cade o lápis branco?



Na terça-feira quando a Molly virou a esquina da R com a Connecticut e parou em frente à Igreja Fundamental de Cientologia, nem dava para ver a Capitol Cookies. Também não dava para ver a Static.

Isso porque tinha um montão de repórteres parados na esquina, esperando para me entrevistar antes de eu entrar no ateliê da Susan Boone.

Nem me pergunte como foi que eles descobriram o horário da minha aula de desenho. Acho que eles deduziram o horário da aula do Harry, já que todo mundo sabia que nós dois estávamos na mesma classe (a informação estava no jornal, para explicar por que eu estava naquele lugar bem na hora que o Larry Rogers e o presidente também estavam).

Tanto faz. O modo como eles tinham descoberto não fazia a menor diferença. A verdade é que eu não deveria ter ficado surpresa. Tipo assim, esses repórteres estavam em todo lugar. Na frente da nossa casa. Na frente da escola. Na frente do Jardim do Bispo quando eu cometi o erro de levar o Manet lá para passear. Na frente da videolocadora Potomac, pelo amor de Deus, onde quase fizeram uma emboscada para a Rebecca e eu quando fomos lá devolver o filme preferido dela, Contatos imediatos do terceiro grau.

E ao mesmo tempo em que eu entendia perfeitamente que eles tinham prazos a cumpri, ou qualquer coisa assim, e que precisavam de assunto, não conseguia entender, de jeito nenhum, por que é que esse assunto tinha que ser eu. Tipo assim, eu não fiz nada além de salvar o presidente. Não é tipo como se eu tivesse alguma coisa a dizer.

-Com licença! - gritou Molly. Ela estacionou em fila dupla (era bem improvável que o carro fosse ser guinchado com meia dúzia de cameramen se aglomerando por cima dele) e, protegendo a minha cabeça com a capa de chuva de oncinha dela, usou os cotovelos e a bolsa para abrir caminho no meio da multidão e entrou correndo comigo pela porta do ateliê.

-Hermione! - os repórteres gritavam enquanto nós atravessávamos a massa formada por eles. - Como você se sente a respeito do fato de Larry Rogers ter sido considerado mentalmente incapaz para ser julgado?

-Hermione! - gritou mais outro. - Em que partido os seus pais votam?

-Hermione! - outra pessoa gritou. - O país inteiro quer saber: Coca-Cola ou Pepsi?

-Jesus Cristo - gritou Molly para alguém que cometeu o erro de puxar a bolsa dela para que ficássemos um instante a mais ao alcance do microfone. - Tira a mão da bolsa! É uma Louis Vuitton, caso você não tenha reparado.

Então finalmente entramos, aos trancos, pela porta que conduz à escadaria do ateliê da Susan Boone...

... e praticamente atropelamos o Harry e o John que, aparentemente, tinham chegado ali apenas alguns segundos antes de nós, apesar de eu não ter reparado que eles estavam no meio da multidão.

A Molly estava tão brava por alguém ter encostado na bolsa dela que só conseguiu ficar falando uns palavrões em espanhol durante um minuto inteiro. O John, o agente do Serviço Secreto do Harry, tentou acalmá-la dizendo que tinha pedido reforço policial e que um guarda a levaria de volta até o carro. Além disso, os repórteres seriam contidos por barreiras no final da aula.

Olhei para o Harry e vi que ele estava com aquele sorrisinho secreto nos lábios de novo. Naquele dia, ele estava usando uma camiseta do Blink 182 embaixo da jaqueta de camurça, uma indicação de que o gosto musical dele não era como o meu tão retritivo assim. A camiseta era preta, e isso de algum modo parecia ressaltar o verde dos olhos dele mais do que nunca. Ou isso ou era a iluminação da escada, ou sei lá o quê.

-Hey! - Harry disse para mim, abrindo mais um pouco aquele sorrisinho.

Não sei por que, mas algo naquele sorrisinho fez meu coração dar uns pulinhos esquisitos.
Mas claro que isso era impossível. Tipo assim, eu nem gosto do Harry. Eu gosto do Draco.
Daí, por algum montivo, lembrei-me da Rebecca e daquela idiotice de frisson. Será que era isso? Vai ver que era. Será que frisson é quando você olha para um cara e seu coração fica todo esquisito?

A única coisa que eu podia dizer era que estava feliz pelo fato de o Harry não estar na John Adams, de modo que não ouviu falar aquela coisa a respeito do Quarto de Lincoln que estavam circulando. Tipo assim, já era bem ruim ter sentido um frisson pelo cara. A última coisa que eu queria que ele soubesse era que todo mundo na minha escola também parecia saber disso.

Só a idéia de que eu poderia ter um frisson por alguém que não fosse o Draco já me deixou com um tremendo mal humor. Ou talvez tenham sido todos aqueles repórteres. De qualquer modo, em vez de falar oi ou qualquer coisa assim para o Harry, eu só mandei:

-Você não fica cheio de tudo isso? - Balancei meu gesso na direção dos repórteres. - Tipo assim, é assustador, e você fica aí sorrindo.

-Você acha que a imprensa é assustadora? - perguntou Harry. Agora ele não estava simplesmente sorrindo. Ele estava gargalhado. - Não foi você a garota que pulou nas costas de um louco armado?

Olhei para ele, estupefata. Não deu para evitar: percebi que o Harry ficava ainda melhor rindo do que simplesmente sorrindo.

Mas logo tirei da cabeça essa idéia e disse, em tom sério:

-Aquilo não foi nada assustador. Eu simplesmente fiz o que precisava fazer. Se você estivesse lá, teria feito a mesma coisa.

-Não sei não - respondeu Harry, pensativo.

E daí a escolta policial da Molly chegou e, quando ela abriu a porta para sair, qualquer chance de conversar ali na escada foi embora com os gritos dos repórteres. O John meio que empurrou nós dois escada acima, nós entramos e lá estavam os bancos, exatamente como da última (e única) vez em que eu estivera lá. A única diferença verdadeira era que não tinha mais fruta nenhuma em cima da mesinha que ficava no meio do círculo de brancos. Em vez disso, só tinha um ovo branco.

Achei que talvez a Susan Boone tivesse esquecido uma parte do almoço dela ou algo assim. Ou isso ou o mundo tinha enlouquecido e esqueceram de me avisar.

-Então – começou Harry assim que nos acomodamos no nosso banco e arrumamos o bloco de desenho e tudo o mais. - O que é que vai ser hoje? Abacaxi de novo? Ou será que você vai tentar fazer algo mais de acordo com a estação... Uma abóbora, talvez?

-Será que dá para você parar de falar desse negócio de abacaxi? - pedi meio baixinho, para ninguém mais ouvir. Não dava para acreditar que eu tinha experimentado um frisso com um garoto que só sabia tirar sarro da minha cara.

-Ah, desculpa - murmurou Harry, mas não parecia muito arrependido. Tipo assim, ele continuava sorrindo. - Esqueci que você era uma artista sensível e tal.

-Só porque eu não estou a fim de deixar uma ditadora artística esmagar meus impulsos criativos, isso não quer dizer que sou sensível demais - resmunguei, olhando para Susan Boone, que estava no tanque lavando uns pincéis.

As duas sobrancelhas do Harry se ergueram ao mesmo tempo.

-Do que é que você está falando?

- Da Susan Boone - respondi, dando um olhar torto na direção da rainha dos elfos. - Essa coisa de desenhar o que você está vendo. Que babaquice!

-Babaquice? - afinal, ele tinha parado de sorrir. Agora ele só estava com cara de confuso. - Como assim, babaquice?

-Porque onde é que a arte estaria se o Picasso só desenhasse o que via? - cochichei.
Harry olhou para mim, com cara de quem não estava entendendo nada.

-O Picasso passou anos e anos desenhando só o que ele via - afirmou. - Só depois de ele conseguir dominar a habilidade de desenhar exatamente o que via, com precisão absoluta, é que começou a fazer experiências com a percepção do traço e do espaço.

Fiquei olhando para ele, atônita.

-O quê? - perguntei com ar de inteligente. Não tinha entendido nada do que ele tinha dito.

Harry explicou:

-Olha só, é fácil. Antes de começar a mudar as regras, a gente precisa aprender quais são. E é exatamente isso que a Susan está tentando ensinar para nós. Ela só quer que você aprenda primeiro a desenhar o que está vendo, antes de passar para o cubismo, para o abacaxismo ou para qualquer ismo que você escolher.

Foi minha vez de olhar para ele com cara de quem não estava entendendo nada. Isso tudo era novo para mim. O Draco com certeza nunca tinha dito nada a respeito de conhecer as regras primeiro, para depois sair quebrando-as. E o Draco sabia tudo a respeito de quebrar as regras. Tipo assim, não era isso que ele fazia para mostrar às pessoas (como o pai dele, toda aquela gente no clube de campo e o Sr. Esposito) como estavam erradas?
Foi aí que a Susan Boone se afastou do tanque e bateu palmas.

-Certo classe. Tenho certeza de que todo mundo ouviu falar da agitação da aula na semana passada; e a coisa foi mais agitada para algumas pessoas do que para outras. - A Gertie, a Lynn e todo mundo começaram a rir, a Susan deu um olhar significativo na minha direção. - Mas agora todos estão aqui de novo, inteiros, ainda bem... Bom, quase. Então, vamos voltar ao trabalho, certo? Estão vendo aquele ovo? - apontou para o ovo sobre a mesinha, na nossa frente. - Hoje, quero que todos vocês pintem esse ovo. Quem não está acostumado a usar tinta pode optar por lápis de cor ou giz.

Olhei para o ovo em cima da mesa. Estava arrumado sobre um pano de seda branco. Olhei para aquele monte de lápis de cor que a Susan Boone largou em cima do meu banco. Nenhum era branco.

Suspirei e levantei a mão.

Bom, o que é que eu devia fazer? Tipo assim, essa mulher tinha praticamente me chantageado para que eu voltasse à aula. E daí, quando eu cheguei lá, ela nem me deu um lápis de cor branco... Como é que ela queria que eu desenhasse o que eu estava vendo? O que é que ela estava pensando? Tipo assim eu sou super a favor de aprender as regras antes de quebrá-las, mas aquilo ali bem parecia fazer parte da lista de regras.

-Pois não, Mione? - Susan aproximou-se do meu banco.

-Pois é... - balbuciei, abaixando a mão. - Aqui não tem nenhum lápis branco.

-Não, não tem mesmo - confirmou ela. Aí, só me deu um sorriso e começou a se afastar.

-Espera aí - pedi consciente de que o Harry, sentado ao meu lado, devia estar escutando tudo. Ele parecia bastante absorto no próprio trabalho, que tinha começado assim que a Susan Boone terminara de falar com a classe, mas vai saber.

-Como é que eu vou desenhar um ovo branco em cima de um pano branco sem um lápis branco? - eu não queria choramingar nem nada disso. Só que não conseguia entender exatamente o que a Susan Boone queria. Tipo assim era para eu trabalhar com o espaço negativo ou algo assim? Colocar as sombras e deixar o resto branco? O quê?
Susan Boone olhou para o ovo. Daí disse a coisa mais surpreendente que eu ouvi nos últimos tempos, e olha que eu tenho ouvido umas coisas bem surpreendentes, sendo que a última foi saber que a minha melhor amiga, Luna, quer fazer parte da panelinha.

-Eu não estou vendo nada de branco ali - Susan Boone disse educadamente.

Olhei para ela como se fosse louca. Como assim, o ovo e a folha eram tão brancos quanto... Bom, tão brancos quanto o cabelo que caía sobre os ombros dela.

-Hum... - murmurei. - Desculpa, não entendi.

Susan se abaixou, de maneira a enxergar o ovo da mesma perspectiva que eu.

-Lembre-se do que eu disse Mione. Desenhe o que você vê não o que você conhece. Você sabe que aí na sua frente tem um ovo branco e uma folha branca. Mas você está mesmo vendo alguma coisa branca ali? Ou será que você está vendo a cor rosada do sol que reflete da janela? Ou o azul e o roxo que fazem a sombra embaixo do ovo? O amarelo da luz de cima, que se reflete na curva superior do ovo? O verde bem clarinho do lugar em que o pano toca na mesa? Estas são as cores que eu estou vendo. Nada de branco. Nenhum branquinho mesmo.

Para mim, não pareceu que naquele discurso todo houvesse qualquer coisa que tivesse a intenção mais remota de tolher a minha criatividade e o meu estilo natural. O Harry tinha ressaltado que primeiro é preciso aprender as regras para depois quebrá-las. A Susan Boone só estava tentando fazer com que eu enxergasse como ela mesma disse.

Então, olhei. Olhei muito. Com mais atenção do que jamais tinha olhando para qualquer coisa.

E foi aí que vi.

Eu sei que parece idiota. Tipo assim, eu sempre fui capaz de enxergar. Minha visão é 20 por 20.

Mas, de repente, eu vi.

Eu vi a sombra roxa embaixo do ovo.
Eu vi a luz rosada do sol que vinha da janela.
Eu até vi a luz amarelada, parecia com o luar, que refletia em cima do ovo.
E daí, bem rápido mesmo, peguei o primeiro lápis que vi pela frente e comecei a desenhar.
É por isso que eu gosto de desenhar:
Quando a gente está desenhando, parece que o mundo todo à sua volta deixa de existir. É só você, a folha, o lápis e talvez uma música erudita suave de fundo, ou qualquer coisa assim, mas você não fica escutando de verdade, por estar totalmente absorta no que está fazendo. Quando se desenha, não se tem noção do tempo passando, nem do que está acontecendo à sua volta. Quando um desenho flui bem mesmo, você é capaz de se acomodar à uma da tarde e só tirar o olho do trabalho as cinco, sem nem mesmo perceber que passou assim tanto tempo, até que alguém chame a sua atenção para isso, porque ficou tão concentrada na sua criação.

Descobri que não existe nada igual no mundo. Assistir a um filme? Ler? Não mesmo. Só se a história for muito, muito boa. E pouquíssimas são. Quando a gente desenha, entra em um mundo próprio, em uma criação pessoal.

E não existe nenhum mundo melhor do que esse.
E é por isso que, quando você está totalmente imersa no desenho, e acontece alguma coisa que a obriga a sair daquele mundo, é umas cem vezes mais chato do que se você estivesse a fazer a lição de geometria ou qualquer coisa assim e a sua irmã invadir o seu quarto para pedir um frufru de cabelo ou qualquer coisa assim. Nessa situação, acho que seria quase desculpável se você assassinasse essa pessoa.

Claro que se essa pessoa for um corvo preto e enorme, você teria ainda mais desculpas para isso.

-Crááááá! - Joe, o corvo, berrou na minha orelha ao mesmo tempo em que arrancou uma dúzia de fios da minha cabeça e depois saiu voando, fazendo barulho ao bater as asas.

Dei um grito.

Foi impossível segurar. Estava tão entretida no desenho que nem percebi o pássaro se aproximando, nem me liguei que estava armando o bote. Eu gritei, mas não porque o que ele tinha feito doeu (mas, na verdade, doeu sim), mas porque foi totalmente inesperado.

-Joseph! - Susan Boone vociferou, batendo palmas. - Corvo mau! Corvo mau!

Joe fugiu para a segurança de sua gaiola, onde largou meu cabelo e soltou, todo triunfante:

-Corvo lindo!

-Você não é nada de corvo lindo! - Susan Boone o corrigiu, como se ele fosse capaz de entender. - Você é um corvo muito mau.

Então, virou-se para mim e disse:

-Ah, Hermione, desculpe mesmo. Tudo bem com você?

Coloquei a mão no buraco que o Joe tinha feito na minha cabeça. E quando fiz isso, reparei uma coisa: a luz tinha mudado. Não era mais rosada. O sol tinha se posto. Já passavam das cinco, mas, para mim, parecia que só fazia dois minutos que eu tinha começado a desenhar, não quase duas horas.

-Esqueci de fechar a gaiola dele - Susan Boone tentava se explicar. - Preciso lembrar de fazer isso toda vez que você estiver aqui. Não sei por que ele é tão obcecado com o seu cabelo. Quer dizer, ele é superbrilhante, mas...

Foi mais ou menos a essa altura que eu percebi que o banco ao lado do meu estava sacudindo. Olhei e vi que o Harry estava tendo um ataque ou qualquer coisa parecida, daí eu percebi que não era ataque nenhum. Ele estava morrendo de rir.

Ele percebeu que eu estava olhando e disse, entre uma gargalhada e outra:

-Desculpa! Juro mesmo desculpa! Mas se você visse a sua cara na hora que aquele corvo pousou em você...

Eu sou capaz de agüentar uma piada como qualquer pessoa, mas não achei essa daí muito engraçada. Dói quando alguém (ou alguma coisa) arranca o seu cabelo. Talvez não tanto quanto alguém quebra o seu pulso, mas, mesmo assim, dói.

Harry, cujos ombros (que não eram tão largos quanto os do Draco, mas ainda assim eram bastante impressionantes em relação aos ombros dos caras normais) continuavam a tremer com as risadas, prosseguiu:

-Fala sério. Você tem que reconhecer. Foi engraçado.

Claro que ele estava certo. Tinha sido engraçado.

Mas, antes que eu tivesse oportunidade de fazer a minha confissão, a Susan Boone já estava do meu lado, olhando o meu desenho. Já que ela estava olhando, resolvi olhar também. É claro que era exatamente isso que eu tinha feito a tarde inteira. Mas aquela foi à primeira oportunidade que tive de me afastar e ver mesmo o que eu tinha feito.

E não dava para acreditar no que estava na frente dos meus olhos. Era um ovo branco. Em cima de um retalho de seda branco. Era igualzinho ao ovo branco em cima do tecido branco na minha frente.

Mas eu não tinha usado nem um pouquinhozinho de branco.

-Pronto - exclamou Susan Boone, com a voz satisfeita. - Você conseguiu. Eu sabia que conseguiria.

Então, distraída, deu uns tapinhas na minha cabeça, bem no lugar dolorido de onde o corvo tinha arrancado uns fios.

Mas não doeu. Não doeu nadinha. Porque eu sabia que a Susan Boone estava certa: eu tinha conseguido.

Finalmente, eu tinha começado a ver.

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