A imortalidade do Mal



Assim que pararam de rodopiar pelo armário sumidouro, Mia foi a primeira a se precipitar para fora, seguida de perto por Hermes. O loiro se apoiou na maçaneta do armário, visivelmente tonto, os olhos saltados e a pele do rosto um tanto esverdeada. Mia olhou em volta e percebeu que, para variar, o Oráculo não estava ali. A sala continuava exatamente igual às outras vezes em que eles a visitaram: as paredes cheias de inscrições em preto, mais ou menos concentradas, dependendo do lugar que ocupavam; a bacia de pedra no centro da sala, onde a ruiva costumava assistir às lembranças que não eram suas, a massa nem líquida, nem gasosa rodopiando e produzindo uma coloração prateada ao seu redor; o mesmo divã de couro negro posicionado à esquerda da porta do armário. Aquilo chegava a ser incômodo se comparado ao turbilhão em que a vida de Mia havia se transformado desde a primeira vez em que pisou ali.

A ruiva só se deu conta da companhia de Hermes quando foi despertada de sua observação por uma tosse engasgada, como se tentasse conter algo que quer ser expelido a todo custo. Mia voltou o olhar para o amigo, ainda apoiado na porta do armário, e por alguns instantes esqueceu o ressentimento pela ousadia anterior: Hermes estava num estado lastimável. Os rodopios da viagem não poderiam ter sido piores para alguém que bebeu além da conta. Via-se que ele estava tonto a ponto de não conseguir concentrar os esforços para que as pernas sustentassem o resto da estrutura corporal. Mia colocou a mão na testa do amigo e, no mesmo instante, um pequeno feixe de energia vermelha se desprendeu da menina. O resultado foi imediato: o rosto de Hermes ganhou cor e ele conseguiu, com alguma dificuldade, respirar fundo e endireitar os ombros.

- Obrigado – murmurou, a voz um pouco sem forças. – Eu não gosto da forma como temos que viajar no mundo mágico. É nauseante.

- Você bebeu demais, Hermes – a frieza na voz da menina era evidente e surpreendeu o loiro por alguns instantes. – Foi isso que fez a viagem ser desconfortável.

- Ora, Mia, eu...

Hermes queria discutir o assunto, mas ficou claro para a menina que aquilo não os levaria a lugar algum. Ela ignorou categoricamente o loiro e se dirigiu para o centro da sala, apoiando as mãos geladas na borda da Penseira. Havia deixado o casaco na mui antiga e nobre casa, e agora sentia o ar gelado da sala, embora não houvesse janelas. Então, sentiu um arrepio que não parecia ter sido provocado pela baixa temperatura. Na verdade, parecia... medo. Hermes, que agora estava ao seu lado, encontrou o olhar de Mia quando ela o levantou, e ambos se encararam como num sinal de compreensão. A ruiva sabia que aquilo que iriam conhecer a partir do momento em que mergulhassem naquela lembrança seria algo mal, e que precisariam enfrentar muito em breve.

Esquecendo-se por completo do beijo e posterior insulto trocado, Mia agarrou a mão do amigo, que também estava gelada, e sentiu a onda de energia invadir seu corpo como num campo magnético. Sem dizer nenhuma palavra, fez com que ele a imitasse e mergulhou na mistura da bacia de pedra. Ambos rodopiaram novamente até cair de pé no centro de um aposento escuro. A única luz que brilhava ali vinha de um candeeiro pousado sobre uma mesa de madeira envelhecida, mas que um dia ostentara certa riqueza. As cadeiras de espaldar alto estavam enfileiradas, os estofados vermelhos puídos e cheios de buracos de traças. O pó cobria tudo, exceto a parte da mesa da qual a dupla de amigos estava mais afastada. Sem entender muito bem o que acontecia, Hermes apenas acompanhava o olhar de Mia, sem dizer nenhuma palavra. Três pessoas ocupavam-na: a primeira delas era um homem de cabelos muito ruivos e, naquele momento, bastante mal cortados; a segunda, uma mulher, deixava que a cabeleira comprida e castanha caísse pelo rosto, tentando, em vão, esconder o ar de cansaço; e a terceira, no entanto, tinha uma expressão determinada nos olhos muito verdes, apesar da evidente magreza do corpo. Era este último quem examinava um grande mapa desenhado num pergaminho envelhecido, traçando pontos com a varinha em riste, sem parar de falar:

- Então, encontrei a última horcrux que eu conhecia na antiga casa dos Riddle. Nhymphadora Tonks ficou responsável por destruí-la, e foi aí que tivemos a nossa última baixa.

- Harry! – a moça dos cabelos castanhos, que Mia reconheceu como sendo sua mãe mais jovem, protestou com uma entonação de voz que deixava transparecer sua indignação. – Você fala de Tonks como se ela fosse um número no meio de um exército gigante, e que não fizesse a menor diferença! Isso me deixa irritada!

- Cara, é a Tonks – agora o pai da ruiva falava, afastando com as costas da mão os cabelos compridos que insistiam em cair sobre seus olhos. – Você já viu o estado em que o Lupin ficou por causa disso?

- Eu sei – o garoto de cabelos negros e óculos, que Mia e Hermes sabiam ser Harry Potter, pousou a varinha sobre a mesa e levantou o corpo da cadeira, apoiando os braços na mesa para encarar os amigos. Seu rosto estava visivelmente transtornado. – Vocês acham que não sou uma das pessoas que mais sente a perda de Tonks? Eu deveria ter feito esta caçada sozinho! Por isso mesmo eu tentei fugir da Toca depois do casamento do Gui, mas vocês vieram atrás de mim. Eu tinha medo de que pudesse perdê-los. Mas nós três conseguimos encontrar e destruir o medalhão e Nagini. Depois, a Ordem acabou por nos encontrar, e montamos as estratégias que nos fizeram localizar a taça. Como eu poderia saber que, depois de resgatá-la com minhas próprias mãos da casa do pai de Voldemort, a peça ainda amaldiçoaria quem a destruísse?

- É... – Hermione suspirou antes de continuar. - Um truque bastante inteligente de Voldemort, devemos admitir.

- O qual eu deveria ter previsto, Hermione. Afinal, Dumbledore ficou bastante lesionado depois de destruir o anel de Gaunt. Estes objetos estão cheios de uma maldição antiga e concentrada, e é evidente que precisamos tomar cuidado antes de acabarmos com eles.

- Uma boa dica na hora em que você for destruir o medalhão, Harry. Aliás, por que você não fez isso ainda? – Rony questionou o amigo.

- Não sei, Rony – Harry voltou a puxar a cadeira e se sentou, batucando os dedos na mesa, sem conseguir encarar o amigo. – Ainda não consegui encontrar um jeito de destruí-lo.

- Acho que você deveria mostrá-lo para a Ordem – Hermione assumiu o ar de racionalidade que lhe era característico. – Afinal, eles já sabem sobre as horcruxes, só terão a contribuir com a sua missão, Harry!

- Por mim, eles não deveriam nem saber da existência das horcruxes. Eu queria ter resolvido tudo isso sozinho, do meu jeito, sem envolver mais gente inocente nesta história toda e...

- Como sempre, você está querendo bancar o herói, não é mesmo, Potter? Deprimente...

Como era a primeira vez que Hermes estava mergulhado numa lembrança, não sabia que não poderia ser tocado e pulou para o lado antes que o próprio pai passasse através dele. O choque era evidente: apesar de bem mais magro e parecendo bastante doente, o Draco Malfoy jovem era exatamente igual a Hermes. Ou seja, o filho não negava o pai que tinha. Mia também ficou fascinada com a semelhança antes de registrar que o trio sentado à ponta da mesa havia se levantado. Os três encaravam o loiro, que desfilava pelo aposento com um andar nobre, sem perder o ar de arrogância, mesmo estando visivelmente debilitado.

- O que você está fazendo aqui, Malfoy? – a voz de Harry estava cortada pelo ódio, sem que ele pudesse se conter. – Você deve ficar trancado no quarto do último andar enquanto estamos aqui. Não quero que escute nada do que se passa em nossas reuniões, porque, definitivamente, cogumelos venenosos não mudam sua essência – ao ouvir sua própria frase repetida pela boca do amigo, Rony aprovou com um aceno de cabeça.

- Ah, qual é, testa rachada? – Draco sorria, desdenhoso, enquanto apanhava um copo e enchia de água da torneira, que rangeu pela falta de uso. – Eu posso ir e vir dentro desta casa, mesmo que esteja aprisionado pela Ordem de qualquer coisa que vocês seguem.

- Você é um ingrato ridículo e deveria se afundar na sujeira que cobre estes móveis antes que pudesse pronunciar qualquer feitiço para se salvar – Rony avançara para o loiro, os olhos azuis chispando de raiva, mas foi prontamente detido por Hermione, que o segurou pelo braço antes que ele pudesse destroçar Draco. O loiro, desta vez, gargalhou alto.

- Ah, Weasley! Você não aprende mesmo. Nada pode me tocar, agora que estou sob a proteção da Ordem da Fênix - Draco enfatizou as palavras com um tom jocoso. - Não era isso que Dumbledore queria? Não foi isso que ele me ofereceu em troca se eu não o matasse? Agora, estou aqui, cumprindo a vontade de um morto!

- Como é que você se atreve, Malfoy, a se gabar da escolha de matar ou não um dos maiores bruxos de todos os tempos? – Harry estava lívido, de pé em frente ao loiro. – Você foi patético e covarde, isso sim, incapaz de cumprir a missão ordenada por aquele que dizia ser seu mestre!

Desta vez Harry não foi capaz de se conter e voou para cima de Draco. Despreparado, o loiro emborcou no chão com a força do soco, o sangue aflorando e manchando o rosto encovado. Mia deu um passo para trás para que Draco não atravessasse seu corpo e produzisse uma sensação desagradável. Ao mesmo tempo, levou a mão à boca para conter um grito de susto. O loiro enxugou o sangue do rosto com a manga da capa negra e proferiu vários palavrões antes de se levantar e correr para fora da cozinha. Hermione estava tão chocada quanto Mia.

- Harry! O que foi que você fez?

- Ah, Hermione, não me venha com essa – o peito de Harry subia e descia com a respiração difícil, a cicatriz em forma de raio brilhando intensamente na testa vermelha de fúria. – Quem foi que socou o Malfoy no nosso terceiro ano em Hogwarts, hein?

- Bem... eu... – Hermione não tinha mais argumentos.

- Então – Rony sacudiu a cabeça, como que para afastar a vontade inadequada de rir diante da lembrança de Malfoy apanhando de Hermione. Em seguida, lacrou a porta de entrada do aposento com um feitiço antes de prosseguir. – Será que nós podemos voltar a falar sobre a relíquia de Ravenclaw?

Mia e Hermes sentiram um característico puxão, como se tivessem sido fisgados por um anzol pelo umbigo. No momento seguinte estavam novamente do lado de fora da bacia de pedra.

- Bem vindos, Wyrdness. Creio que deveis ter milhões de perguntas. Eu tenho algumas respostas. Mas, antes de qualquer coisa, Hermes, tome isto – e o Oráculo ofereceu ao loiro uma poção fumegante dentro de uma xícara azul. – Vai curar os excessos da noite.

Mia olhou para Hermes com a mesma expressão que Hermione assumiu momentos antes diante dos amigos na Penseira. A atitude só provou ao loiro que ela não podia ser filha de mais ninguém que não da senhora Weasley.

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