Um Estranho e Cheiro de Alecri



Capítulo 4

Um estranho na Rua Inajé e Cheiro de Alecrim

Havia uma carta em cima da mesa.
Pra quem seria? A pessoa estaria morta nesse momento e talvez só alguém indicada por ela poderia tomar posse da sociedade, contudo a carta já estava lá. Os professores estavam abraçados, Gadelha tomada em prantos e Juscelino se consolando e consolando Gadelha pela morte de Zacarias. Minutos, horas, tempos incontáveis depois, a emoção ainda persistindo á razão, a velha e agora mais forte lucidez tomando conta de Juscelino e ele volta ao seu estado impassível normal.
- É preciso fazer o que deve ser feito, é o que ele diria Gadelha, agora está tudo na nossa responsabilidade, vamos fazer o que ele pediu. Por mim eu nem leria essa carta, depois talvez, quem sabe?
- Porque? – uma voz gutural e já estranha diz- Porque não abrir a carta, será que o seu sentimento finalmente dobrou sua razão Juscelino? – diz o deitado diretor de olhos abertos.
- Mas... como? Como isso aconteceu Zacarias? Como?- perguntou incrédulo Juscelino.
- Meu santo Deus, que bom que você não morreu Salomão, que bom. – falou a professora.
- Só preguei uma peça, digamos que de mal gosto em vocês dois, eu não tinha certeza, na verdade já estava preparado para qualquer coisa, mas no fundo eu sabia que perdendo a vida eu ia sair ganhando e aqui estou, aliás recobrei a consciência, aquela poção me serviu de alguma coisa, não é?- disse o diretor voltando ao seu estado feliz habitual. – O nosso correspondente misterioso nos deixou duas pistas, uma na primeira carta com a palavra morte e seu significado segundo ele e a outra na última carta em que perdendo se ganha. – disse isso se levantando com certo embaraço.- Agora resta-nos a última carta, aquela que nos dará posse dessa enorme e preciosa sede. Dê-me por favor a carta Juscelino enquanto me sento.- Disse isso conjurando uma bela poltrona vinho e de mogno.

“Meus melhores cumprimentos á você que finalmente conseguiu superar todas as etapas para tomar a posse da Sociedade, espero que seus propósitos sejam pacíficos e que seu coração esteja puro, para que essa casa seja sempre usada para o que foi criada, pelo bem de todos aqueles que desejam a igualdade entre os semelhantes, a fraternidade entre os irmãos e a liberdade para aqueles que estejam presos. Que seja sua essa casa, sua sede. Assim para completar o ritual é necessário um juramento: ‘Eu, me comprometo a manter íntegra, justa e leal a Sociedade Mágica Magna Sofia. Comprometo-me a fazer o que for necessário pelo bem maior sempre e sempre. Comprometo-me a quando fechar novamente essa Sociedade, deixá-la apta para necessidades vindouras de outros bruxos. Por último comprometo-me como fiz no teste, ser sábio, corajoso, valoroso e abnegado.’ Com o poder a mim conferido passo-lhe a direção e a liderança desta sociedade.

Use-a com sabedoria.

M.R.C.G. 17 de abril de 1870”

- Nossa primeira de muitas batalhas foi vencida. Agora é preciso manter a vitória. Pois numa guerra o mais fácil é vencer, o difícil é manter.- disse filosoficamente Zacarias.- Agora, acho que pelo tardar da noite devamos ir embora, mas antes lançarei o Fidelius sobre ela para que ninguém saiba a sua localização. Peço que vocês se retirem da casa, pois esse como vocês sabem é um encantamento muito complicado e complexo.
- Sim senhor. – disseram os dois juntos e saíram.
- É isso, por fim é isso. Nossa sede está aqui, vamos reorganizá-la e preparar-nos para a tempestade. – disse para si mesmo o diretor.- E agora o Fidelius.
“Eu Zacarias Abá Raimundo Salomão Guatuçara da Silva, recolho sobre a minha pessoa, minha mente e meu coração sobre o poder do Feitiço Fidelius o segredo da localização da Sede da Sociedade Mágica Magna Sofia. Localizada na Rua Barão de Inajé número 55, no centro da cidade de São Paulo no Brasil. Fica a meu encargo guardar o segredo e só revelá-lo á quem eu desejar. FIDELIUS!!!”
Sob essas palavras se encerravam a proteção inicial sobre a sede, que a cada palavra que era dita um laço de fidelidade dourado saia da ponta da varinha empunhada de Zacarias, e se estendia em volta da casa e que na hora em que ele disse o feitiço comprimiram-na e fizeram-na desaparecer da visão de qualquer um a não ser Zacarias. Por fim ele lançou o feitiço da lembrança num raio de 500 metros da sede, para que qualquer um desviasse seu caminho daquela direção e saiu da casa com dois papéis em que estava escrito.
“A Sede da Sociedade Mágica Magna Sofia está em São Paulo, na Rua Barão de Inajé número 55.”
Ele entregou os dois papéis aos dois professores e fê-los decorar e ver a casa antes de atear fogo aos bilhetes. Por fim, olharam uma última vez nessa noite para a casa que tantos desafios impôs a eles, os três juntos perceberam a real beleza da persistência e do trabalho árduo. Já não chovia mais, era uma noite de céu estrelado e com uma brisa suave e acalmante que elevava os pensamentos. Mas pela última vez nesse dia Zacarias teve a incômoda e perturbadora sensação de estar sendo observado e seguido.
- Apresente-se quem quer que esteja nos seguindo, não queremos nada de mal, não procuramos nada de ruim, mas queremos a verdade! Demonstre-se seja você vilão ou vingador. Mostre-se você que se esconde nas trevas, revele seu rosto e diga-nos seus propósitos! Eu ordeno! – disse Zacarias com incrível poder na voz.
Eis que de uma das vielas próximas surgiu uma figura estranha, trajada em roupas mais estranhas do que qualquer bruxo ou trouxa já vira, se assemelhava a um mendigo, mas era muito mais do que isso. Dele emanava alguma coisa desconcertante e perturbadora. Pairava sobre ele alguma coisa invisível que fazia com que se pensasse nas falhas e nos erros e na verdade também. Se movimentando lentamente ele se aproximou dos três bruxos, com todos os seus aspectos vindos colados á sombra dele, foi então que ele se manifestou.
- Eu sou aquele que diz, sou aquele que vê! Por isso estou aqui, para ver e falar! Não sou vilão ou vingador, estou alheio ás mesquinharias de bem e mal, estou apenas por estar e tenho um recado para cada um de vocês e para todos. – disse o estranho.-
“Estão próximos os Dias de Trevas, em que o mal perdurará, preparem-se vocês que se opõem a ele, ele os sucumbirá, mas mesmo assim de dentro de vocês uma nova chama surgirá e cinco vezes será necessária atiçá-la até que ela possa queimar realmente. Três será o número que lembrarão vocês disso e para sempre marcará o que irá acontecer. Essa previsão irá ocorrer depois do real fim, mas quando tudo parecer acabado, pois sempre há um último coelho á cartola. Épocas terríveis estão pela frente para vós, por isso cuidem-se.”- disse o estranho com uma voz profunda e grave, tão estranha quanto quem a proferia.- Era isso que eu tinha a dizer, mas não se preocupem nós ainda nos encontraremos novamente, é somente uma questão de tempo, e vocês perceberão como ele passa rápido.- disse essas últimas palavras o estranho deu um giro nos calcanhares e sumiu no ar.
Tudo isso certamente era muito confuso, um estranho que não os conhecia dizia coisas e previa os futuros deles, isso sem contar que ele estivera um dia inteiro perseguindo-os e sumia tão logo aparecia.
- Zacarias, o que foi isso, você sabe? – disse Gadelha.
- Tenho uma leve impressão que sim professora, contudo creio que eu esteja errado a não ser que o que eu ouvi há um tempo é verdade. – respondeu Zacarias.
- O quê Zacarias?
- Prefiro esperar e ver o que acontecerá, e como ele mesmo disse não é a última vez que nos encontraremos, é só uma questão de tempo. Mas ultimamente é raro encontrar profetas mágicos, no mínimo é estranho.- respondeu Zacarias.
- Para onde vamos agora Zacarias?- inquiriu Juscelino.
- Caminhar um pouco, refletir mais um pouco e voltar para os nossos respectivos lares, teremos um início de ano cheio de tarefas além do normal. Deixemos os problemas do futuro no futuro, nos preocupemos com o agora. – respondeu Zacarias.
- Antes de voltar para casa eu gostaria de comer alguma coisa.- disse Juscelino.
- Por mim tudo bem. E você Gadelha? – perguntou Zacarias.
- Acho que não Zacarias, estou preocupada com as crianças, o Wilson até que é bom marido, mas nem sempre é confiável. Você sabe como ele se embaraça com coisas simples e outra tenho que me preparar para a festa do reveillon, vocês vão passar aonde?- perguntou Gadelha.
- Eu não sei, fui convidado para diversas festas, não sei em qual ir. – disse Zacarias.
- Eu vou passar em casa mesmo sozinho, já é quase um ritual. – disse Juscelino.
- Então já que é assim venham passar lá em casa comigo, o Wilson e as crianças, vai ser legal, e eu to pensando em convidar a Efigênia, a Magali, a Samanta e o Basileu. Só não vou convidar a Dagoberta, porque ela vai passar em Brasília com os pais dela.
- Então ta combinado.- disse Zacarias.
- Eu aceito também. – concordou Juscelino.
- Então tchau pra vocês, espero vocês no dia 31 lá em casa, até lá um abraço.- despediu-se Gadelha cheia de preocupações com o marido.
- Então professor vamos para o Cheiro de Alecrim jantar e beber, é aqui perto, você se lembra, não?- disse Zacarias.
- Sim, vamos. – disse calmamente o professor.
Caminharam juntos sob o céu estrelado de dezembro sem se falar muito, os dois tinham muito em que pensar sobre aquele dia. Logo chegaram a um pequeno bar com vidros que possibilitavam a visão interna, acima da porta e na parte de fora de todo o estabelecimento havia um toldo vinho e ao lado da porta uma placa indicava, “Cheiro de Alecrim, Bar de excelência mágica desde 1808.”.
- Sejam bem vindos, - disse um bruxo ao eles entrarem. – sentem-se. O que desejam?
- Uma salada de visgo do diabo com rabo de diabrete da cornualha flambado por favor. Ah, é e uma caipirinha amanteigada. – disse Zacarias.
- E o senhor o que deseja? – disse o garçom-bruxo.
- Uma cerveja amanteigada, asa de hipogrifo ao molho de bulbútera e uma salada de folha de mandrágora, por favor.- disse o professor.
Foram servidos prontamente pelo garçom-bruxo, que vestia um uniforme violeta brilhante, um chapéu ao estilo de marinheiro da mesma cor do uniforme e uma folha de alecrim na aba. O bar mágico era aconchegante, pequeno, mas repleto, com uma luz meio estranha que ás vezes parecia alaranjada, outras violeta outras ainda verde. No balcão havia um bruxo muito feliz em estar servindo os clientes. Atrás dele havia uma prateleira cheia de bebidas mágicas, e por trás disso havia a cozinha, em que elfos domésticos trabalhavam incessantemente para satisfazer seu dono. Aos fundos ainda havia uma lojinha de conveniência com os mais diversos artigos e a um canto escondido havia um espaço vazio de onde ouvia-se ás vezes sons estranhos e ocultos.
Ao serem servidos os dois bruxos comeram calmamente e começaram uma conversa que não era feita desde a contratação do professor de Defesa Contra as Artes das Trevas. Ele era um bruxo reservado, calmo, taciturno, consciente de seus poderes e da sua capacidade, esforçado e calado sempre. Era negro, alto com uma aparência severa, adorava a cor preta que fazia parte do seu cotidiano. Passou muito tempo de sua juventude aperfeiçoando-se nos conhecimentos mágicos das artes das trevas. Na Europa conheceu lobisomens e vampiros. No Oriente conheceu os rituais famosos que intuíam maldições e pragas. Na África conheceu sua ascendência e os ritos dos negros além de ter visitado o Egito e as famosas Pirâmides.
- Então Juscelino, faz tempo que não conversamos e me parece que você tem algumas perguntas a me fazer. – falou o diretor, sem se preocupar com os fiapos de visgo entre os dentes.
- Sim diretor, tenho várias perguntas. A primeira é como o senhor foi enfeitiçado? Eu não entendi até agora. – perguntou o professor.
- Ah, sim, eu já imaginava que essa pergunta fosse surgir. Creio que nem eu mesmo tinha certeza entre a poção que eu possa ter errado ou o estranho que conversou comigo antes de vocês chegarem, embora eu acredite que a segunda opção é mais provável e devo admitir que houve uma grande falta de atenção minha nessa parte. Meu caro professor estávamos diante da primeira manifestação do inimigo aqui no Brasil. Eles começaram a mexer as peças e nós demos um golpe oculto reabrindo a Sociedade.
- Sim, certo. Minha segunda pergunta é quem era aquele homem misterioso que apareceu quando nós estávamos saindo da casa?
- É possível que novamente eu me engane e esteja desatento há certas coisas, mas o senhor já deve ter ouvido os boatos que correm sobre Rodoberto, não?
- Sim, ás vozes, a insônia e as perturbações dele, não?
- Isso mesmo, creio que esse homem estranho que vimos seja o causador desses malefícios e segundo creio não é a última vez que veremos ele. Ele é aquele que profetiza e ele disse muito hoje. Devemos estar atentos ás palavras dele.
- O senhor diz quanto á nos sucumbirmos ao poder das trevas?
- Não, isso não, é líquido e certo que o poder de Rodoberto vai se expandir, mas digo á aquela força que irá surgir entre nós e que poderá ser capaz de derrotar o mal.
- Certo, o senhor está certo.
- E a última pergunta, o que o senhor acha que vai realmente acontecer agora?
- Olha, eu acho que nós devemos ter um encontro com os mais diversos aurores, mesmo que da Seção de Aurores da Presidência, ainda enquanto a batalha não foi declarada, pois agora é o movimento do adversário e eu acho que ele vai ser brutal. Prefiro não ser específico.- disse o professor definitivamente.- Agora saindo desses assuntos obscuros eu queria saber mais sobre você professor. O que você faz durante as férias?
- Ah, eu não faço muita coisa não, estudo, pratico, saio um pouco, vou a grupos de discussão das teorias das artes das trevas.
- Mas você não se acha muito aficionado pela arte das trevas?
- É, eu sou, desde pequeno.
- Eu gostaria de lhe dizer uma coisa professor, esse é um campo muito perigoso da magia, você está tão próximo das artes das trevas que basta um movimento sequer e um deslize e se cai no outro lado, que é um lado tortuoso e da onde é muito difícil de sair depois, dessa forma eu digo muito cuidado. De qualquer forma eu confio que o senhor tenha a sabedoria exata dos limites que essas artes impõem.
- E o senhor diretor, o que faz durante as férias?
- Ah, antigamente quando eu era mais jovem e isso foi há muito tempo eu costumava sair pela noite e me divertir com os amigos em baladas mágicas, mas já faz muito tempo. Hoje em dia eu tenho estado muito ocupado com as minhas funções de diretor e ajudo de vez em quando o Presidente Bruxo que nem tenho tido muito tempo, mas de vez em quando eu ainda saio de noite e me divirto um pouco. Pode até parecer meio estranho pra você, e percebo isso pelo seu rosto, mas um senhor da minha idade também se diverte embora sua pergunta tenha sido apenas por educação.- responde o diretor com certo sorriso no rosto.
- Me desculpe.- disse meio sem graça o professor.
- Não há de quê. Acho que já está em hora de irmos embora, ainda temos que nos preparam para a festa da Gadelha.
- É verdade e já está tarde mesmo.
- Vamos?- disse o diretor colocando o dinheiro em cima da mesa e avisando o garçom-bruxo. Os dois aparataram do restaurante depois de um cordial adeus e um até logo. Sobre a mente do professor ainda pairava mais uma pergunta, além das que foram ditas no Cheiro de Alecrim. “Como ele sobreviveu?”

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