Um Pouca da Minha Vida



A Luna não conseguia acreditar na tal aula de desenho.

- Mas você já sabe desenhar – repetia sem parar.

Eu, obviamente, concordava em gênero, número e grau. Ainda assim, era bom saber que eu não era a única a pensar que ser obrigada a passar toda terça e quinta-feira das três e meia ás cinco e meia no Estúdio de Arte Susan Boone era uma gigantesca perda de tempo.

- É a cara da Lucy – achou Luna. Estávamos passeando com o Manet pelo Jardim do Bispo na segunda-feira depois da escola. O Jardim do Bispo faz parte do terreno da Catedral Nacional, onde acontecem os enterros de todas as pessoas importantes que morrem em Washington, a capital federal dos Estados Unidos. Só demora cinco minutos a pé de onde a gente mora, em Cleveland Park, até a Catedral Nacional. O que é bom, porque é o lugar preferido de Manet para correr atrás de esquilos, assustar os casais que ficam se agarrando atrás dos arbustos e coisas assim.

O que levanta outra questão: quem é que vai passear com o Manet quando eu tiver no Estúdio de Arte Susan Boone? Molly é que não vai, ela detesta o Manet, apesar de ele ter parado totalmente de roer fios elétricos. Além disso, de acordo com o Dr. Hagrid, o especialista em comportamento animal, a culpa era minha, por ter dado a ele o nome de Monet, que soa como uma negativa. Desde que mudei o nome dele para Manet, as coisas ficaram melhores, apesar de meu pai não ter ficado muito feliz com a conta de US$ 500 que o Dr. Hagrid mandou para ele.

A Molly diz que já é bem ruim ter que ficar limpando tudo o que a gente suja; nem morta que ela vai limpar a sujeira do meu Old English Sheepdog de 4 quilos.

- Não dá pra acreditar que a Lucy fez isso – continuou Luna. – Ainda bem que eu não tenho irmã.

A Luna também é filha do meio, como eu (deve ser por isso que nos damos tão bem). Só que, diferente de mim, a Luna tem dois irmãos, um mais velho e um mais novo... e nenhum deles é mais inteligente ou mais bonito que ela.

A Luna é a maior sortuda.

- Mas, se não fosse a Lucy, teria sido a Gina – observou ela enquanto percorríamos o caminho estreito e torto que atravessava o jardim. – A Gina estava totalmente em cima de você. Sabe como é, porque você só cobrava dela e das amigas dela.

O que era, de fato, a melhor coisa da história toda. Tipo assim, cobrar só de garotas tipo a Gina e as amigas dela. Todas as outras pessoas ganhavam desenhos de graça.

Bom, e por que não? Quando, de brincadeira, eu desenhei um retrato da Luna com o ator preferido dela, o Heth Ledger, a notícia se espalhou, e logo tinha uma fila de gente pedindo retratos ao lado de uns gostosinhos.

No começo, não passou nem pela minha cabeça cobrar. Eu estava mais que satisfeita em dar desenhos de graça para minhas amigas, já que elas pareciam ficar felizes com isso.

E, depois, quando as garotas que não falam inglês da escola mostraram interesse pelos retratos também, eu não podia cobrar delas. Tipo assim, se você acabou de se mudar para esse país (seja para fugir da opressão em sua terra natal ou, como a maior parte das pessoas que não falavam inglês na nossa escola, se seu pai ou sua mãe é embaixador ou diplomata), não dá mesmo para pagar por um desenho com um ator.Percebe, eu sei o que é estar em um lugar onde você não entende o que os outros estão falando: é um saco. Eu aprendi isso da maneira mais difícil, graças ao meu pai (que é responsável pela divisão do Norte da África do Banco Mundial). Ele levou toda a família para o Marrocos durante um ano, quando eu tinha 8 anos. Teria sido legal se alguém lá tivesse me dado uns desenhos do Justin Timberlake de graça, em vez de ficar me olhando como se eu fosse esquisita só porque não sabia como se dizia “Por favor, posso sair da sala?” em marroquino quando precisava ir ao banheiro.

Depois, fui atacada por um monte de pedidos de desenhos de atores das garotas que faziam aula de reforço. Bom, eu não podia cobrar de quem precisava de reforço, porque eu sei o que é ter que freqüentar essas aulas. Quando voltamos do Marrocos, ficou determinado que minha língua presa (eu assobiava para falar todos os ss) não ia desaparecer com o tempo... não sem um pouco de ajuda profissional. De modo que fui obrigada a passar por sessões de fonoaudiologia enquanto meus colegas estavam na aula de música.

Como se isso já não fosse bem ruim, sempre que eu voltava para a minha classe normal, a Gina Weasley ficava tirando sarro da minha suposta idiotice (e ela era minha melhor amiga antes de eu ir para o Marrocos). Então, shazam, quando eu voltei, ela começou a dar uma de: “Quem é Hermione?”

Era como se ela não lembrasse mais que costumava ir à minha casa todo dia depois da escola para brincar de Barbie. Não, de repente ela estava “se dando bem com os garotos” e correndo de um lado para o outro no recreio, tentando beija-los. O fato de que eu, na terceira série, preferiria comer vidro moído a permitir que os lábio de um colega de classe encostassem nos meus (especialmente os do Miguel Corner que era o garanhão da classe naquele ano), imediatamente serviu para que eu recebesse o rótulo de “imatura” (e a língua presa provavelmente também não ajudou muito) e a Gina me largou como se eu fosse uma batata quente.

Por sorte, isso só serviu para alimentar meu desejo de falar direito. No dia em que fui dispensada da fonoaudiologia, fui correndo até a Gina e a xinguei de estúpida, sacana, puxa-saco, safada, sem-vergonha e sabenta.

Desde que isso aconteceu, não nos falamos muito.

Então, como eu sei bem que o pessoal do reforço precisa de um desconto de vez em quando (principalmente o pessoal que usa capacete para não se machucar e coisas assim), declarei que, para elas, os meus serviços de desenho de atores eram gratuitos, assim como para as minhas amigas que não falavam inglês da Escola Adams.

Pra falar a verdade, eu era uma espécie de ONU particular, fornecendo auxílio na forma de representações altamente realistas de Freddie Prinze Jr. para as desprivilegiadas.

Mas revelou-se que a Gina Weasley, agora presidente do primeiro ano e um pé no saco para mim, não estava gostando nada disso. Não por eu não cobrar das garotas que não falam inglês, mas sim por só cobrar dela e das amigas dela.

Mas o que é que ela estava pensando? Tipo assim, como é que eu ia cobrar da Luna, que tinha sido minha melhor amiga desde que eu voltei do Marrocos, quando descobri que a Gina tinha dado uma de Anakin e passado para o lado negro? A Luna e eu tínhamos exatamente a mesma opinião a respeito de como a Gina tratava a gente (a Gina até hoje se diverte muito tirando sarro das saias até o joelho da Luna, que é a única coisa que a Sra. Lovegood, a mãe dela, permite que ela use, já que é tão evangélica e tal) e desprezávamos Rodd Muckinfuss com a mesma intensidade.

Ah, é. Com certeza, não vou dar desenhos grátis do Orlando Bloom para ninguém igual à Gina .

Não mesmo.

Gente igual à Gina não é capaz de compreender o conceito de ser legal com alguém que não é magrinha, nem loira, nem se cobre de Abercombie and Fitch dos pés à cabeça (talvez porque ela não tenha sido obrigada a fazer sessões de fonoaudiologia, muito menos freqüentar uma escola em que ninguém falava a língua dela).

Em outras palavras, com qualquer pessoa que não seja a própria Gina Weasley.

A Luna e eu conversávamos sobre isso ao voltarmos do parque da Catedral (quer dizer, sobre a Gina e a impertinência dela) quando um carro se aproximou de nós e vi meu pai acenando de trás do volante.

- Oi, garotas – exclamou a minha mãe, debruçando-se por sobre o meu pai para falar conosco, já que estávamos mais próximas do lado do motorista. – Acho que nenhuma de vocês tem o interesse de ir ver o jogo da Lucy, não é mesmo?

- Mãe! – disse Lucy, do banco de trás. Ela estava com toda a parafernália de animadora de torcida. – Nem perca seu tempo. Elas não vão querer vir e, mesmo que quisessem, olha só, dá uma olhada na Mione. Eu ia ficar com vergonha de ser vista com ela.

- Lucy! – disse meu pai, em tom ameaçador. Mas ele nem devia ter se incomodado. Eu já estou superacostumada com os comentários depreciativos que a Lucy faz a respeito da minha aparência.

Tudo é muito lindo e fácil para gente igual à Lucy, cuja principal preocupação da vida é não perder nenhuma liquidação da Club Mônaco. Quando começaram a vender Paul Mitchell na perfumaria do nosso bairro, a Lucy foi tomada de uma felicidade do tipo que não se via desde a queda do Muro de Berlim.

Eu, no entanto, sou um pouco mais preocupada com questões mundiais, como por exemplo o fato de que trezentos milhões de crianças por dia vão para a cama com fome e que programas de arte das escolas são a primeira coisa a ser cortada sempre que o conselho local de educação descobre que está trabalhando no vermelho.

E é por isso que, no começo do ano letivo, eu tingi todo o meu guarda-roupa de preto para mostrar que
• a) eu estava de luto pela minha geração, que claramente não liga para nada além do que vai acontecerem Friends semana que vem, e
• b) moda é para gente falsa igual à minha irmã.

Ah, sim, algumas veias da minha mãe quase estouraram quando ela viu o que eu tinha feito. Mas veja bem, pelo menos ela sabe que uma de suas filhas realmente pensa em outra coisa além de unhas francesinhas.

Mas a minha mãe, diferente da Lucy, não ia desistir de mim assim tão fácil. E foi por esse motivo que, ali no carro, ela abriu um sorriso radiante, sem motivo nenhum, se você quiser saber a minha opinião. Estava chovendo e a temperatura beirava só uns 4°C na rua. Não era o tipo de dia de novembro que motivaria qualquer pessoa (e especialmente uma pessoa completamente desprovida de espírito infantil, como eu) a ficar sentada em uma arquibancada, assistindo a um monte de carinhas musculosos correndo atrás de uma bola com garotas de suéter branco e roxo apertado demais (como minha irmã) animando a torcida para eles.

- Nunca se sabe – disse mamãe para Lucy, do banco da frente. – Elas podem mudar de idéia.

E dirigiu-se a nós:

- O que vocês acham? Mione? Luna? Depois seu pai vai nos levar a Chinatown para comermos um yakisoba – olhou para mim. – Tenho certeza que dá para achar um hambúrguer ou algo assim para você, sabe.

- Que pena Sra. Granger. – começou Luna. Mas não parecia nem um pouco se lamentar de nada. Na verdade, parecia bem contente por ter uma desculpa para não ir. A maior parte dos eventos escolares é uma agonia para Luna, por causa dos comentários costumeiros da panelinha sobre suas roupas um tanto ou quanto antiquadas (“Onde foi que você parou sua carroça?” e coisas assim). – Preciso ir para casa. Domingo é o dia de...

-... descanso. É , eu sei. – Minha mãe já tinha ouvido isso um monte de vezes. O Sr. Lovegood, que é diplomata na embaixada hondurenha aqui em Washington, insiste na idéia de que o domingo é dia de descanso e faz todos os filhos ficarem em casa nesse dia, toda semana. A Luna tinha conseguido se libertar durante meia hora para devolver O patriota (que ela viu sete vezes) na locadora Potomac. A esticada até a Catedral Nacional foi um desvio completo. Mas como Luna presumiu que a caminhada incluía uma visita à igreja, os pais dela não ficariam assim tão bravos se descobrissem.

- Richard. Carol. Desistam. – Rebecca, ao lado de Lucy no banco traseiro, ergueu os olhos de seu laptop tempo suficiente para exprimir sua profunda insatisfação com a situação.

- Papai – corrigiu minha mãe, encarando Rebecca – Papai, não Richard. Mamãe, não Carol.

- Desculpa – emendou Rebecca. – Podemos ir agora? A bateria só dura duas horas, sabe, e eu preciso entregar três planilhas amanhã.

Rebecca, que com 11 anos deveria estar na quinta série, freqüenta a Horizon, uma escola especial em Bethesda para crianças superdotadas, onde tem aulas de nível universitário. É uma escola de CDFs, tanto que o filho do atual presidente, o maior CDF que já existiu na face da Terra (estou falando do filho mais, pensando bem, o pai também é), está matriculado lá. A Horizon é tão CDF que eles nem dão notas nas provas, só entregam boletins semestrais. O último boletim da Rebecca dizia: “Rebecca já lê textos de nível universitário, mas precisa alcançar os colegas em termos de maturidade emocional e trabalhar seus relacionamentos pessoais no próximo semestre. ”

Se a idade intelectual da Rebecca pode girar perto dos 40, ela age como se tivesse 6 anos e meio. Tem sorte por não freqüentar uma escola para pessoas com inteligência normal, como a Lucy e eu: as Ginas Weasley’s do círculo das garotas de 11 anos a devorariam viva. Especialmente quando se leva em conta sua falta de traquejo social.

Minha mãe suspirou. Sempre foi muito popular no ensino médio, igual à Lucy. Até ganhou a eleição para Miss Espírito Estudantil nessa época. Minha mãe não entende onde errou comigo. Acho que culpa meu pai. Ele não foi eleito nada no ensino médio porque, igual a mim, passava a maior parte do tempo imaginando como seria estar em outro lugar.

- Tudo bem – mamãe finalmente assentiu. – Fique em casa, então. Mas não...

-...abra a porta para estranhos – completei. – Já sei.

Como se alguém um dia viesse bater na nossa porta, a não ser a Mulher do Pão. A Mulher do Pão é casada com um diplomata francês que mora no fim do quarteirão. A gente não sabe o nome dela. Simplesmente a chamamos de Mulher do Pão, porque a cada três semanas mais ou menos ela fica maluca, acho que é porque sente falta demais de seu país natal, e assa uns cem pães franceses que sai vendendo de porta em porta pelo bairro, por 50 centavos cada um. Eu sou viciada nas baguetes da Mulher do Pão. Na verdade, é a única coisa que eu como, além de hambúrgueres, já que não gosto da maior parte das frutas e de nenhum tipo de verdura, nem de peixe e nada com alho.

A única pessoa que vem bater na nossa porta, além da Mulher do Pão, é o Draco. Mas não temos permissão para deixa-lo entrar em casa se nossos pais ou a Molly não estiverem. Isso porque, uma vez, o Draco destruiu as janelas do consultório do pai dele, em Bethesda, com uma espingarda de chumbinho, para protestar contra a prescrição de remédios testados em animais. Meus pais se recusam a entender que o Draco só tomou uma ação tão drástica para chamar a atenção do Sr. Lucio para os animais torturados. Eles acham que ele fez aquilo só para se divertir, o que é obviamente falso. O Draco nunca faz nada só para se divertir. Ele está seriamente empenhado em transformar o mundo em um lugar melhor.

Pessoalmente, eu acho que, se mamãe e papai não querem o Draco em casa quando eles não estão, é para que ele e Lucy não fiquem se agarrando lá. O que é uma preocupação válida, mas eles poderiam dizer a verdade, em vez de ficar se escondendo atrás da desculpa da espingarda de chumbinho. É bem improvável que, algum dia, o Draco vá atirar nas NOSSAS janelas. Minha mãe fica sempre do lado dos bonzinhos, já que é advogada da Agência de proteção Ambiental.

- Vamos lá, pessoal – Lucy choramingou do banco traseiro. – Vou chegar atrasada ao jogo.

- E nada de desenhar celebridades até terminar sua lição de alemão – minha mãe gritou enquanto meu pai arrancava com o carro.

Luna e eu ficamos olhando enquanto eles se afastavam; as rodas do carro deslizavam sobre as folhas secas espalhadas pela rua.

- Achei que você estivesse proibida de desenhar celebridades – disse Luna ao dobrarmos a esquina.

Manet, ao ver um esquilo do outro lado da rua, me arrastou até o meio-fio, quase provocando um deslocamento do pescoço.

- Eu estou liberada para desenhar celebridade – informei, elevando a voz para que ela me ouvisse por cima dos latidos roucos de Manet. – Só não posso cobrar das pessoas.

- Ah – Luna refletiu sobre o assunto.

Depois pediu, em tom de súplica:

- Então, será que você poderia POR FAVOR desenhar o Heath para mim? Só mais uma vez? Prometo que nunca mais peço.

- Acho que sim – respondi com um suspiro, como se aquilo fosse á maior chateação para mim.

Mas é claro que não era. Porque, quando você adora fazer algo, você quer fazer a mesma coisa o tempo todo, mesmo se ninguém estiver pagando para isso.

Pelo menos era assim que eu me sentia a respeito dos desenhos.

Até que conheci a Susan Boone.

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