempre para a frente, agarrando com força a bolsa contra o peito.

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