Desafetos



- Está na hora de irmos - Lílian se empertigou muito subitamente na cadeira, se levantando em seguida com toda a sua leva de livros, pergaminhos e a mochila estufada.

Aine enfiou as últimas três colheradas do almoço de uma vez na boca e seguiu o gesto da outra jogando a mochila cor-de-rosa nos ombros. Eu também fiz menção de segui-las, mas Marlene permaneceu em seu lugar, olhando com ar de afrontamento para Lily.

Eu e Aine trocamos olhares desanimados e suspiramos ante a discussão que se arquitetava ali. Eu estava particularmente impaciente porque, depois do fracasso nos simulados de sábado, eu queria pelo menos ir bem nos testes de fim de semestre, que realmente contavam alguma coisa.

- Não está não - Marlene mostrou o relógio. - Falta mais de uma hora para o início da aula, por que você já quer ir?

Lílian piscou sem se abalar e estreitou os olhos para Marlene.

- Eu quis dizer ir à biblioteca - falou, calmamente.

Marlene apoiou os cotovelos na mesa com ar de desdenho. Quando ela fazia isso se parecia um bocado com meu primo Sirius e com minha irmã Bellatrix e isso me fazia achar que, de algum modo, ela tinha mais sangue Black correndo nas veias do que eu.

- Pode ir então, eu prometi a Aine que iria maquiá-la hoje - ao que o rosto de Aine se iluminou e ela voltou a se sentar com um sorriso gracioso, mirando Marlene com alegria.

Lílian bufou e olhou para Marlene como se ela estivesse chantageando a Aine ou algo assim e então se voltou para mim, com os olhos ainda faiscando:

- E você, Andy?

- Eu... - gaguejei, pega de surpresa - eu quero que você me ensine os usos do sangue de dragão!

Lílian acenou para mim e começou a andar em direção à saída do salão. Eu ia atrás dela, quando subitamente colidi com algo e as duas caímos sentadas no chão, numa cena completamente patética.

- O que foi? - perguntei, ajudando minha amiga a recolher seus livros, que haviam voado de seus braços na colisão.

Ela me olhou como se minha pergunta fosse absurda e voltou a se sentar no lugar que havia acabado de deixar.

- Como você não me lembrou? - cochichou, quando eu, sem palavras, me juntei a ela.

- Lembrar de quê?

Ela inclinou a cabeça na direção de Anie, agora sentada de frente para Marlene, que fazia volteios com a varinha efetuando um feitiços para corar os lábios.

Claro, típico de Lílian achar que mais ninguém pudesse cuidar de Aine tão bem quanto ela após uma de suas crises e, por isso, tinha que ficar por perto. Digo isso porque mais uma vez, naquela manhã, havíamos acordado com Aine completamente catatônica na cama.

Soltei uma exclamação de entendimento e vi Lílian afastar bandejas, jarras e travessas a fim de arranjar espaço para abrir quatro ou cinco livros diante de si. Eu me perguntava o que ela fazia na biblioteca se parecia ter todos os livros do mundo com ela o tempo todo. Talvez fosse o vício de ficar em um lugar onde não se podia nem mesmo respirar um pouco mais alto sem receber um "shhhh!" da bibliotecária.

- Pensei que ia para o seu refúgio de livros - falou Marlene, percebendo nossa volta.

- Não preciso mais - resmungou Lílian, e se voltou para mim começando sua longa explicação sobre o primeiro uso do sangue de dragão de sua lista (limpar fornos, mas quem quer saber disso? Talvez os elfos domésticos, mas, bem, eles não fazem N.I.E.M.'s).

- Livros, livros, livros - recitou Aine. - Ela ama os livros. Acho que gosta deles mais que da gente.

Eu esbocei um sorriso, mesmo que a expressão de Lílian fosse mais próxima de uma careta de desgosto.

- Aine, acontece que você tem passado tempo demais com a Marlene - falou Lílian, num tom de quem fazia uma conferência sobre guerras de duendes.

- Já disse pra não me chamar de Marlene, Lílian! - Marlene atirou um guardanapo enrolado em forma de bola em nossa direção, atingindo meu chapéu, que se entortou um pouco na minha cabeça. Eu pessoalmente estava decidida que não ia mais tomar partido nas brigas daquelas duas, elas sempre acabavam se entendendo mais cedo ou mais tarde e eu ficava me sentindo uma idiota.

- Tá bem, McKinnon - falou a Lily, com um ar de pouco caso que também lembrava meus parentes. Eu nem sequer me imaginava falando daquela maneira com alguém, e aquelas duas eram as melhores amigas que eu conhecia... - Só não espere que eu deixe você colar de mim no teste de poções de hoje.

Marlene pôs meio palmo de língua pra fora e retrucou:

- Eu não preciso me afundar nos livros pra tirar uma boa nota.

Lílian foi rápida na resposta:

- Acontece que os livros não servem apenas para se dar bem nos exames. Você pode aprender sobre tudo com eles.

- Até mesmo o nosso futuro? - indagou Aine.

Lílian crispou os lábios, ficando pensativa, e respondeu:

- Talvez não exatamente sobre o futuro, mas as técnicas de se saber sobre o futuro sim. É claro que, se você não tiver um dom nato, não vai adiantar nada.

- Obrigada pelas palavras de estímulo - resmungou Marlene e eu subitamente me lembrei que, além do teste de poções que teríamos naquela tarde, ainda havia o de Adivinhações logo depois.

- Oh, você acaba de me lembrar que preciso de pelo menos E em Adivinhações pra poder ter média pra um emprego no Ministério! - falei, desanimada.

- Você sempre pode se casar - brincou Marlene. - Encontre alguém bastante rico e nunca vai precisar de emprego nenhum.

- Suponho que você vá fazer isso - Lílian estava irritada de novo com o rumo da conversa.

- E por que não?

- Por que alguém rico ia querer se casar com você? - Lily já estava sentada na ponta da cadeira e esquecera completamente dos livros.

Eu invejo a coragem da Marlene, se a Lílian olhasse pra mim daquela maneira algum dia, provavelmente eu afundaria para ficar debaixo da mesa e não ia sair de lá nunca mais. Sinceramente, eu me pergunto qual foi exatamente a parte grinfinória que aquele chapéu viu em mim.

Marlene, entretanto, apenas passou a mão pelos incríveis cabelos negros e os sacudiu com desenvoltura, como sempre fazia quando queria se exibir, e respondeu:

- Porque eu sou a garota mais linda que ele vai conhecer.

Aine riu e Marlene voltou à maquiagem dizendo para ela:

- E você vai ser a próxima garota propaganda da Trapobelo, com certeza.

- E eu vou me tornar uma cantora famosa, vou ser a sucessora de Glenda Chittok e ter meu próprio programa de rádio aos treze anos! - falei, distraída.

- Como? Ainda não estão distribuindo vira-tempos por aí, estão? - resmungou Lílian, me fazendo perceber que tinha dezessete anos. - E a chance de você conseguir se casar com um ricaço ou de Aine conseguir virar uma modelo é a mesma de eu um dia me casar com aquele inútil do Potter, então voltemos aos testes.

Marlene riu, satisfeita por ter feito Lílian perder a paciência e cochichou algo para Aine, enquanto eu voltava a prestar atenção nas explicações sobre o sangue de dragão idiota que nunca ia me transformar numa apresentadora de rádio mirim.

Foi quando eu vi aquilo. Héstia Jones, com toda a sua desenvoltura de artilheira de quadribol e cabeleira loura platinada, vinha toda rebolante para o nosso lado, andando de um jeito que ficava óbvio que esperava que o salão todo estivesse olhando pra ela. Em seu encalço, vinha Berta Jorkings, uma lufa-lufa pouco mais alta que eu que usava aparelhos nos dentes. Tinha um pescoço longo, talvez pelo esforço constante de esticá-lo para ouvir coisas que não lhe diziam respeito.

Héstia, por algum motivo, sempre tinha tentado se infiltrar em nosso grupo. Ela dividia o dormitório conosco, infelizmente, pois qualquer que fosse a coisa que nos fizera praticamente irmãs, simplesmente não existia nela. Independente disso, a verdade era que ninguém gostava de Héstia, mas grande parte dos alunos se esforçava para ser legal com ela com medo de se tornarem alvo de sua "turma" - que reunia as fofoqueiras maiores da escola.

- Se não é a pequenina com suas três guarda-costas - Héstia gracejou, olhando maliciosamente para nós com seus pequenos olhos castanhos.

Ela pareceu estudar Aine por um momento e depois olhou para mim e Lílian acrescentando:

- Por que a pequenina estava chorando dessa vez? Alguém roubou sua boneca?

- Vamos até lá fora e eu te mostro por que ela estava chorando - Marlene sorriu de um modo tão cândido quanto assustador.

O sorriso de Héstia desapareceu no mesmo instante e ela se virou para Berta ordenando que lhe conseguisse um lugar na mesa da Lufa-lufa ao lado de Frank Longbotton.

- Vocês não perdem por esperar - falou, indo para longe.

- Não vamos prender a respiração enquanto esperamos, Jones - gritou Marlene, voltando ao seu trabalho de maquilagem.

Lílian iniciou a explicação do que talvez fosse o vigésimo uso do sangue de dragão (eu sei, são só doze, mas você nunca ouviu Lílian explicando detalhadamente alguma coisa, ela provavelmente poderia citar uns cinqüenta usos.

Foi quando o sorriso de Marlene se alargou. Eu não resisti e me virei na direção em que ela estava olhando. Tiago Potter vinha calmamente andando em nossa direção com as mãos enfiadas nos bolsos e os cabelos arrepiados de um jeito que o fazia parecer um modelo saído do catálogo da Trapobelo - moda mágica.

- Aí vem seu inútil futuro marido, Lily, inclua isso na sua estúpida previsão - fez Marlene.

Lílian só teve um segundo para processar a informação antes de Tiago estar sentado ao seu lado, esticando o braço para alcançar uma jarra de suco de abóbora que ela tinha afastado para longe.

- Vamos terminar isso no dormitório, Aine, e deixar Lily com seu mau-humor - falou Marlene, saindo com Aine.

Eu senti o impulso de seguí-las, mas realmente precisava escutar o resto da explicação para uma nota que prestasse no teste, ainda que aquilo significasse ter que presenciar uma explosão da minha amiga.

Eu a vi fazer uma expressão de nojo e um barulho esquisito, o que fez Tiago sorrir e passar os dedos pelos cabelos rebeldes dizendo:

- Bom dia pra você também, Lily!

- Oi, Potter - ela rosnou, entre dentes.

- Que tal um sorriso?

Sinceramente, o que todas aquelas pessoas tinham que adoravam ver o olhar assassino da Lílian?

- Por que eu sorriria estando há menos de cem metros de você? - ela perguntou, numa demonstração fantástica de auto-controle. Eu olhei discretamente para o relógio na esperança de ser eu a marcar o novo record de tempo em que aqueles dois conseguiam conversar.

- Bom, pra começar, está um lindo dia. Vamos todos nos dar muito bem nos testes, o suco está muito bom - ele ergueu a taça para reforçar o que dizia. - E o principal: eu estou há menos de trinta centímetros de você! - ele se inclinou para o lado ficando literalmente colado nela.

Lílian revirou os olhos com impaciência e empurrou Tiago, voltando aos livros enquanto murmurava algo que eu não consegui entender, mas não achei seguro pedir que ela repetisse. Ela não estava gritando e eu tinha esperanças de que isso fizesse o dia de Tiago e ele simplesmente se juntasse aos seus amigos, que nesse momento entravam no salão. Mas isso seria realmente um milagre e, como milagres são muito raros, mesmo para os bruxos, ele continuou:

- Lílian, você vai na próxima visita a Hogsmeade?

- Vou - ela falou, sem olhar pra ele.

- E já tem companhia?

- Eu vou com as meninas.

A expressão de Potter foi mesmo impagável, como se não pudesse digerir a idéia de que minha amiga preferia ir conosco a ir com ele. Bem, Tiago já devia estar acostumado, ele vinha recebendo negativas há dois anos, não era do nada que a Lílian de repente ia pular no pescoço dele, não é mesmo?

- Não prefere ir com uma companhia mais... interessante?

- E quem seria uma companhia mais interessante? Você? - ela levantou os olhos do livro e eu comecei a juntar minhas coisas e enfiá-las na mochila, já adivinhando o que viria a seguir.

- Eu...

- Eu não vou sair com você, Potter, não perca seu tempo. E a propósito, é Evans para você - ela se levantou e eu corri para acompanhá-la, deixando o salão como um furacão vermelho.

Pelo menos ela não tinha dado vexame gritando um fora para o salão inteiro. Se bem que o vexame ia ser era do Potter, mas ele não ia se importar, de modo que a única pessoa a ficar querendo se enfiar o mais rápido possível num buraco ia ser eu.

Seguimos para as masmorras, sentindo aquela inevitável excitação de fim de trimestre no ar e os murmúrios de expectativa pelo feriado de natal.

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Obrigada a quem comentou e desculpem a demora em postar o segundo capítulo o/

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