Heroína Nacional



Acho que, até aquilo acontecer, eu ainda não tinha me ligado.

Tipo assim, eu sabia. Sabe como é, eu tinha pulado nas costas do sr. Uptown Girl e impedi que ele disparasse a arma na direção que desejava.
Mas eu não me liguei que, com aquela ação, eu tinha na verdade salvado a vida do líder do mundo democrático.

Pelo menos, não me liguei até os meus pais entrarem correndo no quarto do hospital um tempinho mais tarde, quando o gesso já estava colocado (e depois de eu ter visto minha cara em todos os canais abertos, além dos canais de notícia a cabo, tipo a CNN, e uns outros programas de entrevistas, tipo o Entertainment Tonight). Os dois apavorados como eu nunca tinha visto antes.

-Hermione! Ah, meu Deus, nós estávamos tão preocupados! - minha mãe gritou, jogando-se em cima de mim e torcendo meu braço ferrado, para o quê, devo acrescentar, ninguém ofereceu nem uma aspirina. É de se pensar que uma garota que salvou a vida do presidente bem que merecia uns analgésicos, mas parece que não.

-Oi, mãe - falei, bem baixinho... sabe como é, aquele jeito como você fala quando está se sentindo mal. Porque eu ainda não tinha conseguido descobrir se os caras do Serviço Secreto tinham aberto o bico sobre eu ter cabulado a aula de desenho, então eu não sabia se estava muito encrencada ou só um pouco. Imaginei que, se eles achassem que eu estava morrendo de dor, iam me dar um desconto.

Mas eles pareciam não ter noção de que eu tinha cabulado a Susan Boone.

-Hermione - minha mãe repetia sem parar, afundando-se na ponta da cama e mexendo o cabelo da minha testa de um lado para o outro. - Está tudo bem com você? Foi só o seu braço? Está com dor em mais algum lugar?

-Não - respondi. - É só o meu braço. Está tudo bem. Mesmo.

Mas eu continuei falando com aquela voz, só por via das dúvidas.

Eu nem precisava ter esquentado a cabeça. Eles não faziam a mínima idéia sobre a história da aula de desenho. Só estavam felizes por eu estar bem. Meu pai até conseguiu fazer umas piadas, só um pouquinho.

-Se você queria mais atenção nossa, Mione, era só pedir. Não precisava se jogar na frente de uma bala.

Hahaha.

Os caras do Serviço Secreto nos deram uns cinco minutos para derramarmos lágrimas e depois bateram na porta. Tinha um monte de coisa que eles queriam me perguntar, mas, como eu sou menor, eles precisavam esperar meus pais chegarem para me entrevistar. Aqui está apenas uma pequena amostra das coisas que eles me perguntaram:

Serviço Secreto: Você conhece o homem que estava segurando a arma?

Eu: Não, não conhecia o cara.

Serviço Secreto: Ele disse alguma coisa para você?

Eu: Não, ele não falou nenhuma palavra para mim.

Serviço Secreto: Nada? Não disse nada quando ele puxou o gatilho?

Eu: Tipo o quê?

Serviço Secreto: Tipo "Isso aqui é para a Margie", ou qualquer outra coisa assim.

Eu: Quem é Margie?

Serviço Secreto: Foi só um exemplo. Não existe Margie nenhuma.

Eu: Não, ele não disse nada mesmo.

Serviço Secreto: Tinha alguma coisa estranha a respeito dele? Qualquer coisa que tenha feito com que você prestasse mais atenção nele, que o destacasse de todas as outras pessoas na rua?

Eu: Tinha sim. Ele estava carregando uma arma.

Serviço Secreto: Além de ele ter uma arma.

Eu: Bom, parece que ele gostava muito da música "Uptown Girl!".


E assim por diante. Durou horas. Horas. Eu tive que descrever o que tinha acontecido entre mim e o sr. Uptown Girl tipo umas quinhentas vezes. Falei até ficar rouca. No final, meu pai deu um basta:

-Veja bem, cavalheiros, achamos muito bom que os senhores queiram chegar ao fundo da questão, mas nossa filha passou por um acontecimento muito traumático e precisa descansar.

Os caras do Serviço Secreto foram legais. Eles me agradeceram e saíram fora... mas alguns ficaram por ali, bem na frente da porta do quarto, e não iam embora de jeito nenhum. Foi o que o meu pai me contou depois que voltou com um pratão com queijo para o meu jantar, já que eu não conseguia mesmo comer nada do que tinha no hospital, que era alguma coisa cozida com ervilhas e cenouras.
Tipo assim, como se as pessoas no hospital já não estivessem bem enjoadas. É isso que servem lá?

Eu não fiquei muito feliz por ter que passar a noite no hospital, já que meu único problema era um pulso quebrado, mas os caras do Serviço Secreto meio que insistiram. Disseram que era para minha proteção.

-Não sei por quê. Vocês já pegaram o cara, né? - argumentei.
Mas eles explicaram que o sr. Uptown Girl (só que eles não o chamavam assim, falavam o Suposto Atirador) estava usando seu direito de ficar calado, e não sabiam se ele fazia parte de alguma organização terrorista que podia querer se vingar de mim por sabotar os planos de matar o presidente.

Claro que isso fez a minha mãe enlouquecer e ligar para Molly para ela se assegurar de que a porta da frente estava trancada, mas o cara do Serviço Secreto disse que ela não precisava se preocupar, porque já tinham mandado agentes vigiarem a casa para nos proteger. Esses agentes, depois eu descobri, também estavam mantendo as hordas de jornalistas longe da nossa varanda da frente. Isso era um pouco aflitivo para a Lucy (com quem eu falei um pouco pelo telefone,quando já era quase meia-noite).

-Caramba - ela se emocionou. - Eu só tentei dar para os caras da TV uma fotinha melhor sua. Fala sério, eles ficaram mostrando aquela foto horrorosa da sua carteirinha de estudante. Eu falei assim: "Caras, ela é muito mais bonita do que isso", e tentei dar para eles aquela foto que a vovó tirou no Natal... sabe, aquela que você está com o vestido da Esprit, que era tão fofo até você tingir de preto, vai saber. Bom, mas daí eu abri a porta e fui até a varanda com a foto, e um monte de gente começou a berrar: "Você é a irmã dela? O que acha de ser a irmã de uma heroína nacional?" e eu estava toda pronta para dizer que é ótimo, quando dois caras de terno praticamente me empurraram para dentro de casa de novo, dizendo que era para a minha própria proteção. Ah, claro que era. O que eu gostaria de saber é se mostrar àquela sua foto para o país inteiro me protege de alguma coisa. Fala sério, na boa, todo mundo vai pensar que eu sou irmã de uma esquisitona horrorosa... que é a sua cara naquela foto, Mione, não quero ofender... e acredite em mim, isso não vai fazer bem para ninguém, ninguém mesmo.

Era bom saber que, por mais que algumas coisas mudem demais, uma coisa, pelo menos, continuava igual: minha irmã Lucy.

Então, bom, eles me obrigaram a passar a noite naquela porcaria de hospital. Observação, foi o que disseram. Mas não era nada disso. Tenho certeza de que ainda estavam me espionando para se certificarem de que eu não fazia parte, secretamente, de nenhum grupo radical anti-governo, e queriam ficar de olho em mim caso eu tentasse escapulir para me juntar aos meus companheiros, ou qualquer coisa assim.

Fiquei me revirando bastante na cama, incapaz de achar uma posição confortável para dormir, porque eu costumo dormir de lado, mas o lado que gosto de dormir é bem o lado do gesso, e não dava para dormir em cima do gesso porque ele era todo duro e grande e, além disso, se eu colocasse peso no braço, ele começava a latejar. Pior ainda, eu estava com saudade do Manet, o que era meio engraçado porque ele é tão peludo e fedido que era de se pensar que eu não sentiria a falta dele deixando a minha cama fedida, mas eu estava com saudade mesmo.

Quando eu finalmente cai no sono, a minha mãe (que não parecia ter tido problema nenhum para dormir na cama ao lado da minha, e que tinha acordado toda saltitante) levantou e abriu as cortinas da janela do hospital para deixar o sol da manhã entrar. Então ela falou tipo assim, para alguém que não tinha dormido nada e além de tudo tinha um braço que doía para caramba:

-Bom dia, dorminhoca!

Mas antes que eu tivesse tempo de perguntar o que é que tinha de bom (tipo assim, naquele dia), minha mãe falou, com a voz chocada, enquanto olhava para fora da janela:

-Ai... meu... Deus.

Saí da cama para ver por que a minha mãe estava dando essa de ai-meu-Deus, e fiquei chocada ao ver umas trezentas pessoas paradas na calçada na frente do hospital, todas olhando para cima, na direção do meu quarto. No minuto que apareci na janela, ouviu-se um barulhão, e todo mundo começou a apontar para mim, sacudindo uns pôsteres e gritando: Hermione.

Meu nome. Estavam gritando o meu nome.

Minha mãe e eu olhamos uma para a outra, boquiabertas, então olhamos para baixo mais uma vez. Tinha vans de televisão gigantes, com antenas de satélite na capota, e um monte de repórteres em volta, com microfones em punho, e policiais por todos os lados, tentando segurar a enorme multidão que tinha aparecido por lá, aparentemente só para dar uma olhada na garota que tinha salvado a vida do presidente.

Bom, eles conseguiram dar uma olhada em mim, sim. Tipo assim, apesar de eu estar, tipo assim, três andares acima, parece que eles não deixavam passar. Possivelmente porque eu estava de camisola do hospital e tinha uma massa gigantesca de cabelo castanho saindo da cabeça, mas vai saber. Eles tipo conseguiram dar uma olhas em mim, sim.

-Humm – minha mãe murmurou enquanto nós duas estávamos lá paradas, olhando para aquela zona lá embaixo. – Acho que você devia... não sei. Acenar?

Parecia uma sugestão razoável, de modo que levantei meu braço bom e acenei.
Mais vivas e aplausos ergueram-se da multidão. Acenei de novo, só para me certificar de que tudo aquilo era por causa de mim, mas não restava a menor dúvida: aquele pessoal estava me aclamando. Eu. Eu, Hermione Granger, aluna do primeiro ano do ensino médio e aficionada por desenhos de celebridades.
Era incrível. Era tipo ser o Elvis ou algo assim.

Depois que eu acenei pela segunda vez, ouvimos uma batidinha na porta e uma enfermeira entrou e falou tipo:

-Ah, que bom, você já levantou. Achamos que sim, quando ouvimos os gritos. – Depois acrescentou, com um sorriso radiante: - Chegaram umas coisas para você. Espero que não se importe, vamos trazê-las agora.

E daí, sem esperar pela nossa resposta, ela abriu a porta. Uma enxurrada de enfermeiras uniformizadas com aventais listradinhos de rosa e branco, cada uma carregando um arranjo floral (e cada um maior do que o outro) foi entrando no meu quarto, até que todas as superfícies planas, inclusive o chão, estivessem cobertas de rosas e margaridas e girassóis e orquídeas e cravos e flores que eu não conseguia identificar, todas saindo de vasos e deixando um cheiro doce e enjoativo no ar.

E, além disso, não eram só flores. Tinha também balões, dúzias deles, com balões vermelhos, azuis, brancos, cor-de-rosa, em forma de coração e espelhados com frases como “Obrigado” e “Fique Boa Logo”. Vieram acompanhado de ursinhos, uns 20 pelo menos, todos de tamanhos e formatos diferentes, com laços no pescoço e segurando cartazes que diziam coisas como SORRIA E AGÜENTE FIRME E MUITO OBRIGADO, DO SEU URSINHO!

Fala sério. Eu fiquei observando enquanto elas entravam e empilhavam todas as coisas, e o único pensamento que rodava na minha cabeça era: “Espera aí. Espera aí. Houve algum erro. Eu não conheço ninguém que me mandaria um ursinho de agradecimento. Não mesmo. Nem de gozação”.

Mas as coisas não paravam de chegar, cada vez mais. Dava para perceber que as enfermeiras achavam tudo aquilo muito engraçado. Até mesmo os caras do Serviço Secreto, parados perto da porta, pareciam estar sorrindo por trás das lentes espelhadas dos óculos escuros.

Só a minha mãe parecia tão estupefata quanto eu. Ela ia correndo até cada buquê que chegava e abria e envelopinho da mensagem, depois lia o que tinha escrito no cartão em tom desconfiado:

“Obrigado por seu ato tão corajoso de bravura. Cordialmente, o procurador-geral da República”.

"Precisamos de mais americanos como você. O prefeito do Distrito de Columbia (Washington D.C.)."

“Para um anjo sobre a Terra, com meus agradecimentos. O povo de Cleveland, Ohio”.

“Com muita admiração por sua coragem sob fogo cruzado. O primeiro-ministro do Canadá.”

“Você é um exemplo para todos nós... o Dalai Lama.”

Isso era desconcertante. Tipo assim, o Dalai Lama acha que eu sou um exemplo? Hum, acho que não. Não se a gente pensar em toda a carne de vaca que eu já comi na vida.

-Tem muito mais lá embaixo – informou a enfermeira de avental.

Minha mãe ergueu os olhos de um cartão escrito pelo imperador do Japão:

-Hã?

-Ainda estamos passando os cartões pelo scanner de radiação e as frutas e as flores pelos equipamentos de raio X – informou o cara do Serviço Secreto.

-Equipamento de raio X? – minha mãe ecoou. – Para quê?

Um dos agentes deu de ombros.

-Lâminas de barbear. Alfinetes. Qualquer coisa. Só por segurança.

-Nunca é cuidado demais – o outro concordou. – Tem um monte de gente maluca por aí.

Parecia que a minha mãe tinha começado a passar mal depois disso. Todo aquele frescor da manhã tinha desaparecido no rosto dela.

-Ah – fez ela, bem baixinho.

Foi logo depois disso que o meu pai apareceu com a Lucy, a Rebecca e a Molly a reboque. A Molly me deu um tapa na cabeça pelo susto que eu tinha dado nela no dia anterior.

-Imagine como eu me senti quando os policiais me disseram que eu não podia passar para pegar você porque tinha acontecido um tiroteio. Achei que você tinha morrido!

A Rebecca foi a mais filosófica a respeito da coisa toda.

-A Mione não faz parte do grupo que corre mais risco de morrer devido à violência de armas de fogo. Este compreende homens de 15 a 34 anos. De modo que eu não fiquei especialmente preocupada.

A Lucy, no entanto, era a que tinha mais necessidade de falar comigo... sozinha.

-Vem aqui – ordenou, e me arrastou para o banheiro do quarto, onde imediatamente trancou a porta atrás de si. – Más notícias – anunciou, falando rápido, mas baixinho; do mesmo jeito que falava com suas colegas animadoras de torcida quando achava que elas não estavam mostrando animação suficiente na pirâmide humana. – Ouvi o diretor do hospital perguntar para o papai quando você estaria pronta para a sua coletiva de imprensa.

-Coletiva de imprensa? – deixei meu corpo cair pesadamente sobre a tampa da privada. Por um segundo, achei, de verdade, que ia desmaiar. – Você está tirando uma da minha cara, né?

-Claro que não – disse Lucy, toda agitada. – Você virou heroína nacional. Todo mundo está esperando a sua coletiva de imprensa. Mas não se preocupe com isso. A sua irmão mais velha Lucy já assumiu o controle.

Dizendo isso, colocou a bolsa de ginástica que carregava na pia. O que quer que estivesse lá dentro fez um barulhão (e eu tinha certeza de que era provavelmente todo o conteúdo do armarinho do banheiro que nós duas dividíamos).

-Vamos começar do começo. Primeiro, vamos cuidar desse cabelo.

A Lucy assumiu o comando naquele banheiro só porque eu estava em um estado físico tão fraco, depois daquela noite sem dormir, com o gesso no braço e tudo o mais. Tipo assim, eu simplesmente não tinha forças para brigar com ela. Eu gritei uma vez, mas acho que os caras do Serviço Secreto não conseguiam me ouvir com o barulho do chuveiro, já que, dessa vez, eles não entraram ali às pressas, com as pistolas em punho, para me salvar.

Mas seria preciso uma tropa inteira de comandos para deter a Lucy. Ela estava esperando por esse momento praticamente desde que eu cheguei à puberdade. Afinal, tinha conseguido me pegar de um jeito que eu não poderia impedir sua ação.
Tinha trazido consigo não somente um jogo completo de roupas para mim, mas também um pequeno arsenal de produtos de beleza que ela parecia ter a intenção de despejar sobre mim enquanto eu estava presa no Box do banheiro, com o braço quebrado, coberto de gesso, esticado para fora, igual a um galho de árvore.

-Isto aqui é awapuhi – disse Lucy, espirrando alguma coisa com cheiro vagamente frutado na minha cabeça. – É um extrato de gengibre havaiano especial. Use para lavar o cabelo. E isso aqui é um esfoliador corporal de damasco...

-Lucy! – berrei quando o awapuhi entrou nos meus olhos e eu não conseguia, por ter só uma mão livre, tirar. – O que é que você está fazendo comigo?

-Estou salvando você – explicou Lucy. – Você deveria estar me agradecendo.

-Agradecendo? Por quê? Por me cegar para sempre com extrato de gengibre havaiano?

-Não, por tentar transformar você em algo que se assemelha a um ser humano. Você tem noção de como é humilhante para mim ver as pessoas me ligando... a noite inteira, ligaram para mim a noite inteira... dando uma de: “Hei, aquela lá não é a sua irmã? O que aconteceu com ela? Ela faz parte de algum tipo de culto?”

Quando abri a boca para reclamar dessa afirmação tão injusta, a Lucy jogou um monte de pasta de dente lá dentro. Enquanto eu me engasgava, ela continuou:
-Olha aqui, pega este condicionador, é do tipo que os cavalariços usam nos animais antes de uma apresentação.

-Eu... – ainda com os olhos cheios de xampu, eu não conseguia ver a Lucy, mas tentei, mesmo assim, atingi-la com o gesso. – Eu não sou cavalo!

-Já percebi – respondeu ela. – Mas você precisa mesmo disto aqui, Mione. Considere tudo isto como uma intervenção estética de emergência. – Lucy enfiou a mão no Box do chuveiro e me empurrou para baixo do jato de água. – Enxágüe e repita, por favor.

Quando a Lucy terminou o serviço, eu tinha sido esfregada, depilada e esfoliada quase à morte. Meu cabelo também tinha passado por uma sessão de secador.

Mas preciso reconhecer que fiquei bem bonita. Tipo assim, eu tinha ficado meio ofendida com o comentário da intervenção. Mas, sob a supervisão cuidadosa da Lucy (além do difusor acoplável), logo meu cabelo perdeu aquela dureza de arame de cobre e, em vez de sair arrepiado bem do topo da cabeça, saiu em cachos sobre os ombros. E apesar de a Lucy não ter conseguido fazer as minhas sardas desaparecerem muito bem, fez alguma coisa para que elas não se destacassem tanto.

Eu não me importei com o extrato de gengibre havaiano, com o esfoliante de damasco, nem mesmo com o condicionador de cavalo. Também dava para agüentar o rímel, a base e o gloss.

Mas a Lucy passou dos limites quando tirou da bolsa de ginástica uma blusa de um azul bem luminoso e uma saia que combinava.

-De jeito nenhum – exclamei, da maneira mais inflexível possível para alguém que só estava usando uma toalha de hospital que nem era muito grande. – Eu uso o seu batom. Eu uso o seu delineador. Mas as suas roupas eu não vou usar.

-Mione, você não tem escolha – e já estava segurando a blusa para eu vestir. – Todas as suas roupas são pretas. Você não pode aparecer na frente da classe média americana toda vestida de preto. As pessoas vão achar que você é adoradora de Satã. Você vai se vestir igual a uma pessoa normal pela primeira vez na vida, e você vai gostar. - Com as palavras vai gostar, Lucy me atacou. Gostaria de observar que ela tinha vantagem injusta sobre mim porque:
• a) ela era cinco centímetros mais alta do que eu e uns cinco quilos mais pesada, e
• b) ela não estava prejudicada por ter um braço engessado e,
• c) ela não precisava se preocupar em ficar segurando uma toalha em volta do corpo, e
• d) ela lê a seção do certo e errado da revista Glamour há muito muitos e muitos anos, de modo que suas convicções estilísticas têm força sobre-humana.
Fala sério. Essas foram às únicas razões por que eu cedi. Também tinha o fato de a Lucy não ter trazido nenhuma roupa minha para eu colocar; as que eu estava usando na véspera tinham sido levadas pelo Serviço Secreto para passar por testes, já que aparentemente havia resíduo de pólvora do tiro do sr. Uptown Girl nelas.

Quando eu afinal saí daquele banheiro, estava usando as roupas da minha irmã, a maquiagem da minha irmã e os produtos de cabelo da minha irmã. Basicamente, eu não tinha nada a ver com a pessoa que sou normalmente. Nada mesmo.

Mas tudo bem. Falando sério, tudo mesmo. Porque eu também não me sentia igual à pessoa que eu sou normalmente, por causa da noite sem dormir, daquelas pessoas lá embaixo com placas e dos ursinhos de agradecimento, mas também por causa do awapuhi e tudo o mais.

Então, quando eu saí do banheiro, eu já estava bem esquisita. Para falar a verdade, eu achava que as coisas não podiam ficar mais esquisitas do que aquilo.
E foi quando a minha mãe, que estava lá parada com cara de preocupada no meio de todas aquelas flores e balões, mandou:

-Hermione, humm, tem alguém aqui que quer falar com você.

Eu me virei, e lá estava o presidente dos Estados Unidos.

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