Stagnum



Estava inquieta. Os pensamentos agourentos não lhe abandonavam a mente. De fato, eles haviam atenuado durante o período de aulas, mas após o banho, relaxada à mesa do jantar, eles voltaram silenciosamente e reiniciaram a perturbá-la. Tentou ler, preparar aulas, dormir, mas nem mesmo o frio ar do outono próximo conseguiu fazer o sono prevalecer... Nada pôde aliviar-lhe as preocupações. Desceu, então, a passos rápidos, às masmorras. Estava certa que algo se passava de muito errado em Hogwarts. Aquilo não era simplesmente as vozes em sua cabeça... Não, estas eram bem conhecidas suas.
- Lacrima... - Ele abriu a porta, reconhecendo-a com alguma surpresa - Entre...
- Ah, desculpe vir a uma hora destas...
- Não se desculpe, é sempre um prazer vê-la. Estava apenas reformulando algumas aulas. Mas, o que a traz aqui? - ele observou-a por um breve momento - Não parece ter vindo casualmente.
- Deveras... Severus, tenho motivos para acreditar que há algo estranho acontecendo por aqui. Você não percebeu nada errado esses dias?
Ele pensou um pouco antes de responder:
- Não que se possa considerar relevantemente errado... Por quê? Você notou alguma coisa?
- Receio que sim... Tenho escutado vozes - ou melhor, uma voz - baixa, sussurrada e ao mesmo tempo distante, como se estivesse do outro lado da parede - ou do chão - falando clara e diretamente.
- Pelo seu semblante suponho que já tenha confirmado a inexistência de qualquer traquinagem - ele escutava atento, com o cenho fechado.
- Sim! Perscrutei todo o quarto com os olhos e com mágica, coloquei feitiços sensitivos até mesmo no exterior da torre, e, como você deve saber, dificilmente alguém voaria até lá no meio da madrugada... O que me assusta é que a voz que escuto é roufenha e sussurrada. Não é alguém falando do outro lado de uma parede maciça de pedras, isso teria de ser, no mínimo, uma mágica bem feita... - seu semblante transparecia mais pavor a cada palavra e sua voz não travestia o iminente nervosismo.
- Não... - ele tomou-lhe a mão acolhedoramente - Isso certamente não é nada... Tudo aquilo que aconteceu no ano passado afetou-lhe demasiadamente. Você deveria ter tirado todo seu período de férias para descansar, mas ficou a maior parte do tempo trabalhando...
- Mas, Severus, não é simplesmente coisa da minha cabeça, é muito real para...
- Shh... calma... - falou abraçando-a - Você precisa descansar e não deixar os eventos passados dominarem seus pensamentos...
Ela abraçou-o forte e cansadamente. Estava, agora, dividida entre a realidade e a insanidade. Não era do feitio dele tratá-la como criança... Estava certa de que se ele realmente achasse que havia algum perigo, ele diria... Sabia que ele não relaxaria perante a incerteza, não era nenhum imprudente. Teria ela deixado a imaginação tomar ares de realidade? As palavras de Snape ecoavam-lhe na mente e Lacrima foi gradualmente se sentindo mais segura, junto daquele corpo quente, aquela fragrância - velha conhecida, o toque macio, a humanidade... Serenou finalmente e pôde então apreciar a companhia. Já havia muitas semanas que não se encontravam senão durante os horários de aulas e de refeições. Não teria vindo se não fosse o medo que sentia... Talvez estivesse mesmo precisando relaxar e, realmente, pensou, era fácil esquecer do mundo nos lábios dele. Aqueles beijos mornos levaram-lhe todos os pensamentos e só restou uma deliciosa sensação de leveza, aconchego e segurança. Vivia, afinal.
Acordou sobressaltada. Num conturbado pesadelo a sinistra companheira lhe chamava para algo que ela não saberia dizer exatamente o que era, mas envolvia morte, extinção e banhar-se no sangue deles, seja lá quem fossem.
- Severus! - tentava acordá-lo desesperadamente - Severus!
- Hmmm...
- Acorda...
Ele abriu os olhos com um certo esforço e vagarosamente sentou-se na cama.
- Eu escutei de novo! Sonhei com a voz... - estava nervosa.
- É... Apenas um sonho... Isso não significa que... - disse algo ininteligível e adormeceu novamente.
- Severus!
- Humm!
- O que você disse?!
- Corte isso direito, Mulligan!
- Ah?! Sev... - ia repetir a pergunta, mas ele já caíra no sono novamente.
Levantou-se irritada, vestiu-se rapidamente e saiu batendo a porta. Os corredores estavam excessivamente frios, calculou que já deveria ser bastante tarde. As lágrimas insistiam em virem-lhe aos olhos, embora ela não soubesse especificar a razão para tanto. Os pensamentos mexiam-se agitados na mente, deixando-se ouvir aos pedaços, vozes perdidas num beco escuro. E foi então que ouviu o rouco sussurro que não viera de dentro.
- Liberte-me... Eu quero sangue!
- Chega! Deixe-me em paz! - sem poder mais manter o controle, Lacrima respondeu à voz. Respondera com alguma tensão e alguns sussurros - estranhos sussurros sibilados que ela só notou depois de emití-los. Estacou surpresa e incrédula.
- Não... - ela dizia para si mesma tentando assimilar o ocorrido.
Já havia muito tempo desde a última - que também fora a primeira - vez que falara a língua das cobras. O talento se lhe mostrara na infância, durante uma expedição à floresta. Procurava alguns fungos sob uma moita quando deparou-se com uma serpente de bote armado, pronta para defender sua morada. "Calma, amiga..." falara nervosamente "estou apenas em busca de cogumelos, perdoe-me se invadi seu lar". A cobra relaxou imediatamente e, para o espanto da jovem, respondeu que estivesse à vontade e pôs-se à disposição, caso a então menina precisasse de algo que lhe estivesse ao alcance. Lunare agradecera sem saber o que fazer e pegara seus fungos enquanto via a serpente desaparecer arrastando-se pachorrentamente. Percebera que, instintivamente, falara algo que não era sua língua natal, e, provavelmente, nenhuma língua humana. Já havia ouvido boatos sobre ofidioglotas, então, mas não passavam de conversas ouvidas ao acaso. Consultou uma de suas professoras, que lhe contara muito sobre tal talento. Lacrima teve, então, certeza de que era mesmo aquilo que lhe sucedera, mas guardou segredo. Nunca mais tivera a oportunidade de usar tal linguagem e agora ela surgia de forma tão curiosa. Curiosa - considerou - porque ao entendimento da natureza da voz, a situação se lhe afigurou menos aterrorizante que peculiar. Continuou seu caminho até a torre conjecturando sobre o que - ou quem - estaria tentando se comunicar; Era estranho... Provavelmente não era um animal... Não lhe parecia ser do feitio de uma cobra querer exterminar pessoas ou sentir alguma vontade de derramar sangue que não fosse para se alimentar e este, decerto, não era o caso. Também era raro encontrar alguém nascido com tal talento e ainda mais alguém que o tivesse treinado a ponto de conseguir usá-lo à mera vontade. Claro, dentre os alunos poderia haver algum, mas isso ainda não explicava como ela poderia ouvi-lo na torre durante a noite...
No dia seguinte a professora começou as aulas com a pior das caras - estivera toda a noite revirando os antigos pergaminhos do nobiliário. A ofidioglotia vinha de um passado imemorável em sua família, praticamente todas as gerações tinham um membro que apresentara tal talento. Duas pessoas em especial lhe interessaram: Aurea Nox e Bianca Augusta. A falecida irmã e a avó eram ofidioglotas... Nunca soubera disso... Não era a primeira vez que manuseava o nobiliário, mas nunca atentara para esse detalhe. Isso explicava as cobras que Aurea criava nos jardins do castelo... Mas ela criava tantos animais! E, de qualquer forma - pensou - que diferença isso faz?
Imaginou se deveria dizer a Snape sobre o que descobrira na voz, mas estava bastante chateada com ele. Achava, agora, que ele não tinha dado a atenção devida ao que ela expusera.

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