O Descendente de Godric Gryffi



Ao sair da loja de Madame Malkin, Severus se sentiu quase contente. Seus olhos estavam bem melhores, tinha algum dinheiro no bolso, e bastante tempo, uns dez minutos, para saborear um delicioso sorvete de nozes almiscaradas na Florean Fortescue. Seu rosto devia ser o símbolo da felicidade, ao segurar junto à boca uma enorme casquinha com quatro bolas de seu sorvete preferido. Mas é claro que felicidade vai-se embora assim que tomamos consciência dela. Tropeçando num gatinho vira-lata que lhe atravessara o caminho, Severus viu seu sorvete, ou pelo menos dois-terços dele, ir parar no chão, para grande alegria do pobre gatinho faminto. Ainda com o rosto no chão, e a vergonha de ter se estatelado nele, ele ouviu uma risada. Levantou-se e encarou um garoto, mais ou menos da sua idade e um pouco mais alto, que ria gostosamente da sua trapalhada. Em poucos segundos ele viu a diferença que os separava. Aquele riso era de pura alegria e ingenuidade, como somente crianças felizes, e que nunca se sentiram amarguradas, podem dar. O menino segurava a mão de uma mulher, parecida com ele, que também sorria. Era óbvio que se amavam. Era óbvio que nunca Severus daria uma risada pura como aquela. Foi então que um ódio maior que sua vontade se instalou dentro dele, algo que ele podia sentir crescendo dentro de si. O menino, talvez percebendo o que se passava em sua alma, parou de rir. Sua mãe olhou atentamente para Severus e disse:
- Não se preocupe, se você quiser, mais tarde estamos indo para a Florean e tenho certeza de que Tiago adoraria lhe pagar um sorvete, para compensar esse que você perdeu.
O menino fez uma cara que contrariava tudo que a mãe dissera mas, em pouco tempo, entendeu que fora grosseiro ao rir de Severus. E disse:
- É. Agora nós vamos comprar uma varinha, e logo depois vamos tomar um sundae, você topa?
Severus agora sentia o resto de seu sorvete derreter e sujar suas mãos. Mas o ódio que havia nascido não tinha estancado, muito pelo contrário. Era mais fácil ele morrer do que aceitar sequer uma gota de sorvete daquele garoto.
- Muito obrigado... - sibilou; uma voz fria que ele mesmo desconhecia. - Minha tia não gosta que eu aceite ofertas de estranhos.
Vendo o rosto de desapontamento e mágoa da mulher, e a surpresa no rosto do menino, Severus se sentiu melhor. Já podia encará-los sem se sentir inferior. Tinha provado que era orgulhoso e que não se vendia por um sorvete qualquer.
Deixou os dois se encaminharem para a loja do senhor Olivaras, olhando atentamente o relógio. Devia se encontrar com a tia em dois minutos. Provavelmente ela iria aparatar lá, onde quer que estivesse. Severus sentiu, por um breve segundo, ao ver o guri olhar para trás, um impulso de ir atrás deles, de pedir desculpas, de fazer amizade com o menino de riso límpido. Mas isso durou apenas um segundo. Ouviu um miado. Era o gatinho, que parecia um filhote, bem magrinho, encarando o resto de sorvete que tinha nas mãos meladas.
- Tome, pode lamber - disse ele, fazendo esforço para não sentir pena do filhotinho, desamparado e desprotegido. "Provavelmente sua mãe o abandonou também", pensou Severus. E decidiu que iria ficar com o gato, a quem chamaria de Fuligem, por causa de seu aspecto empoeirado, meio cinzento, meio marrom. Escondeu o gatinho por dentro de suas vestes e caminhou para a loja de Seu Olivaras.
Chegando lá, não foi surpresa alguma ver o menino, ainda com sua mãe, que estava esperando o troco e parecia um pouco exasperada. A lojinha era mínima e não cabia todo mundo ali. Severus deu meia volta, mas não antes de ouvir a voz sussurante do senhor Olivaras comentar:
- Sim, que beleza, mais um descendente de Gryffindor em Hogwarts, não é mesmo? Mas... é o último, não é mesmo? - a voz do velho denotava uma falsa tristeza.
Severus parou, curioso. "Último descendente dos Gryffindor"? Então aquele menino devia ser filho de Julius Potter, que morrera em trágico acidente cerca de dois anos atrás...
- Senhor Olivaras, o senhor me deve dez sicles, por favor, estou com um pouco de pressa...
O velho a encarou com seus olhos grandes, mas apenas sorriu...
- Sim, claro.. claro... - e nesse momento pousou os olhos em Severus, que tinha se virado para observar melhor como era o filho de Julius Potter.
- Humm... meu próximo cliente também está com pressa, pelo que pressinto.
Severus corou. Olhou para o menino da mesma forma que olhara para o gatinho, tentando não sentir pena. Mas foi mais fácil não sentir pena de Tiago. Parecia tão alegre como antes.
- Sim, nós já estamos de saída - exclamou a mãe de Tiago, parecendo bem aborrecida ao colher as moedas que o Sr. Olivaras lhe estendeu, sem tirar os olhos de Severus.
E assim lá estava ele, sozinho com o Sr. Olivaras, e nem sinal de sua tia. Olhou o relógio, ao mesmo tempo em que acomodava Fuligem, que miava dentro de suas vestes, esperando que o velho não o incomodasse muito com perguntas. Ela já deveria estar lá...
- Bom, vamos começar a experimentar? - perguntou o velho.
- Mas minha tia ainda não chegou, eu não tenho dinheiro - exclamou Severus, nervoso.
- Mas ela chegará, rapaz, ela chegará...
Algo na fisionomia do velho lhe dava enjôo. Foi pegando as varinhas, uma a uma, a mão ainda meio grudenta do sorvete, e nenhuma servia. Até que uma, de ébano e corda de coração de dragão, soltou fagulhas verdes e prateadas. Severus bocejou, olhando o relógio mais uma vez, enquanto o Sr. Olivaras embrulhava sua varinha.
- Prontinho: seis galeões e sete sicles...
- Mas eu não tenh...
Nesse momento Soraya aparatou, parecendo muito nervosa e afogueada, como se tivesse corrido muito.
- Ah, sim, Sr. Olivaras, Severus já escolheu a varinha? Muito bem... - ela parou para respirar. Retirou as moedas da bolsa, depositando-as no balcão.
- Pois bem... Acho que esse novo semestre em Hogwarts será muito interessante - sussurou o velho. - Tiago Potter e mais um dos Snapes... Quem sabe ficam na mesma casa?
Severus acompanhou a tia, que lhe puxava pelo braço apressada, sem ao menos se despedir do comerciante.
Ao chegarem na rua, Severus lhe contou sobre Tiago Potter e o sorvete.
- Mas você está todo sujo - exclamou Soraya, batendo com força nas vestes do menino, até que Fuligem escapuliu, com um miado.
- E... o que é isso?
- É o meu gato... - falou Severus, olhos no chão.
- Que gato? Você comprou um gato? Você sabe que seu pai odeia gatos...
- Não, não comprei. Ele foi abandonado pela mãe, tia... Eu.. eu quero cuidar dele...
Soraya apertou os lábios, olhando para o garoto com fúria. Mas respirou fundo e sacudiu a cabeça para trás, com uma expressão mais tranqüila no rosto.
- Está bem, está bem, mas não chore se esse gato começar a perseguir Nictus depois que crescer. E dê banho nessa coisa antes de levar para o seu quarto... E nem pense em comentar sobre isso com seu pai... e...
- Tá legal, tá legal - gritou Severus, feliz, acariciando Fuligem, que parecia feliz também.
- Vamos, vamos, dessa vez vamos pegar a lareira do Caldeirão Furado, que antes eu quero tomar uma cervejinha...

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