A dama de Vermelho



Hermes não fez mais nenhum comentário sobre o choro compulsivo no ombro de Mia. A ruiva também evitou conversar sobre isso com o amigo, limitando-se a prestar atenção ao que redigia, enquanto o loiro dava palpites no texto em alguns momentos, e rolava um novelo de lã perseguido por Bichento em outros. Terminado o dever escolar, Hermes vestiu novamente o blusão e saiu para enfrentar a neve do lado de fora do apartamento, rumo à sua casa.

Quando fechou a porta depois de ver o amigo partir, Mia encostou as costas na madeira e escorregou suavemente para o chão, pressionando as têmporas com a palma das mãos e colocando os dedos entre os cachos ruivos. Sentou-se no carpete macio e ficou ali, com os joelhos dobrados e envolta em pensamentos, vendo a neve que começava a cair do lado de fora da janela. Podia ouvir o barulho da avó cantando e preparando o jantar na cozinha. Mas sentia-se distante dali. Retornava mais uma vez ao lugar de onde suas lembranças jamais sairiam: Azkaban. A dor no peito era profunda e precisou lutar consigo mesma para conter as lágrimas que mais uma vez afloravam nos cantos dos olhos castanhos. Estava cansada de chorar. A sensibilidade à flor da pele, que sempre lhe fora característica, agora a irritava. Precisava agir! Mas não sabia ainda o que fazer além de tentar aprender, sem sucesso, a conjurar o patrono que poderia vencer os dementadores e vingar a morte de Daniel.

Para piorar a situação, duas coisas não aconteceram no último mês e fizeram falta para Mia, contribuindo ainda mais para o desânimo que sentia. A primeira delas era que o Oráculo não fez mais nenhum contato. A outra, mais urgente e preocupante, é que ela não retornou ao jardim do prédio ou fez qualquer ritual. Tudo bem que os dias na mui antiga e nobre casa dos gêmeos Weasley valiam como verdadeiros treinos de magia, mas ela se sentia frustrada por não conseguir conjurar o patrono. E achava que estava em falta com as forças da natureza por não mais oferecer seus poderes nos rituais.

- MIAAAAAA – os pensamentos da ruiva foram abruptamente interrompidos com o grito prolongado que escutou da cozinha. – Vem me ajudar a terminar o jantar, logo mais seus pais estarão aí e eu ainda não me habituei novamente a esses feitiços domésticos. Há muito tempo não os utilizava e...ops!

- Já estou indo, vovó – o som da voz da menina tentava abafar o barulho de uma tigela de inox retinindo no assoalho.

Era sempre a mesma história, sempre o jantar. A rotina de Mia a enlouquecia. Os pais haviam retornado ao trabalho em pouco tempo, pois o tratamento mágico para as feridas físicas surtiu efeito imediato. O problema mesmo eram as seqüelas emocionais, o total esquecimento dos atributos mágicos e de toda a vida anterior que o casal levava. Algumas lembranças vinham como flashs, e Mia já podia se considerar felizarda por estar entre elas na mente de seus pais.

No exato instante em que a menina se levantava do chão rumo à cozinha, a maçaneta da porta se moveu. Esta se abriu e revelou uma cabeça ruiva pontilhada de cabelos e flocos de neve brancos. Logo atrás do senhor Weasley vinha a esposa, os cabelos castanhos com os cachos desalinhados pelo vento e mal presos junto ao pescoço por um cachecol azul.

- Boa noite, filha – a senhora Weasley disse, abraçando Mia de um jeito pouco natural e beijando a testa da menina. – Ajudou sua avó hoje? Com aquela ripa de madeira que ela usa para arrumar as coisas e...

- Varinha, mamãe – Mia suspirou. Era inacreditável que os pais não se lembrassem de coisas que ela mesma os ouviu dizer há tão pouco tempo. A arma do Lorde das Trevas era mesmo muito poderosa.

- Isso! Varinha... – completou a senhora Weasley, com o olhar perdido, virando-se em seguida para a sogra, que já estava na sala e ajudava o senhor Weasley a bater a neve do casaco. – Será que posso ajudar com o jantar, Molly?

- Ah, claro, Hermione, querida! Venha... Mia, não precisa mais, ok? Depois você dá um jeito na louça, meu anjo.

- Tudo bem... estou no meu quarto – e saiu de cabeça baixa pelo corredor.

Mia entrou no quarto chutando o novelo de lã que Hermes deixou para trás. Bichento acompanhou o movimento da bolinha e ficou em posição de ataque, esperando que a ruiva viesse compartilhar da brincadeira com ele, mas tudo o que a menina fez foi desabar na cama e procurar debaixo do travesseiro algo que poderia aliviar momentaneamente a dor. Retirou a fotografia debaixo dos lençóis da cama e ficou entretida em observar o sorriso matreiro de Hermes, pendurado ao pescoço de Daniel, que tinha os cabelos pretos bagunçados como outrora sempre foram. Mia estava do lado oposto ao moreno, com Hermes também apoiado em seu pescoço. A ruiva conservava no rosto um sorriso tímido, a mesma timidez de sempre que lhe era tão característica quanto a emotividade, e a fazia desejar de todo o coração mudar estes dois traços de sua personalidade.

Colocou a foto de novo debaixo do travesseiro, fechou os olhos e pensou nos pais. Estavam debilitados pelo feitiço recebido dos Obliviadores, mas aos poucos conseguiam recobrar a consciência de algumas coisas. No entanto, por não reconhecerem nada do mundo mágico ao qual pertenciam, ficavam fascinados com as coisas que Molly e os gêmeos eram capazes de fazer com aquela ripa de madeira. Nem de longe lembravam Ronald Weasley e Hermione Granger, os bravos guerreiros que lutaram com Harry Potter até que este caiu na batalha contra as trevas.

O ambiente aquecido do quarto, em contraste com o tempo fechado que escurecia a paisagem lá fora, começou a causar um leve torpor em Mia. Os músculos foram relaxando e o cérebro entrou num estado de semiconsciência. Os pensamentos começaram a se confundir com um sonho estranho e confuso...

Ela estava ali. Via a si mesma sentada num chão escuro, com as costas encostadas a uma cama alta. Mas, a não ser que a ruiva tivesse voltado um bom tempo no passado, não poderia estar usando aquelas roupas. As vestes eram vermelhas, de mangas longas, ricamente bordadas e com fios de ouro entrelaçados. O saiote caía e cobria os pés descalços dos sapatos que ela mesmo arrancou e jogou para longe, cada um largado em um lado do quarto. O rosto estava molhado de lágrimas, mas ao mesmo tempo mostrava uma expressão feroz, dura, corajosa.

Olhando ao redor, Mia viu que as brumas tomavam conta do lugar. No entanto, o ar não era gelado, pelo contrário. Uma brisa morna soprava dentro da enorme construção que a abrigava, talvez proveniente de uma pequena fresta na enorme janela redonda de vidro que emoldurava a parede frontal. A luz do sol entrava timidamente pela abertura, iluminando o quarto com uma coloração acinzentada. A menina levantou o corpo e caminhou em direção à luz de forma cautelosa, sentindo cada ranhura do chão onde pisava os pés descalçados. Tocou o vidro com a ponta dos dedos e, ao olhar através dele, tudo o que conseguiu divisar foi o céu manchado de cores, num espectro de luz dividida pela neblina. Não era possível ouvir nenhum som, não havia seres vivos ali que pudessem socorrê-la. E ela sentia o coração apertado, sentia que precisava de ajuda para escapar. Era prisioneira de si mesma naquele palácio de vidro sem fim.

Uma movimentação estranha, no entanto, quebrou o silêncio mórbido e deixou seu coração apreensivo, mas cheio de esperanças ao mesmo tempo. O barulho ganhou altura e chegava ao topo da torre, um retinir de espadas de uma batalha longínqua. O corpo da menina acompanhava a mente agitada e caminhava de um lado para o outro, torcendo as mãos e estalando os nós dos dedos. A barra do vestido vermelho prendeu num defeito do pé da cama. Ignorando o estrago no tecido, ela simplesmente puxou a barra do saiote até que este se rasgasse e desprendesse. O barulho e o movimento aproximavam-se cada vez mais, até que a porta da prisão de vidro se abriu com um estrondo depois que alguém pronuncionou Alohomora! de forma enérgica.

Mas Mia não pôde ver quem adentrava a prisão de vidro da dama de vermelho. Os olhos da ruiva se abriram quando a senhora Weasley entrou no quarto para avisar que o jantar estava servido. A menina esfregou os olhos, tentando sair daquele estado de sonolência, enquanto seguia a avó pelos corredores. O senhor e a senhora Weasley já estavam sentados à mesa, e Bichento ronronava e esfregava o corpo longílineo nas pernas do casal, à espera de alguma sobra apetitosa de comida.

A família conversava animada, os pais comentanto sobre as novidades no trabalho, mas Mia estava longe dali e não sentia vontade de falar. Brincava com o garfo enquanto tentava comer o suflê de abobóras. Não conseguia tirar da cabeça a dama de vermelho e seu estranho salvador.

”Será que essas histórias de magia, feitiços e todas as descobertas dos últimos tempos me enlouqueceram?, pensou, enquanto continuava amassando inconscientemente o suflê alaranjado.

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