Encontro no elevador





Qual não foi a surpresa de Mia ao descobrir que “o apartamento em Kings Cross” era a casa da vovó Molly! Até que o lugar era espaçoso, mas atulhado de coisas. O problema mesmo era a falta do jardim que Mia e a mãe tanto apreciavam. Para Mia, era o que mais doía na mudança. Abandonar a escola não significava nada. Era a quinta vez na vida que faria isso. Em tantos anos de estudo, Mia não conhecera uma única pessoa que pudesse chamar de amigo. Claro, ela tinha colegas, não era completamente isolada. Mas não conseguia confiar em ninguém. Sentia-se uma estranha no meio daquela gente, o patinho feio do colégio. Só não sabia se algum dia se transformaria em cisne, como no conto de fadas que ela tanto ouviu e leu quando era mais nova, ou se sua vida continuaria sempre assim, um dia após o outro, sem saber direito quem ela era. A única certeza em seu coração era que ainda não havia encontrado a si mesma.

Mia era uma adolescente diferente das outras, assim como fora quando criança. Sempre gostou de estudar, ler muito, cuidar do jardim e passar longos momentos sozinha para observar a natureza. Principalmente a Lua, que exercia um fascínio diferente sobre a menina. Não que ela não apreciasse o dia e a luz do sol, mas era a noite que sempre a colocava pensativa e saudosa sabe-se lá de quê.

”A noite esconde os segredos que eu não posso ver... mas um dia eu hei de desvendá-los...” - era o que ela costumava pensar.

A mudança para Kings Cross deu menos trabalho do que os Weasley imaginavam. Não tinham tantas coisas miúdas, pertences pessoais, e a maioria dos móveis ficou na antiga casa. Afinal, como Mia já sabia, seu novo lar era um lugar lotado de coisas bastante curiosas. A lembrança que Mia guardava do apartamento de vovó Molly era que este era tão cheio que ela não sabia como caberiam os pertences de seus pais e dela ali. Mas não havia outra solução para o desemprego do senhor Weasley, pelo menos naquele momento.

A melhor parte da mudança era vovó Molly. Ela era a avó mais extraordinária do mundo, pelo menos na opinião da neta. Os Grangers, pais da senhora Weasley, eram um tanto quanto recatados, e moravam numa província distante de Londres. Mia via os avós maternos apenas nas festas de fim de ano, ocasiões em que eles sempre discutiam com reprovação os rumos tomados pela filha ao se casar com o senhor Weasley. Mas Mia nunca podia ouvir as conversas, era menina demais, seus pais sempre diziam. Aos 15 anos esse discurso já passava a irritá-la um pouco. Por que, afinal, tantos aspectos do passado de sua família eram assuntos indiscutíveis?

A família paterna era mais próxima, apesar de Mia não ter conhecido o avô. Segundo seu pai, Arthur Weasley, ou vovô Arthur, morrera na guerra. Mia aceitara bem esta idéia até que começou a estudar História mais a fundo no colégio. Algo não fazia sentido, as datas não batiam. A última guerra na qual a Inglaterra tomou parte foi em dois mil e um, quando os Estados Unidos invadiram o Iraque. Mesmo assim, poucas tropas inglesas foram enviadas para lá, apenas para a força de paz. Certo, alguns soldados morreram em combate, mas mesmo assim ainda havia uma lacuna nisso tudo: por que o exército mandara para a guerra um homem de quase 50 anos? Pois Mia calculava que o avô deveria ter esta idade no período da guerra. Quando a menina tentou questionar os pais sobre o assunto, o senhor Weasley teve um acesso de tosse e ficou escarlate, com as orelhas muito vermelhas. A senhora Weasley ficara tão atrapalhada que quebrara a tigela em cima da mesa (embora Mia não entendesse como isso acontecera, já que a mãe estava na pia lavando os pratos quando a tigela quebrou). Ambos foram categóricos: aquele era um assunto proibido na casa, porque causava muita dor. Com a mudança para Kings Cross, no entanto, o tema voltou à tona e Mia resolveu, por desencargo de consciência, questionar novamente os pais.

- Mia Granger Weasley! Proíbo você de tocar neste assunto com sua avó – a senhora Weasley ordenara enquanto arrumava algumas panelas numa caixa de papelão. – Ela está em idade avançada e a lembrança de Arthur poderia causar algum problema de saúde ao qual ela não resistisse, não é mesmo, Ronald?

- É isso mesmo, Mia. Obedeça à sua mãe – o senhor Weasley, que tentava retirar um quadro da parede da sala, apenas concordou com a esposa, deixando transparecer um ar cansado e conformado.

E assim Mia foi obrigada a guardar a dúvida para uma ocasião mais propícia. A menina não era de se esquecer tão fácil, e era muito paciente.

Quando chegaram à casa, vovó Molly os recebeu no portão do prédio de quinze andares.

- Meus queridos – envolveu Mia num abraço sufocante que a fez sorrir por debaixo dos panos embolados do avental da avó. – Sejam bem vindos à minha casa, que agora é nossa, claro!

O senhor Weasley sorriu um tanto sem graça e deixou que a mãe também o envolvesse num abraço de quebrar as costelas, como ela sempre fazia desde os tempos de... bem, desde os tempos em que ele era menino. Ela costumava abraçar o melhor amigo dele assim também. Onde esse amigo estaria agora?

- Venha, Hermione, querida, vamos colocar essas caixas no elevador. Vocês trouxeram poucas coisas, não foi?

- É, senhora Weasley, a mobília não era necessária, pois o apartamento já tem os móveis que precisamos...

A conversa prosseguiu enquanto Mia ajudava a descarregar o velho Ford Anglia, ano 1978, que ainda pertencia ao senhor Weasley. Também, quem é que gostaria de comprar aquele carro? Apenas um museu ou um ferro velho. Ele não poderia servir para mais nada mesmo. Mia nem sabia como ele andava. Mas o pai cuidava muito bem do automóvel, e aos domingos costumava polir a lataria enquanto ela e a mãe cuidavam do jardim nos fundos da casa. Depois que ele terminava, entrava gritando pelos corredores até chegar onde mãe e filha estavam, querendo esfregar-lhes na testa o resto de cera para carros. Elas corriam, tentando se esquivar, até que ele conseguisse agarrá-las. Muitas vezes a brincadeira só terminava quando o senhor Weasley já estava sem fôlego de tanto correr atrás de Mia, que era muito mais rápida que ele. Esta lembrança tão recente aquecera o coração da menina. Mas ao mesmo tempo a entristecera, pois ela sabia que não voltaria a ver o lar onde crescera.

Vovó Molly segurava a porta do elevador quando o senhor Weasley conseguiu colocar a última e pesada caixa. Os quatro entraram e Mia, que estava mais próxima do quadro eletrônico, apertou o botão do décimo quinto andar. A porta começou a se mexer quando um par de olhos muito verdes apareceu no quadradinho de vidro.

- Ei! Segura o elevador prá mim, por favor!

Mia colocou a mão involuntariamente para parar a porta no momento exato em que esta se fechou. Apesar de o sistema eletrônico ter funcionado e feito a porta regredir, o braço da menina fora meio espremido e ela não pode conter um pequeno gemido de dor. O menino puxou a porta externa e entrou no elevador, enquanto Mia massageava o pulso dolorido.

- Desculpe! E obrigado – começou o menino, olhando para o braço de Mia e depois para seus olhos marejados. – É... é que eu preciso chegar logo em casa, meu pai...

Ele parou de falar e olhou para os Weasley no elevador. Com exceção da senhora Weasley, todos eram muito ruivos e tinham sardas no rosto. Os olhos castanhos unânimes fitavam o rosto do menino e esperavam.

- Eu sou Daniel. Sou novo aqui... muito prazer!

- Oi Daniel – foi Mia quem respondeu, já refeita do apertão. – Eu sou Mia, esta é minha mãe Hermione, meu pai Ronald e minha avó Molly. Vovó já morava aqui, mas eu, papai e mamãe estamos nos mudando hoje também.

- Que bom! Será que você pode apertar o sétimo andar para mim, por favor?

Mia pressionou o botão com o número sete desenhado em vermelho e meio desgastado. Depois, voltou-se para o garoto, que sorria. Ela já tinha visto os olhos dele pelo vidro do elevador, mas eram muito mais bonitos sem o material embaçado entre eles. Formavam uma moldura verde para o rosto claro do garoto. O cabelo preto desalinhado dava a Daniel um ar de quem acabara de levantar da cama. A roupa não ficava muito atrás no quesito desleixo: ele usava uma jeans surrada e uma camiseta lisa e branca. Os tênis tinham os cadarços amarrados de uma forma despretensiosa, e arrastavam pelo chão. Mas... o sorriso. O que era aquilo? Ele tinha charme. Mia não entendia, mas alguma coisa em Daniel falara mais alto dentro dela. Alguma coisa que não conseguiu explicar de imediato. Uma força... uma luz... algo.

O sétimo andar veio e se foi, e Daniel saiu com um aceno de cabeça e um murmúrio de até mais.

Vovó Molly desatou a rir quando a porta do elevador fechou. Mia olhou a avó estupefata, sem entender o motivo da risada.

- O que foi vovó?

- Ah, minha Mia – começou Molly, apoiando a mão na caixa mais próxima e olhando a neta com um olhar conciliador. – Seus olhos brilharam... seus olhos brilharam...

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