Conversa



Fiquei lá parada na porta da Susan Boone, me sentindo a maior babaca. Mas como eu passei a vida inteira me sentindo a maior babaca, não era nenhuma novidade.

Por outro lado, eu geralmente me sinto babaca sem nenhuma razão específica. Dessa vez eu tinha uma boa razão para me sentir babaca.

E a razão tinha a ver com o fato de eu estar parada na porta da Susan Boone, sem ter sido convidada, e provavelmente indesejada, em uma tarde de domingo, esperando alguém atender à campainha, só que não aparecia ninguém.

E parecia que, se alguém surgisse, ficaria tipo: “Hum, você não sabe que, antes de ir à casa dos outros, precisa ligar para avisar?”

E a pessoa teria todo o direito de dizer isso, porque era claro que eu não tinha ligado antes. Mas daí eu tinha medo que, se ligasse antes, a Susan Boone poderia ter ficado tipo: “Não dá para esperar até terça, para a gente conversar na aula, Mione?”

Mas não dava para esperar até terça. Eu precisava falar com a Susan naquele dia. Porque meu coração estava partido, e eu precisava que alguém me dissesse o que fazer. Minha mãe e meu pai eram inúteis. Aquela coisa toda apenas parecia confundi-los. E a Lucy também não prestava, Ela só mandou: “Coloca uma sainha justa e vá lá pedir desculpa. Credo, qual é a sua, é retardada?” A Rebecca simplesmente apertou os lábios e disse: “Eu avisei.” E a Molly ainda estava na casa do Gui. Nem adiantava perguntar para a Luna. Na cabeça dela só tinha o Rony.

De modo que eu estava lá, parada na porta da frente da Susan Boone sem ter ligado antes. Era muito mais difícil se recusar a receber quando a pessoa já está lá parada na sua porta, do que quando ela liga. Eu sei disso por causa de todos os repórteres que têm tentado falar comigo.

Realmente, não existe sensação pior do que ficar lá parada, esperando alguém atender à campainha, quando você sabe que quem abrir a porta provavelmente vai bate-la de novo na sua cara...

Mas eu tinha que levar alguma coisa. Tipo assim, não dá para aparecer na casa de alguém sem ter sido convidada e nem levar um presente. É isso aí, preciso admitir, o pão era meio que um suborno. Porque eu nunca ouvi falar de ninguém que recusasse uma baguete da Mulher do Pão. Eu torcia para que a pessoa que atendesse a porta sentisse o cheirinho e ficasse toda: “Ah, entre, por favor.”

E também não foi nada fácil colocar a mão nesses pãezinhos: foi um inferno. Precisei acordar extra-cedo para arrastar o Manet em seu passeio matinal na direção oposta à que costumávamos ir, e ele não gostou nadinha. Ficou tentando me arrastar na direção do parque, e eu ficava puxando a coleira dele na direção da casa da Mulher do Pão. Meus braços ficaram doendo durante todo o resto do dia. Acho que o Manet pesa quase o mesmo que eu.

Também acontece que a Mulher do Pão não acorda antes das oito aos domingos. Ela atendeu à porta com um penhoar muito decotado (para uma senhora casada).

Mas ela não pareceu achar estranho eu ter ido lá bater na porta da casa dela para encomendar pão para o fim da tarde. Na verdade, pareceu até ficar feliz ao descobrir que alguém gostava tanto assim do pão dela.

E entregou a encomenda na horam ainda bem. Cinco pães franceses, dourados e fumegantes, do tippo que não se acha em lugar algum em Washington. O cheirinho quase me deixou com fome. Mas só quase. Parece que gente de coração partido nunca tem apetite.

Daí, é claro que eu tive que me virar para pegar o metrô com cinco pães quentinhos, recém-saídos do fornom na mochila, que mal fechava. Uma experiência que eu prefiro não ter que repetir. Especialmente porque a National Geographic Society Júnior estava visitando a cidade e os trens estavam lotados com um monte de famílias do Meio-Oeste do país, cada uma com uns dez filhos, todos usando camisetas amarelas onde se lia: "Pergunte-me sobre o campeonato da National Geographic Society Júnior" (algo que eu fiz questão de não perguntar).

Mas todas aquelas criancinhas loiras viravam-se para a mãe e perguntavam: “Mamãe, por que aquela garota está carregando tanto pão?”.

E a resposta dos pais era mandar todo mundo ficar quieto. Por sorte, ninguém me reconheceu como a garota que tinha salvado a vida do presidente, porque eu estava usando um boné de beisebol da Lucy, do time da escola, com todo o meu cabelo enfiado para dentro.

Ainda assim, um dos vencedores do concurso da National Geographic Society Júnior ficou me olhando cheio de suspeita durante um bom tempo, depois se virou para a amiga e cochichou alguma coisa no ouvido dela, que também olhou para mim e daí disse algo para a mãe.

Por sorte, quando o trem chegou à estação Adams Morgan, perto de onde a Susan Boone morava, eu saí rapidinho e deixei os membros da National Geographic Society Júnior à sua própria sorte, seja qual fosse.

Era uma boa caminhada da estação de metrô até a casa da Susan Boone, mas aproveitei o tempo para pensar nas minhas desgraças, que eram muitas. Quando cheguei à grande casa azul com as balaustradas da varanda caiadas, com um monte de sinos de vento pendurados, já estava praticamente chorando.

Bom, e por que não estaria? Nada além do desespero total teria me forçado a pedir conselhos para a Susan Boone. Tipo assim, umas duas semanas antes, eu odiava totalmente a mulher. Ou pelo menos eu não gostava muito dela.

Mas daí eu senti que ela era a única pessoa que eu conhecia que poderia me dizer o que eu tinha feito para acabar com a minha vida daquele jeito e como eu poderia remediar a situação. Tipo assim, ela tinha me ensinado a enxergar: talvez pudesse me ensinar como lidar com tudo que eu estava enxergando, agora que eu tinha aberto os olhos.

Mas eu precisava reconhecer que, apesar dessa convicção, quando finalmente ouvi passos (e os grasnados do Joe) vindo na minha direção, de dentro da casa, senti uma certa vontade de sair correndo.
Mas, antes que eu pudesse dar no pé, vi a cortininha de renda na janela ao lado da porta de entrada afastar-se um pouco para o lado, revelando um dos olhos azuis da Susan Boone. Daí ouvi as fechaduras da porta abrindo. Quando dei por mim, a Susan Boone estava parada na porta, olhando para mim, com um avental salpicado de tinta e o cabelo branco e comprido preso em uma trança que escorria pela costa.

-Hermione? – exclamou, surpresa. – O que é que você está fazendo aqui?

Tirei a mochila das costas e logo mostrei os pães para ela:

-Eu estava aqui perto, então pensei em dar uma passada para dar um oi. Você quer um pouco de pão? É bom demais. É uma senhora da minha rua que faz.

Tudo bem, reconheço: era o maior papo furado. Só que eu não sabia como agir. Tipo assim, eu nem deveria ter ido até lá. Era insano eu ter ido. Idiota e insano. Tipo assim, o que é que a Susan Boone tinha a ver com os meus problemas? Ela só era minha professora de desenho, tenha dó. O que é que eu estava fazendo, procurando a professora de desenho para pedir conselhos sobre a vida?

Empoleirado no ombro da Susan, Joe grasnou seu cumprimento de praxe, “Oi Joe! Oi Joe!”, para mim. Acho que ele não me reconheceu com o cabelo escondido embaixo do boné.

Susan Boone esboçou um sorriso e fez um sinal:

-Então entra, Mione. Muito gentil da sua parte, hum, passar aqui... trazendo pão.

Entrei na casa da Susan e não me surpreendi, ao cruzar a propriedade, que era mobiliada de maneira muito parecida com a do ateliê. Tipo assim, tinha um monte de móveis antigos e com aparência confortável, mas o que mais tinha lá eram telas apoiadas em todas as paredes e mais do que um leve cheiro de terebintina no ar.

-Obrigada – murmurei, entrando e tirando o boné. Assim que tirei, Joe se lançou do ombro da Susan para o meu, gritando “Corvo lindo! Corvo lindo!”.

-Joseph – fez Susan, com ar ameaçador. E depois me convidou para ir até a cozinha tomar uma xícara de chá.

Fingi que não queria atrapalhar nem nada e disse que sentia muito por estar incomodando e que só ficaria um minuto. Mas a Susan simplesmente olhou para mim com um sorriso e eu não tive outra escolha a não ser ir atrás dela até a cozinha clara como a luz do sol, pintada de azul (da mesma cor dos olhos dela). Ela insistiu em fazer um chá, e nem foi em uma xícara no microondas, mas à moda antiga, com uma chaleira no fogão. Enquanto a água fervia, ela examinou as baguetes que eu tinha levado e pareceu muito satisfeita. Pegou manteiga e um pote de geléia feita em casa e colocou em cima da mesa de açougueiro que ficava no meio da ampla cozinha antiquada. Daí tirou um pedaço da ponta de uma das baguetes, só para experimentar, e pareceu ficar muito surpresa com a casca, que já estava bem amanteigada mesmo antes de ela passar alguma coisa ali, derreteu na boca.

-Que gostoso – elogiou. – Esse pão é ótimo. Não como pão francês assim, para falar a verdade, desde a última vez que estive em Paris.

Fiquei contente ao ouvir isso. Fiquei olhando enquanto ela pegou mais um pedaço e comeu.

-Então – esbocei -como foi o seu Dia de Ação de Graças? – parecia uma coisa besta de se perguntar, assunto de gente chata, e não de artista. Mas o que mais eu poderia ter dito? E, por sorte, ela não pareceu ficar ofendida.

-Foi bom, obrigada – respondeu ela. – E o seu?

-Ah – repeti -, foi bom.

Rolou um silêncio. Não muito desconfortável, mas sabe como é. Era um silêncio. Só quebrado pelo som da chaleira que começava a ferver, e Joseph murmurando e passando o bico por entre as penas, tremendo um pouco.

Daí, a Susan declarou:

-Tenho uma idéia para o ateliê no verão.

-É mesmo? – eu disse, aliviada por alguém falar alguma coisa.

-Mesmo. Estou pensando em deixar o ateliê aberto todos os dias, das dez às cinco, para pessoas como você e o Harry poderem ir lá e ficar desenhando o dia inteiro, se quiserem. Tipo como se fosse um acampamento de arte, ou qualquer coisa do gênero.

Eu não disse nada, mas duvidava que o Harry iria aparecer... se soubesse que eu estaria lá. Em vez disso, só exclamei:

-Ótimo!

Foi bem aí que a chaleira começou a apitar. A Susan se levantou e preparou o chá. Daí me deu uma caneca azul-escura que tinha escrito “Van Gogh”. Depois de acomodar-se à mesa de açougueiro, segurou uma caneca com as duas mãos, de modo que o vapor envolveu o rosto dela em espirais esfumaçadas.

-Então, por que você não me diz o que é que você veio realmente fazer aqui em um domingo à tarde, Hermione?

Considerei a possibilidade de, sabe como é, não contar nada. Pensei em enrolar, dizendo: È sério, estou indo para a casa da minha avó” ou qualquer outra coisa do tipo.

Mas algo no jeito como ela olhava para mim fez com que eu fosse honesta. Não sei o que foi mas, de repente, sentada lá, mexendo no papelzinho da ponta da cordinha do saquinho de chá, despejei toda a história. Simplesmente saiu, espalhando-se pela mesa do açougueiro, com o Joe empoleirado no meu ombro e uns acordes de música erudita tocando baixinho em algum lugar da casa.

E quando eu acabei de botar tudo para fora (tudo, a respeito do Harry, do Draco, do concurso Da Minha Janela, da Maria Sanchez e do pai do Harry), concluí:

-E, além de tudo isso, na noite passada eu descobri que o único filho da Dolley Granger que não morreu quando era bebezinho foi do primeiro marido dela. Ela nem teve filhos com o Jonny Granger. De modo que não é minha parente. Nem de muito, muito longe.

Depois de acabar meu longo discurso, fiquei lá sentada olhando para o chá. Não dava para enxergar muito bem, porque meus olhos estavam meio úmidos. Mas eu estava decidida a não chorar. Chorar teria sido completamente ridículo, ainda mais ridículo do que andar de metrô com cinco pães franceses saindo da mochila.

A Susan, que tinha escutado, em silêncio, enquanto eu recitava todos os meus dramas, tomou um gole de chá e murmurou, com a voz muito calma:

-Mas, Hermione. Será que você não percebe? Você sabe exatamente o que precisa fazer. O Harry já deixou bem claro.

Ergui o olhar da caneca de chá e olhei para ela, do outro lado da mesa. No meu ombro, o Joe pegou uma mecha do meu cabelo e ficou lá fingindo que só estava segurando assim, sem maiores intenções, mas nós dois sabíamos que, quando ele achasse que eu não estava prestando atenção, ele tentaria arrancá-la e fugir.

-Como assim? – perguntei. – O Harry disse que não ia falar com o pai sobre a Maria Sanchez. Só isso.

-Ele disse isso, sim – explicou Susan. – Mas você não escutou de verdade, Mione. Existe uma diferença entre ouvir e escutar, assim como há uma diferença entre ver e conhecer.

Está vendo? É por isso que eu sabia que eu tinha que ir até lá. Eu não sabia disso. Tipo assim, da diferença entre ouvir e escutar.

-O Harry – prosseguiu Susan – disse que você tem direito à liberdade de expressão como qualquer outro americano.

-É – respondi. – E daí?

-Daí – e a Susan falou com uma ênfase que eu não entendi – você tem direito à liberdade de expressão, Hermione. Como qualquer outro americano.

-Tá – respondi. – Essa parte eu entendi. Mas não sei o que isso tem a ver com...

E daí, de repente, entendi. Não sei como nem por quê. Mas, de repente, caiu a ficha do que eles (a Susan e o Harry) queriam dizer.

E quando caiu, não dava para acreditar.

-Ah, não – falei, engasgada... e não foi só porque o Joe finalmente deu o bote dele: arrancou um tufo do meu cabelo e depois saiu voando, triunfante, para cima da geladeira. – Uau. Você não acha mesmo que ele quis dizer isso, acha?

Susan respondeu, cortando mais um pedaço de pão com as mãos:

-O Harry geralmente fala o que pensa, Mione. Ele não é político. Não tem a mínima tendência para seguir a carreira do pai. Quer ser arquiteto.

-Quer? – isso era novidade para mim. Estava começando a perceber que, na verdade, eu não sabia absolutamente nada a respeito do Harry. Tipo assim, eu sabia que ele gostava de desenhar e que ele era bom. E eu sabia da história do garfão e da colherona, claro. Mas também parecia ter um monte de coisas que eu não sabia.

E aquilo fez com que eu me sentisse pior ainda. Porque eu tinha um mau pressentimento de que já era tarde demais para descobrir. As coisas que eu não sabia a respeito do Harry, tipo assim.

-É – continuo Susan Boone. – Acho que é fácil entender por que ele não quer muito se meter nos assuntos do pai. Com certeza, também não quer que o pai se meta nos dele.

-Uau! - exclamei, porque ainda estava boquiaberta pela revelação que ela havia me feito. - Tipo assim... uau.

-É mesmo - disse Susan Boone, recostando-se na cadeira. - Uau. Então, percebe, Mione? Estava tudo lá.

Fiz uma careta:

-O que é que estava lá?

-O que você queria - respondeu Susan. - Você só precisava abrir os olhos um pouquinho para ver. E lá estava.

E lá estava.

E lá estava eu dez minutos mais tarde (meio que sem acreditar que eu estava lá de verdade), conversando com a Susan Boone, a mulher que me acusou de conhecer e não ver, quando a porta dos fundos, que saía da cozinha, se escancarou. Entrou um homem enorme, com o cabelo amarrado em um rabo de cavalo e os braços cheios de sacolas de compras. Ele olhou para nós com ar de surpresa. Tinha um bigodão daqueles curvados na ponta.

-Ah - fez ele, olhando para mim de um jeito simpático, mas curioso, com os olhos azuis. - Oi.

-Oi - respondi, imaginando se aquele era o filho da Susan Boone. Ele parecia ter uns 20 anos a menos que ela. Mas ela nunca tinha mencionado filho nem marido. Sempre achei que eram só ela e o Joe.
Mas pode ser que eu só estivesse ouvindo, e não escutando de verdade.

-Pete - apresentou Susan. - Esta aqui é a Hermione Granger, uma das minhas alunas. Hermione, este aqui é o Pete.

Pete pousou as sacolas de compras. Ele estava usando jeans, com uma chaparreira de couro por cima, igual à que os caubóis e os Hell's Angles usam. Quando ele esticou o braço para apertar a minha mão, vi que tinha o logotipo da Harley-Davidson tatuado.

-Muito prazer - ele apertou minha mão esquerda, já que a direita estava engessada. Daí o olhar dele caiu no pão francês. - Ei, isso aí parece gostoso.

Pete puxou uma cadeira e se juntou a nós. E daí eu descobri que ele não era filho da Susan Boone coisa nenhuma. Era namorado dela.

O que só demonstra que a Susan Boone estava certa a respeito de uma coisa, pelo menos: às vezes, o que você quer está bem na sua frente. Só é preciso abrir os olhos e enxergar.


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Alex, você é minha salvação!!! kkkkk


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