Unhas Partidas



Unhas Partidas





Não consigo sentir minhas mãos enquanto tento manter a pena firme entre os dedos. Hoje, tive um acesso de fúria contra mim mesmo e sinto vergonha ao admitir o quanto estive perto de tentar me matar de alguma forma, embora seja quase impossível com os poucos recursos desta cela.

As pontas dos meus dedos estão feridas, sujas com sangue seco e minhas unhas jazem quebradas e, de certa forma, sinto prazer na dor causada ao apertá-las pois é um indicativo de que ainda estou vivo. Mas o estado lamentável de minhas mãos não é por acaso. Num longo espaço de tempo, do qual não me recordo exatamente, me coloquei a arranhar as paredes, talvez envolto pelo pânico ou pelo medo, mas nesta atividade acabei machucando minha pele na pedra crua, deixando-a em carne viva.

Mas ainda pulsa sangue nesta pobre carcaça que um dia ousou ter nome, sonhos e alegria.

Por incrível que pareça, desde que despertei do meu estupor insano, estive pensando em Tiago. Revendo nas imagens do meu passado seus cabelos arrepiados e seus olhos castanhos por detrás da lente dos óculos. Ele era magnífico com sua pretensão e auto-suficiência, e é até ridículo imaginar que no final das contas acabamos nos tornando grandes amigos.

O que se pode dizer do meu caro Pontas?

Talvez a pessoa mais indicada para descrevê-lo seja Lílian, que sempre foi muito sincera ao analisá-lo, mesmo depois de ter admitido para si mesma estar apaixonada por ele. No entanto ela esta morta e acho que cabe apenas a mim e a Remo dizer o que Tiago Potter realmente foi, e, em poucas palavras, isso seria: a pessoa mais egoísta e fiel que já existiu na face da terra.

Aluado teria rido disso, com certeza. E até eu estou rindo ao lembrar de como ele conseguia ser insuportável quando queria.

A primeira vez que me dignifiquei a prestar atenção a sua pessoa, eu já havia me conformado com a constante presença de Remo e Pedro, que não escondiam de ninguém que gostavam de estar na minha companhia e, até hoje, é um mistério para mim os motivos de ambos para terem me suportado durante tanto tempo.

Sejamos claros: tanto eu, quanto Tiago, éramos ridículos com os nossos onze anos.

Mas a verdade é que eu nunca havia tido a oportunidade de cruzar o meu caminho com o de Pontas, e o sobrenome Potter só significava uma coisa na minha cabeça: família puro-sangue, amigos de Dumbledore e um grande aviso de que não era gente da estirpe com as quais os Black se relacionavam. E durante todo este tempo de alienação dividíamos o mesmo dormitório masculino, cada um recolhido atrás de seu dossel, ignorando a existência um do outro. No entanto, como era de se esperar, num belo dia chegou o momento das minhas vontades convergirem e se chocarem com as de Tiago, e já se pode até imaginar o que saiu disso.

Numa bela manhã, na qual eu tentava escapar, sem sucesso, da companhia de Remo que deixara Pedro comendo sua quinta porção de torradas para me acompanhar até o Salão Comunal, não podia estar mais possesso do que se minha mãe estivesse me perseguindo na tentativa de me convencer a vestir ridículas vestes de gala. E Remo falava e falava sem fim nos testes que seriam dados na próxima aula de Feitiços, e eu só queria poder tacá-lo de uma janela qualquer.

Ignorando os detalhes do novo método de estudo desenvolvido por ele e mais preocupado em alcançar o dormitório em busca de alguma salvação que me afastasse do discurso interminável que ele fazia, não pude ficar mais estupefato quando abri a porta do quarto e vi um grande emaranhado de penas, lençóis jogados ao acaso e o meu baú, exatamente o meu baú, com a tampa aberta demonstrando que fora claramente revirado.

Aquilo era um absurdo. Um completo descaso contra as minhas coisas e ao interesse coletivo e eu não pude sentir mais ódio do rapaz quatro olhos agachado atrás de sua cama procurando por alguma coisa.

- Mas o que aconteceu aqui? – Pude ouvir Remo perguntar ao meu lado num fio de voz, e havia até me esquecido do quanto estivera irritado por ele não calar a boca. Agora, eu só queria bater no nosso companheiro de quarto que erguera a cabeça afastando algumas mechas de cabelo para trás e nos olhava como se fossemos apenas dois nadas parados no umbral da porta.

- Vocês dividem este dormitório comigo, não? – Pude ouvir a voz de Tiago ressoar um pouco abafada enquanto ele estendia a mão por debaixo da cama na tentativa de apanhar alguma coisa.

- Sim, infelizmente dividimos este quarto com você! – Retruquei entre dentes, desviando de toda a bagunça que tomava o chão para alcançar minha cama e cerrar o punho diante do meu baú completamente revirado.

Remo me imitou indo até suas coisas, ficando calado diante da bagunça de seus pertences, o que me deixou ainda mais indignado já que era um absurdo alguém fazer todo aquele escarcéu e sair impune.

- Você deve ser o Black do qual meu pai falou! – Tiago disse de repente, erguendo-se e tornando a vasculhar no meio dos seus lençóis, retomando aquela busca por alguma coisa sem parecer se cansar. – Nunca pensei que estaria vivo para ver um Black na Grifinória! –Acrescentou com um sorriso que me pareceu claramente sarcástico, e que só alimentou minha vontade de socá-lo. – Aliás, sou Tiago Potter.

E nos meus pensamentos rapidamente vieram todos os comentários desagradáveis feitos por meu pai aos Potter.

“... Bruxos sem dignidade. Uma vergonha para a comunidade mágica! Amantes de trouxas imundos sem qualquer reverência a tradição que carregam no sangue..."

Portanto, não pude conter o comentário.

- Claro! Um Potter! O que mais poderia ser? – E para minha satisfação aquilo teve o efeito desejado, fazendo Tiago fixar os olhos nos meus e erguer uma sobrancelha em desafio.

- Não acho que você preze por sua vida se ousa ofender minha família! – Ele sibilou, parecendo muito corajoso. Óbvio, como poderia ter me esquecido deste detalhe, os Potter eram uma família de origens basicamente grifinórias.

- E o que você vai fazer, Potter? Me bater? – Questionei com escárnio, vendo com o canto dos olhos que Remo parara de arrumar suas coisas para nos observar. Estava mais do que nítido que aquela discussão acabaria em briga. – Pelo jeito Potter, sua família não te ensinou boas maneiras porque, se você não sabe, é falta de educação mexer nas coisas dos outros! – Completei, apontando para o meu baú aberto e vendo que nem esta acusação o fez se sentir intimidado.

- Eu estava procurando por uma coisa, Black! Não estava bisbilhotando seus preciosos objetos. – Respondeu como se isso fosse a coisa mais óbvia do mundo.

- Engraçado! E porque será que essa coisa estaria logo no meio dos meus pertences? – Perguntei, fechando a tampa do baú com força enquanto Remo estremecia com o barulho feito pelo choque de madeira com a madeira.

- Talvez porque seja comum ter ladrões entre os Black! –Ele retalhou no sorriso mais insuportável que eu já vi na minha vida e, embora eu tivesse cortado relações com a minha família por pura revolta, não pude evitar que o sangue subisse a minha cabeça e que num instante eu estivesse avançando para cima dele, derrubando-o no chão e começando uma briga.

Demorou muito tempo até Remo conseguir fazer alguma coisa para nos separar ou correr para chamar por ajuda, mas a verdade é que no final das contas foram necessários dois sextanistas e o próprio Monitor Chefe, que era da Grifinória, para nos segurar e impedir que arrancássemos mais sangue um do outro além do que já escorria pelos cortes dos nossos rostos.

- Mas o que significa isso? Será possível que vocês dois estejam se tornando verdadeiros vândalos? – O monitor perguntou, mas não cheguei a prestar atenção a todo o discurso de que deveríamos ser bons alunos, porque naquele instante era muito mais proveitoso dirigir miradas de ódio para o Potter. – Detenção, por duas semanas, para os dois!

E este foi o veredicto dado por ele depois que os sextanistas se viram seguros para nos soltar e eu já me encontrava mais controlado para não tentar quebrar novamente o maxilar de Tiago.

Assim como eu, ele também não estava nenhum pouco satisfeito por nossa briga ter sido interrompida. Teria ficado igualmente agradecido se tivessem permitido que continuássemos a nos esmurrar até que um dos dois caísse desfalecido. Já para Remo, a história era completamente diferente. Ele parecia horrorizado com a grandiosa fúria demonstrada por nós dois. Posso até adivinhar que durante muito tempo o Aluado tenha passado por diversos apuros na nossa presença, preocupado com o fato de que eu e Tiago tornássemos a tentar nos matar.

Só que hoje, depois de tantos anos, eu considero aquele primeiro atrito entre eu e Pontas uma coisa boa. Quer dizer, foi àquela briga que nos levou a cumprir detenção juntos e, querendo ou não, era impossível evitar a presença um do outro.

- Então, como é ser um Black renegado? – Ele me perguntou no penúltimo dia de limpeza das estantes da biblioteca. Já passava da meia noite, estávamos esgotados e cobertos de poeira, mas ainda tínhamos energias para nos insultar verbalmente.

- O mesmo que ser um Potter amante de trouxas, um traidor que escolheu o lado errado! – Repliquei passando uma mão pelo rosto para diminuir a concentração de pequenas partículas de terra.

O instante que se seguiu é o que eu chamo hoje de o primeiro momento de incerteza. Foi naquele breve espaço de tempo que eu duvidei pela primeira vez da verdade dita e defendida por meus pais.

- E quem disse que o seu lado é o certo? – Ele perguntou, parando o que fazia para me fitar na penumbra da biblioteca. Eu tive que comprimir os lábios diante daquela pergunta. Esta era uma questão que deveria ser analisada. Por mais que não quisesse admitir, ele estava certo, ninguém nunca havia determinado qual lado era o certo e qual era o errado.

- Os trouxas acabarão destruindo a tradição do nosso sangue, por isso devem ser expulsos do nosso mundo! – Eu respondi por fim, refugiando-me num dos principais motivos para a defesa da tradição das famílias bruxas.

Mas Tiago não se deu por vencido e replicou com convicção, ele também era teimoso quando as coisas se tratavam das suas opiniões.

- Não vejo diferença nenhuma entre mestiços, trouxas ou bruxos puros-sangue. –Disse, dando de ombros só para ver que tinha toda a minha atenção. – Veja o Lupin, por exemplo. – Acrescentou logo em seguida, continuando a falar enquanto tornava a limpar mais livros. – Ele é um mestiço e é uma das pessoas mais inteligentes que eu conheço.

E eu não pude dar nenhuma resposta porque ele estava certo. Remo fora simpático comigo, se destacava em todas as aulas do nosso ano e a pureza de seu sangue parecia não interferir em nada.

Mas porque então meus pais insistiam naquela idéia absurda de sangue nobre e puro?

Naquela noite, quando fui me deitar, já não tinha mais motivos para pensar em modos de me vingar de Tiago Potter. Na verdade, estava mais preocupado com o fato das minhas crenças estarem indo por terra abaixo. Só porque meus pais haviam dito uma coisa, não queria dizer que ela estivesse certa. Mas era difícil abrir mão de uma idéia que desde pequeno você se viu obrigado a acreditar.

Quando o dia amanheceu e eu fui impelido a me levantar para tomar café e cumprir com minhas obrigações, não pude evitar de observar Remo com um novo interesse, tentando encontrar algo que o mostrasse inferior a mim e a minha linhagem. No entanto, quanto mais eu buscava por diferenças, mais eu via o quanto Potter estava certo ao dizer que éramos iguais.

Senti raiva, muita raiva ao ver que havia sido enganado por meus pais. Eles mentiram sobre o mundo, disseram coisas que desde o início eu estivera disposto a morrer para defender. Aquelas opiniões preconceituosas haviam se tornado as minhas crenças e, agora, um simples garoto arrogante conseguia destruí-las com nada mais do que a verdade.

Mas eu também senti medo quando na terceira aula do dia dividi uma carteira com outro mestiço da Lufa-lufa. Se ter o sangue puro não significava nada, então isso não me dava nenhuma maravilhosa benção ou proteção. Meu sobrenome Black era pó, e eu era comum e deveria lutar para me destacar. Só de pensar nisso eu sentia minha cabeça rodar e deve ter sido por isso que quando a sineta tocou e eu demorei para recolher meus materiais o meu destino foi finalmente selado.

Depois de me perder em pensamentos desgastantes eu só queria poder ir para o Salão Principal e desfrutar do meu almoço em paz. Mas enquanto cruzava os corredores, carregando minha mochila pesada nas costas, refletindo pela milésima vez sobre assuntos que não deveriam preocupar tanto um menino de apenas onze anos, acabei esbarrando com Narcisa, que era dois anos mais velha do que eu e que caminhava pelo corredor acompanhada por um sextanista, amigo de Bellatrix e considerado o sonserino mais intragável dos últimos tempos, Lúcio Malfoy.

- Sirius! – Ela exclamou ao me ver, e eu só pude passar os olhos dela para o loiro alto parado ao seu lado, que destilava um olhar malicioso na minha direção e parecia contrariado por me ver no meio do seu caminho.

- Então este é o primo de vocês que Bella mencionou, não? – Ele questionou colocando uma das mãos dentro do bolso da capa caminhando decido na minha direção, a expressão fria, como era típico de um sonserino.

- Sim, Lucio, este é Sirius Black! – Narcisa fez questão de destacar o Black, mas nem isso pareceu significar algo para o Malfoy, que apenas continuou seu caminho cada vez mais próximo.

- O que seja! – Grunhiu depois de um tempo quando minha prima resolveu acompanhá-lo sem saber qual era sua intenção. – Deve estar contaminado com os germes dos perdedores da Grifinória. Pelo que sei anda com o sangue-ruim do Lupin! – Continuou dando uma calculada olhadela para trás para ver se Narcisa o seguia.

- Não fale assim! – Ela respondeu ajeitando seus fios loiros por detrás das orelhas. – Ele não trairia a tradição da família! – E eu queria rir diante da certeza que ela demonstrou, porque se soubesse pelo menos parte das novas idéias que brotavam como capim no meu cérebro, teria ficado enlouquecida ao ver que eu já não era nada fiel aos ideais de meus pais.

- Não importa, Cissa! – Lúcio replicou com sua voz suave. – Agora saia da frente seu inútil que eu quero passar! – Falou ríspido na minha direção, como se eu fosse um elfo e devesse obedecer as suas ordens.

E isto bastava por um dia. Eu podia ser pacífico quando queria, mas a última coisa que eu tinha era sangue de barata.

- E se eu não quiser? – Revidei cruzando os braços e vi satisfeito que o sorriso confiante de Narcisa se desfazia para uma careta de incredulidade. Provavelmente minha prima pensara que eu beijaria os sapatos do Malfoy assim como todos faziam.

- Como eu disse – Ele sussurrou depois disso, parando a uma pequena distância de mim e fixando seus olhos cinzentos nos meus. – Já foi contaminado pela coragem inútil dos grifinórios.

- Sirius, seja educado! – Narcisa ralhou parando ao lado de Lucio, e eu só lhe dirigi uma mirada sarcástica, deixando claro o quanto considerara ridículo o seu pedido.

- Vamos, Black, não seja tolo! – Malfoy anunciou por fim tirando sua varinha do bolso da capa e olhando perigosamente na minha direção. – Ou você quer amanhecer na enfermaria? – Acrescentou malicioso.

E era exatamente isso que aconteceria, pois eu era um primeiranista, que mesmo conhecendo inúmeros feitiços estava em clara desvantagem contra um sextanista como Lúcio Malfoy. Mas para meu total espanto foi neste instante que Tiago Potter resolveu aparecer no corredor, indo contra toda a lógica e se juntando a mim naquela briga contra o sonserino.

- Ora, ora, Malfoy! – Ele exclamou com um falso prazer, assumindo uma expressão de azedume digna de um prêmio. – O que foi agora, sua água oxigenada acabou?

Por uns instantes, a fúria brilhou descontrolada nas pupilas de Lúcio e eu tive que me controlar para não rir. Nunca pensei que Tiago fosse capaz de atingir o ego de Malfoy de forma tão certeira.

- Potter, não acho adequado para um fedelho como você sair desafiando pessoas mais velhas. – O sonserino replicou desdenhoso e Narcisa pareceu sumir do seu lado, prevendo um duelo.

- Pessoas mais velhas? – Perguntei subitamente inspirado por Tiago. – Eu só vejo um bebê loiro chorão, Malfoy! Falando nisso onde está a sua mamadeira?

E este foi o estopim para que começássemos uma troca fervorosa de feitiços e até hoje é impossível não lembrar dos cabelos desalinhados de Lúcio e do quanto foi engraçado vê-lo ser atingido por um feitiço de pernas bambas.

Tiago era bom em duelos e, juntos, nós causamos um bom estrago na figura certinha de Malfoy. Mas, no final das contas, estávamos em desvantagem e aquela batalha acabou nos rendendo uma temporada na enfermaria. E, para dizer a verdade, eu já não me importava em compartilhar um pouco de espaço com Potter.

Depois de uma noite estafante, regada as poções amargas de Madame Pomfrey, a manhã brilhante finalmente chegou e, tanto eu, quanto Potter, recebemos uma visita de Remo e Pedro, que nos trouxeram com muito gosto alguns doces que guardavam para ocasiões especiais. Naquele dia, eu e Tiago seriamos obrigados a permanecer em repouso nas camas alvas da enfermaria. Particularmente eu me sentia pronto para outra aventura, mas insistiam em nos tratar como se estivéssemos à beira da morte, e tivemos que nos contentar em ficar olhando um para cara do outro enquanto devorávamos sapinhos de chocolate.

Mas, às nove horas da manhã, como eu já deveria ter previsto antes, a bomba chegou. Ela veio trazida por uma das corujas negras da família, todas muito mal encaradas, e eu não pude deixar de reparar na careta que Potter fez ao colocar os olhos em Avender, minha coruja particular com olhos quase que brancos e bico empinado.

- Ah, não! – Gemi ao ver o envelope vermelho amarrado na sua pata e, imediatamente, ficou claro que minha mãe não perdera tempo em me mandar um berrador.

Até hoje não me esqueço dos gritos agudos que ecoaram pela enfermaria quando criei coragem para romper o selo. Tiago ficou de cabelo em pé ao escutar a bronca esganiçada da senhora Black, e eu poderia dizer que ficou traumatizado com esta primeira experiência, porque nos anos que se seguiram, sempre que eu recebia um envelope vermelho ele fazia questão de não estar por perto.

“...Sirius Edward Black! Eu simplesmente não acredito que você tenha sido capaz de me envergonhar diante do diretor desta escola. Quem você pensa que é para sair duelando na companhia de um Potter contra um dos nossos? Ainda por cima contra um Malfoy! Lúcio Malfoy! Quando Narcisa me enviou uma carta, ontem à noite, dizendo que você anda amiguinho do Potter, eu e seu pai quase tivemos um enfarto. Que desgosto, que desgosto! Não acredito que eu esteja criando um bastardo! Já basta ter caído na Grifinória e agora deu para andar com amantes de trouxas. Sinto vergonha em ter de admitir que você seja meu filho! Espero não ter que passar por mais outra situação como esta e, se eu souber que você continua na companhia destes traidores, juro que te expulsarei de casa e você poderá se considerar um nome morto na nossa tapeçaria!...”

E a voz dela continuou por algum tempo ressoando pelas paredes de pedra e, quando olhei para Tiago, pude ver que ele estava completamente paralisado, parecendo incrédulo diante daquele teatro.

- Céus! Sua mãe é simpática, não? – Ele comentou enfiando um chocolate inteiro dentro da boca.

O envelope diante de mim virou pó em poucos instantes e eu fiz uma careta perante aquilo. Ela havia ficado furiosa com o duelo, mas de certa forma senti prazer em provocá-la, e ela cometera um erro grave me desafiando a não andar com um Potter.

- Pessoalmente costuma ser pior! – Respondi, depois de um tempo, enquanto lançava outro olhar na direção de Tiago. – Ela costuma jogar objetos pesados enquanto grita.

Ele pareceu digerir esta última informação por alguns instantes e depois de um tempo apenas balançou a cabeça em concordância. Fiquei satisfeito ao saber que ele não sentia pena de mim Odeio quando as pessoas me olham com dó, e ver que ele parecia disposto a tudo menos nutrir algum sentimento de piedade por minha pessoa me fez considerá-lo mais simpático.

- Você pretende parar de falar comigo por causa dela? – Tiago perguntou depois de algum tempo me surpreendendo, porque, até aquele instante, eu não havia pensado no que resultaria aquele novo coleguismo.

Observando que ele ficara meio acanhado depois dessa pergunta e, abrindo um sorriso meio irônico com o canto da boca, não pude evitar responder com um leve tom de menino levado.

- Sabe como é, não é Potter? Odeio ter que obedecer a ordens, principalmente quando elas vêm da histérica da minha mãe! – E neste instante ele ergueu a cabeça, um sorriso iluminando sua face, e pela primeira vez me senti próximo a ele.

- Já estou até vendo o quanto será extremamente proveitosa uma parceria entre nós, cara! – Ele disse por fim, jogando um sapinho de chocolate na minha direção o qual apanhei ainda no ar, satisfeito.

- Pelo visto, não fui o único a sentir prazer em ver o loiro azedo do Malfoy ficar todo nervosinho! – Retruquei com a boca cheia de chocolate.

E ele se pôs a rir histericamente, deitando na cama colocando uma das mãos na barriga. Era um espetáculo inteiramente novo. Ninguém nunca havia rido daquela maneira na minha frente e por alguns momentos comecei a lamentar o fato de nunca ter tido oportunidade de desfrutar antes situações como esta.

Já ia dizer alguma outra coisa, algum outro comentário pernicioso só para continuar fazendo-o rir quando Pomfrey entrou, esbaforida, na enfermaria, o seu chapeuzinho despencando para um lado do topo da cabeça e as maçãs do rosto vermelhas por causa do esforço.

- Por Merlim! Que gritaria foi essa? Pensei que tinha todo um batalhão aqui! – E dessa vez fui eu quem comecei a gargalhar, imaginando a cara feia que minha mãe teria feito diante do comentário da enfermeira.

O restante do dia após o incidente da carta passou rápido, entre conversas e piadinhas feitas tanto por mim quanto por Tiago. Quando finalmente saímos da enfermaria éramos grandes amigos, como se tivéssemos convivido juntos desde pequenos. Mas, a verdade era que, nos completávamos, ele com sua alma puramente grifinória e eu com meu toque sonserino.

Quando nos sentamos à mesa para jantar, Remo Lupin e Pedro Pettigrew se juntaram a nós, e vi que começava a fazer parte de um grupo de amigos, pessoas que me eram valiosas por eu ter conquistado por meu próprio esforço e que não estavam ao meu lado simplesmente por eu ser um Black. Naquela noite, no dormitório, nós fizemos guerra de travesseiros e ficamos até altas horas contando anedotas, cada um revelando um pouco sobre sua vida fora de Hogwarts e, embora eu notasse que Remo ainda se mantivesse acanhado de contar tudo sobre sua família, não me importei, gostava do jeito misterioso dele e ninguém era obrigado a se orgulhar de seu passado.

Ainda consigo escutar no silêncio dessa cela os ruídos de nossas vozes abafadas, os diálogos intermináveis, acompanhados de risinhos contidos e comentários ácidos. Queria poder sentar novamente com meus amigos, formar uma roda e nos divertirmos como nos velhos tempos. Minha vida parece tão sem sentido depois que fui preso em Azkaban É como se eu tivesse voltado para o lado dos meus pais, arrependido de ter escolhido defender os ideais tão estimados por Dumbledore.

A dor que agora emana de minhas unhas arrancadas já não consegue sobrepor a causada pela saudade. Queria poder encontrar outros modos de esquecer além de me machucar, porque, enquanto olho o sangue escorrer dos meus dedos, me esqueço do sangue derramado dos meus amigos, mortos por Voldemort.

Eu choro por não ter conseguido salvar Pontas e Lily, choro ao relembrar a visão dos seus corpos inertes, e eu os amava como irmãos, como nunca fui capaz de amar Regulus, como nunca fui capaz de amar meus pais.

Essa dor talvez seja meu eterno castigo, pois, quando fecho os olhos, a primeira imagem que me vêem a cabeça é a de um Tiago pálido, caído no chão em meio aos escombros de sua casa, e já é difícil evocar as lembranças de suas gargalhadas, e temo não ter depois de um certo tempo nem mesmo a nitidez da sua face enquanto morto e isso me apavora.

É por isso que me declaro culpado, até mais do que Rabicho.

Culpado.

Eternamente culpado!

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