Que viagem...



(postado em 15.09)

Antes de tudo:

1. Muito obrigada por terem esperado a postagem do primeiro capítulo – finalmente o primeiro capítulo – o primeiro de alguns... e obrigada também pelos comentários lindos que já recebi.

2. Desculpem-me pela demora... peço desculpas de coração... muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo, mas aí está... Perdoem quaisquer erros, e qualquer coisa me avisem.

3. Não se desesperem e não me matem ainda, ok? É só a ‘introdução’.

Boa leitura...


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Capítulo 1 – Que viagem...

Quando criança, aos sete anos, o pequeno garoto loiro e magro viajou com sua mãe para o sul da França, onde alugaram uma casa no campo e passaram cerca de 15 dias na região. Sabia que jamais esqueceria aquela paisagem: árvores ao redor da casa, extensos gramados, parreiras na estrada, uma casa rústica, mas muito confortável e uma tranqüilidade que nunca havia sentido antes. Apesar de ser filho único, já acostumado com a solidão, naqueles dias não se sentiu solitário, mesmo tendo passado a maior parte do tempo de fato sozinho, sem sua mãe por perto ou quaisquer empregados. Sentia-se dentro de um quadro que tinha na sala de leitura de sua casa, uma linda paisagem que parecia te transportar para todos os lugares, para qualquer lugar onde não existisse problema algum, onde a brisa parecia fresca e leve e balançava suavemente as folhas das copas das árvores. Aquela imagem, assim como as lembranças dessa viagem, era quase um refúgio, um lugar no mundo que pudesse considerar como seu. E nada melhor do que fugir, literalmente, para esse refúgio quando a situação aperta de verdade. E foi o que ele fez.
Quando lhe disseram “Fuja! É sua única opção!” não lhe veio outro lugar senão este. Mas também não lhe foi permitido pensar ou planejar mais nada específico. “AGORA. VAI!” E foi, pensou somente nas imagens de sua única boa lembrança da infância. Passado o mal-estar da desaparatação e observando ao redor não viu o que esperava. Não viu nada familiar. Tentava identificar onde estava, mas mal conseguiu parar em pé. Os olhos procuravam algo conhecido, porém não conseguia mantê-los abertos, e mesmo que o manto da noite não lhe permitisse reconhecer a paisagem seu olfato nunca lhe traía. Ainda se lembrava do cheiro doce das parreiras na estrada e o cítrico das árvores frutíferas, mas o que sentia agora não era nem sequer parecido.
As pernas procuravam um caminho, mas não suportavam o peso de seu corpo. Caiu de joelhos no chão. Arrastou-se até uma grande árvore que estava próxima. Olhando em volta tentava entender onde estava, porém sem sucesso. Estava com o corpo demasiado dolorido, não exatamente pelo esforço físico da batalha da qual acabara de sair, mas principalmente por, talvez pela primeira vez, assumir uma vontade que fosse realmente sua, e não a que sempre lhe foi imposta. Estava com o coração apertado, despedaçado, sentindo a consciência martelá-lo sem piedade, assim como sem piedade agira nas últimas semanas, ou anos. E a consciência, essa terrível companhia, também lhe arranhava a pele, esmagava a garganta, trancava a respiração, bloqueava o raciocínio. Não conseguia pensar.
Essa avalanche de sensações começou após ter sido jogado ao chão enquanto via com horror um par de olhos muito azuis emoldurados por óculos de meia-lua, que lhe encaravam com carinho, expectativa e compreensão, fecharem-se para sempre, dando-lhe motivos para acreditar em um lado seu há tanto tempo esquecido e pouco praticado, mas que aquele olhar afirmava que existia e que deveria persistir; logo foi puxado para cima, pela gola da camisa, sendo arrastado com brutalidade para longe dos domínios daquele olhar; ouvia gritos e passos enquanto gritava internamente e corria com uma fúria e desespero que nem sabia existirem em si. Ainda ouvia o eco desses gritos e isso impossibilitava qualquer pensamento, conseguia apenas sentir. Sentiu-se nauseado de tanto que sua cabeça girava.
Olhou ao redor novamente, tentando afastar essas lembranças ainda tão frescas em sua mente. Murmurou alguns feitiços de proteção em volta de si por precaução. “Por que estou tão tonto, tão cansado? Não quero pensar... Não quero... lembrar... Parece que viajei por h-horas... Droga!!! O q-que ele... murm-murou? Onde est-t...” Nem conseguiu terminar o pensamento. Desmaiou.

Draco Malfoy acordou assustado ao ouvir gritos entusiasmados de crianças por perto. Levantou-se rapidamente, seus olhos demoraram a se acostumar com a claridade do sol que já estava alto àquela hora e, ainda tonto, retirou os feitiços e seguiu o barulho. Pôde ver dois garotos, entre 10 e 12 anos, brincando de luta com espadas de madeira, e espantou-se com a agilidade deles, mesmo ainda tão novos, e como eram diferentes entre si, um dos garotos parecia ser hispânico ou português e o outro de traços orientais, provavelmente japonês. Visto o estilo de luta e a roupa que usavam, algo parecido com uma túnica marrom de mangas longas e largas e calça muito larga também e, pela destreza dos movimentos, definitivamente não estavam apenas brincando. “Onde estou afinal?”, perguntou-se confuso, tentando não pensar na dor de cabeça que sentia ou o quão longe da Inglaterra ou do esperado sul da França estaria.
O garoto que parecia ser o mais velho interrompeu o treinamento com o parceiro e olhou diretamente na direção de Draco. Este, pensando que estava bem escondido, estranhou a convicção do garoto ao olhar para a árvore onde se encontrava. Fez sinal para o parceiro de luta e aproximaram-se do intruso. Ao ver-se sem saída, Draco saiu de trás da árvore e cumprimentou os jovens com um aceno de cabeça e nem precisou fingir que estava perdido. O rapaz perguntou algo que Draco nada entendeu. Respondeu hesitante, em inglês, que não entendia o que ele falava e espantou-se novamente quando ouviu o garoto falar em um inglês quase sem sotaque, rápido e bem compreensível:
- É americano? O que faz aqui? Está sozinho? Qual seu nome? O que procur...
- Calma, garoto. – Draco interrompeu o garoto para que pudesse entender a situação e sem dar muita importância à dor que quase lhe esmagava o cérebro e uma tontura que não passava – Uma pergunta de cada vez, por favor. Não sei como vim parar aqui. Que lugar é esse?
- Mmmmm.... ele parece britânico... – olhou para seu parceiro como se perguntasse se poderiam falar que lugar realmente era aquele, e tentou outra estratégia – er... Como assim não sabe como veio parar aqui? Se está aqui, deve saber como chegou... Quem está com você?
- Estou sozinho... Mais uma vez. – falou muito baixo, mais para si mesmo do que para o garoto que o questionava, olhou para baixo, encarando os pés para não ter que encarar a própria dor. Quando levantou a cabeça sentiu tudo girar muito rápido e apoiou-se na árvore.
- O que houve? Você está bem? – só então o garoto prestou atenção ao rapaz à sua frente: cabelos loiros muito claros, não muito mais velho que um adolescente, vestia uma calça social preta que estava rasgada na altura dos joelhos, camisa branca suja de terra e uma grande mancha de sangue no ombro, uma bonita gravata verde torta e frouxa no pescoço também salpicada de sangue, pele e cabelos sujos, destoando totalmente da nobreza que o rapaz aparentava, tanto pela postura como pelo tom educado e frio de sua voz, apesar de cansado e perdido.
- Eu... estou... apenas cansado e um pouco... tonto. – Draco respondeu ao garoto pensando “Mas o que diabos está acontecendo comigo? Maldito Snape!!!”
- Você está ferido! Venha. Precisa de alimento e cuidados. Venha conosco. – disse o garoto estendendo a mão para que o loiro o acompanhasse.
O loiro não se sentia muito disposto a pensar o quão estranho era alguém ser simplesmente gentil com ele sem conhecê-lo ou esperar algo em troca, deixaria para pensar nisso mais tarde, no momento precisava mesmo descansar. Aliás, deixaria para pensar em muitas coisas mais tarde. E seguiu os garotos, que se posicionaram um de cada lado, prontos para acudi-lo caso caísse, o que parecia que ia acontecer a qualquer momento. Caminhava devagar, cambaleante e atento e antes que tivesse tempo de perguntar o nome do japonesinho à sua direita surgiu uma garota, também de traços japoneses e mais velha que os outros dois, correndo em direção a eles e falando no que ele supôs ser japonês. Trocaram algumas palavras e logo o garoto voltou-se para ele, chamou-o novamente e segurou em seu braço para lhe dar mais firmeza ao caminhar. A garota o olhou de canto de olho, desconfiada, e com um sorriso delicado partiu na frente deles.

Logo adiante tinha uma casa bonita, não muito grande, e aparentemente bastante acolhedora. Podia-se ver cerca de 10 jovens no gramado ao lado da casa, entre moças e rapazes, treinando em duplas com espadas de madeira ou alguma luta corporal. À frente da casa, sentado descontraidamente na varanda diante de um cavalete e tela, estava um senhor de estatura baixa e mãos ágeis pincelando uma encantadora paisagem. O japonesinho correu até ele chamando atenção e dizendo muito rápido, em japonês:
- Pai, veja, o encontramos perto do bosque, ele está quase desmaiando, não sabe onde está e parece estar muito ferido. Acho que ele é inglês. O senhor pode ajudá-lo?
- Sim. Sim – o homem levantou-se rapidamente indo na direção do rapaz e o conduziu para dentro da casa. Deitou o rapaz, que quase não reagia, no sofá e foi buscar algo para cuidar dos ferimentos dele.
Logo em seguida a garota trouxe um chá quente e o fez beber tudo, e riu sem-graça quando ele fez cara feia por ter queimado a língua com a temperatura do chá. Draco nem tinha percebido que estava ferido e nem se importava, só queria dormir e se livrar da dor em seu coração, mal percebia o pano molhado e quente que limpava sua pele, não ligando para a dor física da qual já estava acostumado, mas quando sentiu uma pasta morna sendo colocada em seu ombro direito e costas não conteve uma careta e um reflexo involuntário, indicando que havia ali um corte bastante profundo. A miscelânea de aromas no ambiente lhe entorpecia, ou era o efeito do chá, não soube definir. Adormeceu antes mesmo de terminarem o curativo das costas e sem nem ao menos encarar novamente os rostos dos que o ajudaram para guardar na lembrança um momento que poderia ser somente um sonho no meio de tantos pesadelos que sua mente guardava.
Dormiu profundamente por algumas horas. Durante o sono murmurava palavras quase inaudíveis e recordava as lembranças de um ano conturbado...

“Não ouse trair o mestre, seu idiota! Você pode pôr tudo a perder...”
“Eu quero falhar...”
“- Nãoooo, leve-me, não me importo, mas deixe-a fora disso...
- Moleque estúpido! Ela só tem valor para mim porque ela tem valor para você. Pense nisso...”
“Diretor, preciso de sua ajuda...”
“Você não pode falhar...”
“Isso é só pra me garantir...”
“Eu preciso falhar...”
“Mãe, eu sinto muito, mas não posso fazer isso, nem por você...”


E o desfecho da noite anterior, que parecia ter acontecido há muito tempo, ainda vinha em flashes na sua mente...

“- Professor... – disse ofegante.
- Cale-se. Não temos tempo para perguntas, Draco.
- Mas o que faremos agora?
- Fugir! É sua única opção. Se ficarmos, ou os Comensais nos matam ou a Ordem nos prende. E ser pego pela Ordem nessas circunstâncias será bem pior que ser pego pelo Ministério ou até mesmo pelo Lorde. Preciso de tempo para esclarecer umas coisas para só depois você reaparecer.
- Esclarecer? Esclarecer o quê? Está tudo muito claro Snape! O diretor está morto! E é culpa minha... eu que permiti a entrad...
- Cale-se. Agora não é hora, moleque. Fuja... suma daqui. Volte em um mês ou mais, não antes... dois meses ou mais... Vá Draco... O mais distante que conseguir, longe da Inglaterra, longe de bruxos, aliás, evite usar magia forte neste tempo. Toda emissão de magia é reconhecível, mesmo que minimamente. Use apenas em coisas indispensáveis, como transfigurações simples ou para conjurar água. Se precisar fazer poções, transfigure-se para poder comprar os ingredientes. Use dinheiro trouxa. Pegue... aí tem o que você pode precisar. – e jogou para o rapaz uma mochila preta de nylon que continha um pouco de dinheiro trouxa, uma jaqueta e calça jeans e uma camisa preta, livros de Poções, de DCAT e de Feitiços, alguns frascos de poção como a Polissuco, para curar ferimentos ou eliminar a dor. – Já está enfeitiçada, só você verá o que realmente tem aí dentro. Agora vá... o mais distante que conseguir... – disse empurrando o garoto para a porta, sem parar de olhar pelas janelas.
- Não posso partir sem saber como minha mãe ficará...
- Nem pense em contatá-la. – Snape disse sério, quase em tom de ameaça. - Em hipótese alguma tente falar com ela. Deixe que cuidarei dela. Prometi à sua mãe que te protegeria, rapaz, e é isso que estou tentando fazer, e eu faço isso apenas por ela, entendeu? Agora prometo a você que a protegerei. Saia daqui agora... AGORA. VAI !!!
Antes que pudesse pensar em qualquer outra coisa ou especificar um lugar para ir, Draco desaparatou, sem que pudesse entender o que Snape murmurou antes que o rapaz sumisse de sua vista. E Snape, desejando que Draco seguisse suas orientações, também deixou a casa sem olhar para trás e sumiu num estalo.”

“Onde estou?”
“Mãe, onde você está?”
“Mãe? Não!!!”


- NÃAAAOOO!!!!! – Draco saltou do sofá ao ouvir suas memórias explodindo em sua mente e um grito abafado pelo medo saiu de sua garganta, o rosto molhado de suor, a respiração ofegante e as mãos trêmulas. Em um segundo todo o medo desapareceu quando sentiu o toque quente e suave de uma mão pequenina sobre a sua, um toque delicado e acolhedor, capaz de dissipar toda a névoa pesada de seu coração. Pensou que seu pedido de paz tivesse sido atendido e não haveria mais sofrimento. Fechou os olhos para absorver aquela sensação e tornou a abri-los para ver o anjo que estaria lhe fazendo companhia. E viu a garota que havia preparado seu chá, rido dele ao vê-lo queimar a boca, aplicado o curativo em seus ferimentos, tudo sem lhe dirigir a palavra em momento nenhum, fosse para saber quem era ou o que estaria fazendo ali. Tornou a fechar os olhos, não querendo acordar daquele sonho, deu um quase sorriso por não se sentir sozinho depois de muitos anos e fechou seus dedos machucados em torno daquela mão tão delicada. Ela acariciou sua mão lhe chamando atenção e lhe ofereceu outra xícara de chá com a mão livre e ele teve que soltar suas mãos da dela para segurar a xícara. Com um pouco de dificuldade, sentou-se no sofá para beber o chá, ainda a encarando, sentindo as costas quentes e doloridas, fez uma careta pelo sabor amargo do chá e questionou:
- Obrigado... pelo chá... pelos curativos... por tudo... – disse com a voz baixa e rouca pelo susto dos pesadelos.
- Beba o chá... está quente... – ela sorria com os olhos e sua voz era alegre e quente, acolhedora e carinhosa.
- Que chá é esse? Para que serve? – disse tentando puxar assunto.
- São ervas medicinais. Beba tudo. Vai te fazer bem. – a garota respondeu já se levantando para dar lugar ao senhor que se aproximava.
- Inibe a dor, é antiinflamatório e estimula a cicatrização. – o senhor que o havia ajudado explicou didaticamente. Tentando ignorar o grito que ouviu para não perguntar nada que invadisse a privacidade de seu visitante o senhor colocou um sorriso paterno no rosto e continuou: - Até que enfim você acordou, rapaz. Como se sente?
- Sinto-me bem melhor agora, muito obrigado pela ajuda.
- Não há nada para agradecer. Fizemos o que nos foi possível.
- Eu ainda estaria desmaiado naquele bosque se aquele menino não tivesse me encontrado. Jamais terei como agradecer-lhes. – deixou a xícara na mesa e olhava a sala atentamente, tentando descobrir onde estava - Que lugar é esse?
- Essa é minha casa. Sinta-se à vontade. Já conhece meus filhos: Shaoran e Yume. – apontou para os adolescentes que estavam na sala e estes fizeram uma leve curvatura no tronco como cumprimento, depois apontou para si mesmo, falando – E eu sou Hikari Yamamoto. – apresentou-se se curvando também. Gesticulava muito e falava alegre e rápido, num inglês bem carregado de sotaque e muitas falhas de dicção. - Suba com Shaoran, ele lhe emprestará roupas limpas, tome um banho e relaxe, limpe bem esses ferimentos e desça para que Yume possa refazer os curativos, ela tem mãos de feiticeira. E depois podemos almoçar. – disse o senhor de forma tão simpática que Draco não teve outra alternativa senão seguir o jovem sem questionar mais nada. Parou ao pé da escada quando o senhor o chamou:
- Rapaz... – o loiro virou-se para atendê-lo – Ainda não sabemos seu nome...
- Hummmm... – “Será que posso dizer meu verdadeiro nome?” - Meu nome... - “Só o primeiro nome então... já está de bom tamanho...” – D-Draco. – disse em voz baixa.
- Certo, Draco... vá, vá, descanse um pouco... – o senhor disse sorrindo e movimentando os braços indicando que ele devia subir.

Enquanto subia a escada seguindo o garoto se deu conta de que o senhor disse “almoçar” e perguntou ao garoto que horas eram e por quanto tempo ele dormira, já que ele se lembrava de ter saído do esconderijo do Snape de madrugada, acordar já com sol bastante alto e apagar depois disso. O garoto, sempre muito curioso e falante, foi instruído pelo pai a não despejar um interrogatório em cima do visitante, respeitar seu tempo de recuperação, dando-lhe abertura para perguntas, mas sem entrar em muitos detalhes e espaço para se sentir a vontade e se abrir aos poucos. Contendo-se ao extremo para não infringir o pedido do pai, o garoto respondeu que já era quase dez da manhã e ele tinha dormido por mais de vinte horas seguidas, teve um sono bastante inquieto, falava algumas coisas que não dava para ouvir e depois acordou gritando. E não resistindo perguntou:
- O que aconteceu com você? Por que está ferido? Você parece ter muitos pesadelos... – percebendo o olhar triste e constrangido do loiro viu que não devia tocar nesse assunto e completou com a cabeça baixa – Desculpe, não devo me intrometer, mas você está bastante ferido, apareceu sozinho por aqui e parece que nem sabe como veio parar aqui, dormiu por quase um dia inteiro, hesitou ao responder seu nome como se não se lembrasse e não fala quase nada. Desculpe minha intromissão, mas é que sou muito curioso mesmo, não precisa me falar nada, não liga não. Meu pai até me avisou isso – ria de si mesmo, gesticulando, falando muito rápido e entrando num quarto amplo e bem iluminado – para não te encher de perguntas, para te deixar descansar e se recuperar, mas sabe como é, né, não me agüento, tenho que saber das coisas, tenho que descobrir tudo, perguntar tudo, ainda mais em inglês, nunca tenho com quem praticar o inglês, só na escola mesmo e com minha irmã, mas é sempre assim, não liga não. E não liga pros erros de pronúncia não, deve ter um monte, gramaticais também, eu tenho que praticar mais. Se quiser me corrigir, fique à vontade, quero aprender. Espero que fique um tempo conosco pra podermos treinar meu inglês. Mas agora você pode tomar banho. Pegue, – e entregou para ele calça e camiseta brancos – o quarto de banho e o banheiro são ali. - apontou para uma porta à direita – Já tomou banho num ofurô? – pela expressão confusa do loiro o menino entendeu como um “não” – Você vai gostar. Passe uma ducha no corpo para se lavar e depois entre no ofurô. Já está preparado, pode demorar o quanto quiser, eu acho que é a melhor forma de relaxar o corpo, principalmente quando estamos doloridos. Ah, cuidado que a água está bastante quente. Vou sair logo senão te atropelo com perguntas de novo. E se precisar de alguma coisa é só me chamar, estarei no meu quarto e é aqui ao lado. – e saiu sorrindo sem-graça, como se pedisse desculpas pela sua falta de tato.
Draco achou certa graça no garoto, atrapalhado porém educado, falante porém cuidadoso. Pegou a roupa, sentiu o cheiro suave do algodão e a textura macia da fibra. Olhava com atenção cada detalhe do quarto: tudo muito simples, porém bastante exótico; num canto tinha dois grandes sofás brancos, que mais pareciam colchões bem fofos e enormes almofadas verde-claras, uma mesinha baixa no outro canto com uma luminária e alguns livros empilhados no chão e mais almofadas, um armário que continha muitos vidrinhos com ervas e sementes e no balcão tinha uma bandeja com um jogo de chá muito bonito, janelas largas e de peitoril baixo deixavam o ambiente bastante iluminado e proporcionavam uma vista espetacular dos campos ao redor da propriedade, diversos quadros de paisagens nas paredes e na direção que o garoto indicou ser o quarto de banho tinha uma porta de correr larga que deslizou com um leve empurrão para o lado. Fechou a porta ao entrar e tinha mais coisas para observar: toalhas brancas macias, duas pias na bancada, um box separado com chuveiro e vaso sanitário e do outro lado viu o que o deixou mais impressionado, algo parecido com uma banheira, mas era redonda de madeira e da água que lá estava o vapor da água quente subia em espirais, a janela era quase da largura do banheiro e ia até o teto e o cheiro da madeira do ofurô, das flores que vinham na brisa que entrava pela janela, do algodão da roupa em suas mãos e do incenso no quarto ao lado o fizeram transportar-se para um outro mundo, um mundo tão surreal que o fez ignorar o cheiro de sangue em sua roupa e as dores no seu corpo, um mundo no qual ele podia finalmente relaxar, respirar e fechar os olhos tranquilamente. Despiu-se e entrou embaixo do chuveiro. Já estava acostumado com a dor física há tantos anos que nem se importou quando a ducha forte bateu em sua pele e a água fria fez arder os cortes e arranhões, lavou o sangue e a terra dos ferimentos, lavou os cabelos, fechou a ducha e entrou lentamente no ofurô. “Isso é realmente bom!” – foi o limite máximo de palavras que seu cérebro conseguiu produzir. Relaxou os músculos, respirou profundamente e fechou os olhos, totalmente entregue àquele momento somente seu. Ao longe podia ouvir o tilintar de pedras e bambus que se tocavam e cantavam junto com o vento. Pediu ao seu inconsciente que não dormisse para não se afogar e curtiu aqueles minutos como se fosse o início de uma nova vida.
Algumas batidas na porta fizeram Draco despertar de seu torpor. Respondeu que já estava saindo, abriu os olhos devagar, perguntando-se por quanto tempo viajou nas sensações do momento. Decidido, levantou à contra gosto, secou-se, vestiu-se e saiu do quarto em direção à cozinha. Desceu a escada apoiando-se na parede, ainda entorpecido pelos aromas e pelas dores no corpo.

O relógio da sala indicava que era mais de meio-dia. “Nem vi o tempo passar”, pensou Draco. O almoço seguiu tranqüilo, assim como o restante do dia, onde foi praticamente obrigado a ficar em repouso no quarto onde estivera instantes atrás. Draco sentia-se muito fraco e com os sentidos lentos, e desconfiava que isso fosse efeito do tal chá e da forte pasta que passaram em seus ferimentos logo após o almoço. Porém, estranhamente, confiava naquelas pessoas e não se importou com a breve sensação de fraqueza que se manifestava o tempo todo. Dormiu parte da tarde, comeu algo no início da noite e voltou a dormir. Shaoran aparecia vez ou outra pra saber se ele precisava de algo, trocavam palavras pouco significativas e voltava a deixar o loiro sozinho para descansar. O dia amanheceu inundando o quarto com uma luz dourada suave e morna, despertando Draco de mais um pesadelo. Tomou uma ducha demorada e ficou mais um tempo no quarto. Não sabia que horas eram ou o que faria durante o dia e, muito menos o que faria dali pra frente. Ignorou completamente os lamentos de seu coração, as lembranças da vida como bruxo e preocupou-se apenas em vestir a roupa que Shaoran trouxe noite passada e desceu as escadas pensando no que teria no café-da-manhã.
O senhor Yamamoto estava arrumando a mesa enquanto seus filhos traziam as travessas. Outros dois rapazes estavam na sala conversando animadamente com os donos da casa. Todos foram se acomodando à mesa e o convidaram a se sentar com eles. “Já é hora do almoço?” – pensou Draco enrugando a testa em sinal de dúvida enquanto se juntava a eles.
- É rapaz, parece que você dormiu bem, não foi? Dormiu bastante também. – brincou o sr. Hikari ao perceber a expressão do jovem antes de passar uma travessa de arroz para ele.
- Parece que sim, senhor. – respondeu tímido e um pouco sonolento ainda.
- Ihhhh... faz isso não Draco, meu pai tem um treco... – ria Shaoran, e antes que Draco pudesse questionar ele continuou – Meu pai não gosta que o chamem de senhor... só é permitido esse tratamento quando ele está dando aula, mas aqui dentro de casa não... ele diz que somos todos iguais. É bom eu te falar logo... – e ria mais ainda, vendo a careta engraçada que seu pai fazia.
- Certo... obrigado por avisar. – respondeu Draco, confuso e perdido entre as brincadeiras que aconteciam na mesa. Uma família. Brincadeiras, risadas, alegria. “Que estranho... será que vou me acostumar com isso? Humpft! Deixa pra lá...”
O almoço correu tranquilamente, sem perguntas ou insinuações, falavam apenas de coisas triviais ou sobre o treino do dia, que Draco logo entendeu que o sr. Yamamoto era o professor de algum tipo de luta daqueles rapazes, e provavelmente de todos aqueles outros que ele viu assim que chegou ali. Tudo era muito simples, a casa, os móveis, a comida, as pessoas, a conversa. O loiro se sentia estranhamente à vontade naquela casa, mais a vontade em um dia com aqueles estranhos que o acolheram tão bem sem nada saberem do que em sua própria casa durante todos os anos de sua vida ou até mesmo na escola onde ele era o popular e temido garoto mau que tantos odiavam.
- Rapaz, - disse sr. Yamamoto chamando atenção de Draco - aqui na minha casa todos são bem-vindos, não importa de onde venham ou porque venham, mas sempre aviso que todos têm responsabilidades e devem sempre cumprir com suas obrigações. – ele tinha um tom de voz amigável e suave, porém firme e direta. - Fique o tempo que for necessário, mas saiba que durante o tempo que ficar aqui fará parte da minha família e dos nossos costumes. Não se preocupe que em pouco tempo você pega o jeito. Sempre dividimos as tarefas para ninguém ficar sobrecarregado nos trabalhos da casa nem da escola. A casa é pequena, mas faço questão de receber quem precisa de um lar ou da educação que eu possa ensinar na escola que criei, que mantenho graças à boa vontade de uns e o pagamento de outros. São as coisas mais valiosas para mim.
- Eu não sei como agradecê-lo, senhor. – Draco disse tentando não mentir para o homem que estava sendo tão gentil com ele, mas não podia dizer toda a verdade, então teria que omitir algumas verdades. Viu o sorriso engraçado de Shaoran e completou – Desculpe, força do hábito... mas enfim, não tenho como agradecê-los por me aceitarem aqui neste momento. Não sei se tenho para onde ir daqui uns dias... não sei nem se quero voltar... – terminou a frase falando muito baixo, mais como um desabafo para si mesmo.
- Fique o tempo que for necessário... Não precisa me contar nada agora. – respondeu Hikari muito sério e compreensivo. - Sei que não quer nos contar nada agora, não tem problema, mas uma hora eu vou querer saber por que chegou aqui tão machucado e sozinho. Você parece ser menor de idade ainda, vestia o que parecia ser um uniforme escolar, deve ter alguém responsável pela sua educação e, pelo visto, é uma educação cara... – sabia muito de leitura corporal e prestava atenção em cada movimento do rapaz, cada músculo que retraía em vergonha ou medo ou dúvida. – Quando estiver pronto, pode conversar comigo... – e vendo que todos já haviam terminado o almoço, mudou de assunto - Todos já terminaram? Então vamos retirar a mesa que a tarde de hoje vai ser longa.

Draco ficou sem saber como agir ou o que pensar diante daquele senhor tranqüilo que parecia saber tanto e era discreto o suficiente para não perguntar o que ele não responderia no momento. Optou por olhar para Shaoran como se perguntasse “O que faço agora?”, mas foi Yume que captou esse olhar e colocou os pratos nas mãos dele pedindo que os levasse até a cozinha. O loiro ajudou a garota a arrumar a cozinha e Shaoran colocava ordem na sala. Os outros rapazes seguiram para o gramado onde seria a próxima aula. Draco não tinha idéia de como agir naquela casa, estava totalmente perdido entre tanta cordialidade e simpatia e essa confusão de pensamentos estava estampada em sua expressão facial, que Yume percebeu em um único olhar.
- O que houve? Não sabe para onde a louça suja vai depois do almoço? – comentou com o loiro, sorrindo. - Parece que nunca teve um almoço em família...
- Na verdade, não. Não com uma família como a sua. Uma família de verdade. – respondeu com um meio sorriso triste. “Falei demais, droga”. O sorriso dela se desvaneceu na hora.
- Desculpe minha indelicadeza, Draco, – a garota disse se aproximando e tocou seu braço para que ele parasse de mexer aleatoriamente na louça e a encarasse. - Não queria te ver chateado. Enquanto não soubermos o que aconteceu com você não saberemos qual assunto é proibido.
- Na minha casa, Yume, todos os assuntos eram proibidos. Qualquer coisa que não fosse sobre o trabalho do meu p-pai... não era bom o suficiente. – “Ou mau”, completou em pensamento. Surpreso, sem saber de onde aquelas palavras vieram e como se atreveram a saltarem de sua boca sem permissão ou controle. “Tenho que me cuidar para não falar o que não devo”.
- Não consegue chamá-lo de pai?
- Desculpe a grosseria, mas a função dele como pai foi apenas biológica, entende? Nada mais. Aquilo não era um “pai”, não como o que todos dizem. Aquilo não era uma família. – “Falei demais de novo, droga. Sem sentimentalismos, seu idiota. O que diabos essa garota tem? Parece que não tenho controle sobre minhas próprias palavras...” Olhou sério para ela e perguntou de modo frio: - Quais serão minhas funções aqui? O que devo fazer?
- Traga toda a louça pra cá, por favor, e eu cuido da cozinha, pode ir ajudar meu irmão... Não pise em brasas comigo, Ryu. Não é a mim que você quer atingir. – disse olhando-o diretamente nos olhos e virou-se antes que ele pudesse piscar.
- Espere... do que você me chamou?
- Ryu... – respondeu sem olhar para trás - É seu nome... Draco é dragão em latim. Ryu é dragão em japonês. – virou-se para o loiro e o encarou com carinho e um sorriso meigo, demonstrando que não ficou chateada com o tom de voz dele, completou – Dragão é um dos animais mais importantes da cultura oriental, se não for o mais importante, é conhecido pelo seu poder, força, ambição, inteligência, coragem e magia. É guardião de templos, protetor de deuses. Suas escamas são impenetráveis, garras super afiadas, olhar intimidante, mas possuem um nobre coração imenso de bondade. De alguma forma, em alguma intensidade, você possui todas essas características. – e um outro sorriso, agora travesso, surgiu em seus lábios – E você até solta fogo pela boca quando se sente ameaçado. – sorriu largamente e foi empurrando-o para fora da cozinha e num movimento rápido ele se esquivou numa careta de dor, quando ela encostou seu ferimento profundo nas costas.
- Talvez minhas escamas não estejam em sua melhor forma. – disse segurando-a levemente pelo pulso.
- Eu me esqueci. Sinto muito. – sorria se desculpando. “Uau! Que sorriso!!! Por que esse sorriso me afeta?” pensou Draco, que ainda não tinha largado o pulso da garota - Ainda dói muito? – ela perguntou soltando seu braço da mão dele, o virou de costas e puxou a gola da camisa para ver parte do ferimento. Ele tentou se esquivar novamente, mas ela foi mais rápida e mais forte do ele poderia imaginar. – Fique quieto... deixe-me ver. Isso ainda vai dar trabalho, ainda mais se você ficar fazendo manha. Mais tarde passamos o mesmo preparado de ontem, talvez em três ou quatro semanas melhore. Não force as costas para não mexer no ferimento, senão vai piorar ainda mais. Agora vai... vai arranjar o que fazer. Meu irmão adora arrumar atividades pra todo mundo. – e ele saiu emburrado massageando o ombro e pensando: “Fazendo manha... sei... quero ver se um corte feito por magia é curado por uma pasta morna e chazinhos... ainda bem que tenho ‘as escamas’ bem preparadas.”

Shaoran levou Draco para conhecer a propriedade, os campos, o pomar e o riacho que passava por ali, o bosque onde desmaiou ao chegar e o galpão de treinamento dos alunos mais avançados. Ouvia Shaoran tagarelando ao seu lado, explicando bem superficialmente sobre a escola de artes marciais e técnicas samurais, mas como ele nunca tinha ouvido falar de nada daquilo não entendeu metade da história, e nem se esforçou para entender também. No meio da tarde, depois do sol quente fazer sua pele transpirar e o suor escorrer de sua nuca e passar pelo machucado desejou ter agora em suas mãos as magníficas poções curativas da Madame Pomfrey e imediatamente lembrou-se que tinha poções naquela mochila que Snape lhe entregara. “Como pude me esquecer disso? E se alguém viu o que tem dentro?” E perguntou para Shaoran:
- Espere... você viu se eu estava com uma mochila no bosque?
- Ah! É verdade... Esqueci de te falar. O Fernando pegou uma mochila que estava perto de onde nos encontramos, ele pensou que fosse sua e trouxe pra cá enquanto eu te ajudava a se manter em pé. Lembra do Fernando? Ele estava treinando comigo quando te vimos no bosque. A mochila é mesmo sua, então. Deixei-a no quarto, deve estar lá.
- Certo... obrigado. – tentando descobrir se tinham aberto sua mochila, arriscou o “efeito-não-me-lembro” - Nem me lembro do que tem lá dentro. Deve ter alguma peça de roupa pelo menos. Será que tem alguma roupa lá?
- Não sei. Apenas peguei a mochila, deixei-a no quarto e corri pra sala ver como você estav... Ei... – o garoto olhou sério para o loiro e disse com um tom ofendido em sua voz – Espere aí... não... não está pensando que íamos abrir sua mochila pra saber o que há dentro, estava? Tudo bem que sou curioso, tá legal, mas não sou intrometido. Meu pai me ensinou muito bem a não me meter onde não fui chamado.
- Tudo bem, me desculpe se dei a entender isso. Foi mal. – disse erguendo os braços em sinal de rendição. “Estou começando a gostar dessas pessoas. Eles têm princípios bem enraizados e os seguem de coração”, pensava Draco. E para aliviar o clima tentou mudar de assunto - Aliás, de quem são essas roupas aqui? Serviram certinho pra mim, são grandes para serem suas ou do seu pai.
- É... er... grandes... sim...
- Poucas palavras? – Draco perguntou divertido.
- ...
- Isso sim é estranho! – comentou em voz baixa, mas o garoto ainda assim ouviu.
- É... er... são... do meu irmão... ou... eram...
- Eram? – “Ihhh... Não aliviou o clima...”
- Meu irmão mais velho... Mais velho que Yume. Ele... foi... embora... ninguém sabe pra onde ou por que, nem... com quem, ou até quando... – respirou profundamente e depois continuou a falar, com voz distante - Já tem mais de seis meses que ele partiu... – parou de caminhar e olhando para o chão disse com a voz embargada – Sinto falta dele... sinto tanto que chega a doer. – lembrou-se do irmão indo embora no começo de uma manhã muito fria onde a neve caia lentamente e olhou para o horizonte, dizendo em voz baixa e triste. – Sinto sua falta, Yuki.
Shaoran continuou a andar sem dizer mais nada. Draco não sabia o que dizer nesse momento. Levou uns segundos para se mover e seguir o garoto, andando alguns passos atrás dele. Nunca fora muito ligado em emoções, muito menos as alheias, mas naquela hora, com as poucas palavras e o olhar triste de Shaoran, sentiu-se brutalmente atingido por uma verdade: carregava consigo uma dor imensa, e descobriu que a carregara por muitos anos. Desde que chegara ali viu aquele japonesinho sempre sorridente e tagarela e vê-lo calado pela primeira vez, num silêncio tão doloroso, fez com que sentisse a dor da saudade também. E seguiram de volta para a casa, alheios ao exuberante pomar que cruzavam e ao pôr-do-sol que inundava o céu de azul, laranja e violeta, seguiam ambos com seus pensamentos distantes, sem terem nada para falar ao outro que não revelasse a densidade do peso gelado que a saudade possui.

Ao chegarem a casa, Shaoran foi atender um pedido de Yume e Draco ficou observando o final da aula do mestre Yamamoto. “Muito interessante... é auto-defesa, mas também serve para atacar. Força, equilíbrio e concentração”, pensava enquanto analisava os movimentos ágeis dos braços que empunhavam as espadas, a base firme das pernas e flexibilidade de tronco e ombros. “Minha prática no quadribol pode se mostrar útil nisso, afinal, também treino força, equilíbrio e concentração pra procurar o pomo muitos metros acima do chão.” Viu os alunos cumprimentarem o mestre e partirem para suas casas. Ficou ainda algum tempo contemplando o gramado com o bosque ao fundo, enquanto pensava... “O modo como se cumprimentam é bem interessante também. Demonstra respeito e confiança. Olhos nos olhos... aperto de mão firme... coração aberto...” Estava tudo tão silencioso que podia ouvir o canto dos pássaros e até o vento, mas o silêncio não durou muito, pois pôde ouvir vindo da casa uma música forte e rápida, e muito harmoniosa. Despertou de seus devaneios, entrou na casa e foi tomar um banho antes do jantar. Algum tempo depois estavam todos à mesa comendo e conversando. Draco comentou distraidamente que nunca tinha visto ninguém lutar daquela forma (“Ou de forma alguma senão com varinhas, mas eles não precisam saber disso”). O sr. Yamamoto então disse a Draco que ele deveria participar de suas aulas, assim como das aulas de Yume também. Ele nem se importou em perguntar que aula que Yume dava, apenas consentiu e continuou a comer, feliz em poder aprender algo novo. Depois do jantar ajudou Yume a arrumar a cozinha, conversaram muito pouco, mas mesmo assim ele sentiu que ela o observava e parecia saber o que ele sentia, visto que sempre que seus olhares se cruzavam ela o fitava com compreensão e carinho. “Não estou acostumado com tantas gentilezas... Não sei como agir!!! Mas ela parece saber disso e me deixa a vontade, isso é estranho, ela é estranha”, pensava Draco enquanto secava os talheres e ela guardava os pratos no armário.
- Draco, quer jogar Sudoku depois? Garanto que não ganha de mim!!! – perguntou Shaoran ao passar pela cozinha – Nem a Yume ganha de mim... Depois vai lá na varanda, te espero lá. – e saiu com um sorriso confiante nos lábios e uma caixinha de madeira na mão, provavelmente contendo o jogo mencionado.
- Sudoku? Do que se trata? – Draco perguntou para Yume com o maior ‘ponto de interrogação’ nos olhos.
- É um tipo de quebra-cabeça. – ela responde rindo da cara de perdido que ele fez. – Era o jogo preferido da minha mãe. Ela nos ensinou os princípios da matemática com esse jogo. É muito simples. Exige basicamente raciocínio lógico e algum tempo. Foi criado por um arquiteto americano, mas se tornou muito popular no Japão, mesmo porque palavras-cruzadas e caça-palavras não funcionam muito bem na língua japonesa, então os jogos numéricos são os preferidos. Tem um tabuleiro com vários quadradinhos que você deve preencher com números de 1 a 9 em cada uma das células vazias, de modo que cada coluna, linha e região só pode ter um número de cada um dos 1 a 9. Quando você ver o tabuleiro vai ficar mais fácil. Ah! Não se deixe levar pela euforia do Shao, ele emenda um jogo atrás do outro e não se cansa nunca, aí você não dorme hoje, e você precisa descansar. – ela disse com voz firme, porém carinhosa, e assim que ele terminou de secar os copos ela tirou o pano-de-prato da mão dele e foram para a varanda, e continuou a falar: - Não se esqueça do chá e do remédio. Ainda está tendo os pesadelos, certo? Beba o chá, vai fazer com que você durma bem e sem pesadelos. Deve dormir cedo.
- Sim, senhora... – brincou ele, tentando esconder a tristeza de seus verdadeiros pensamentos: “Pra que dormir cedo? Não quero dormir. É inevitável eu ter pesadelos... se bem que não são pesadelos, são lembranças. Tenho que acreditar que esses remédios trouxas vão me curar mesmo, preciso manter as poções do Snape o máximo possível, apenas para emergências. Snape sugeriu que me afastasse do mundo bruxo, que não usasse magia e desaparecesse por um tempo... então é isso que vou fazer... quanto menos eu pensar no mundo bruxo mais eu me afasto... é mais seguro. Já tem três dias que não uso absolutamente nada de magia e ainda estou vivo, não estou? Então ficar uns dias aqui pode me fazer bem sim, posso aprender a viver como trouxa por um tempo, e me virar sozinho depois. E essas aulas de artes marchais, não, martiais... sei lá, podem ajudar em alguma coisa.” E sentou-se entre Shaoran e Yume para que eles lhe explicassem como o jogo funcionava.
Seu olhar triste não passou despercebido pela atenta Yume. Não que ela precisasse ver a tristeza nos olhos ou na voz, ela simplesmente sentia a tristeza que emanava do coração. E ela sabia que Draco não estava apenas triste, eram tantos sentimentos pesados de uma só vez que até a confundiam. Ela sabia que o corte profundo nas costas dele não causava dor maior do que a que carregava dentro do peito. Sabia que ele se sentia perdido, dividido, em conflito consigo mesmo. Sentiu o desespero dele quando ele gritou durante o pesadelo no primeiro dia. Sentiu uma angústia que lhe apertava o peito quando ele voltou do passeio com Shaoran, no final da tarde. Sentiu a gratidão dele por ser recebido tão bem entre estranhos. E o medo por estar entre estranhos. Seus olhares se cruzaram novamente e com um sorriso doce ela tentou lhe dizer que estaria ali para quando ele precisasse, e ele pareceu ter entendido, pois esboçou um sorriso de agradecimento e voltou a dar atenção à explicação empolgada de Shaoran. Ficaram um tempo na varanda entretidos com os jogos e conversas à toa. O sr. Hikari estava na varanda também, mas um pouco distante, totalmente imerso em suas lindas paisagens. Quando o relógio da sala soou às nove horas Yume acenou para Draco indicando que era hora do chá. Ele, um pouco contrariado, assentiu com a cabeça e aguardou ela se levantar para entrarem.
- Ahhh... agora que ia ficar mais divertido. Está empatado, Draco, temos que terminar. Eu venci uma partida jogando sozinho e você e Yume venceram a outra. Dois contra um e vocês só conseguiram me vencer uma vez apenas. E chamam “melhor de três” porque se joga três vezes pra ver quem ganha!!! – reclamou o jovem tagarela que não perdia nenhuma oportunidade de dizer que estava em vantagem.
- Deixe-o Shaoran, ele deve dormir cedo e se medicar corretamente para se recuperar mais rápido, aí vocês poderão jogar até mais tarde. Deve ser difícil pensar no movimento do cavalo ou da torre enquanto vários cortes latejam sua pele, não acha?
- Sua irmã tem razão Shaoran, amanhã jogamos novamente. E quanto antes eu me livrar desses ferimentos mais difícil ficará pra você, rapaz.
- Duvido, mas tudo bem. Boa noite então. – respondeu emburrado.

Yume foi à cozinha preparar o chá e a pasta para aplicar na pele de Draco. Ele a seguiu e a observou separar algumas ervas e cascas e depositar ao lado do fogão. Ela acendeu o fogo, e numa pequena panela de ferro colocou as cascas e acrescentou água. “Isso não parece muito diferente de uma poção!” pensava Draco, “Como será que funcionam esses remédios trouxas?”. Não contendo sua curiosidade e interesse naquilo que tanto se parecia com sua matéria preferida, Poções, Draco perguntou à garota:
- O que você coloca aí? Parecem tantos ingredientes para um simples chá...
- Simples chá??? Não diga bobagens! Isso é muito mais que um chá. Isso é conhecimento antigo, repassado por muitas gerações e que já ajudou muitos guerreiros samurais a enfrentarem as guerras. Minha mãe aprendeu da mãe dela e ela me ensinou. Ela costumava dizer que esse chá se parece mais com magia do que com medicina “alternativa”, e eu acredito nisso.
- Magia? – perguntou com um sorriso cínico nos lábios, sorriso este bem semelhante àqueles que dava na escola quando queria provocar alguém. “O que ela sabe sobre magia?” – E você acredita em... magia?
- Claro que sim! – a garota respondeu confiante, enquanto cortava e picava algumas ervas e colocava em outra panela com água para preparar a pasta. – Tudo tem magia, Ryu. Todas as coisas vivas estão impregnadas de magia, de energia. Eu posso sentir sua energia estando a metros de distância de você. E a maneira como você vê as coisas não é necessariamente a maneira como elas realmente são.
- Como assim? – “Algumas pessoas nascem com o dom de apresentar magia e outras pessoas não! Simples assim.”
- Comecemos pelo básico: O que é magia pra você, Draco? Transformar-se num ser poderoso através de um amuleto ou então conversar com dragões ou quem sabe apontar uma varinha mágica e dizer “Abracadabra” como mostram os desenhos? Abra sua mente! A maneira como você interpreta a palavra “magia” pode não ser a mesma maneira como eu interpreto. - Enquanto falava com ele picava, media e misturava os ingredientes. - Pra mim, a magia existe nesse ato, – e apontou para a panela que continha o chá que começava a ferver e ela logo desligou o fogo – pelo fato de sermos capazes de entender e desfrutar do poder da natureza para nos beneficiarmos dela, sempre respeitando-a e vivendo em harmonia. Existe magia nas pinturas do meu pai, que ao pintar as paisagens preferidas da minha mãe ele superou toda a dor que sentiu quando ela morreu, dando-lhe força e determinação para seguir com nossa criação. Existe magia nas brincadeiras do Shao com os alunos mais novos, quando ele brinca de “lutinha” com eles, na verdade está transmitindo os princípios da teoria das artes marciais sem que as crianças se entediem com um adulto falando sem parar. É tudo uma questão de ponto de vista. – fez uma pausa para que ele pudesse absorver as palavras dela, serviu o chá numa xícara e a entregou a Draco. Macerou outras ervas junto com um pó de aroma muito forte e outras coisas que Draco não identificou. – E então, Draco, o que é magia pra você? – completou num sussurro e sorriu sapeca, virou as costas e foi ao armário pegar o último ingrediente para a pasta.
“O que é magia pra mim?... O que é magia... magia no mundo dos trouxas?... nunca tinha pensado nisso... Não existe magia no mundo dos trouxas... O que mais tem por aí que eu nunca tenha pensado antes... tantas coisas... E o que esses desenhos mostram sobre magia além do meu conhecido sistema varinha-palavra?” Draco perdeu-se em tantas perguntas que nem percebeu quanto Yume desligou a panela e misturou tudo, transformando numa pasta oleosa e cheirosa, falou alguma coisa e foi para a sala.
- Ei... estou falando com você. Vamos! – a garota chamou atenção dele novamente, já com o pé na escada e um pote na mão.
- Desculpe, me distraí...
- Eu percebi. Está pensando em quê?
- Em... muitas coisas... em quantas coisas você colocou aí dentro... e se isso realmente fizer com que eu durma sem sonhos e que esses cortes fechem em pouco tempo como você diz, e claro, se não for segredo de família, eu gostaria que você me ensinasse a preparar essas pastas. Eu me interesso muito por... medicina alternativa.
- Espero que você realmente aprenda muito por aqui, Ryu. Sobre muitas coisas... – abriu a porta do quarto dele e depositou o pote em cima da mesa. – Sente-se ali e tire a camiseta, por favor, enquanto isso esfria um pouco. – ele se sentou na cama e esquecendo-se que estava com os movimentos restritos, tentou tirar a camiseta com a destreza de sempre, mas seu ombro doeu muito e travou por um instante, fazendo-o parar o movimento. A oriental percebeu e voltou-se para ele – Espere, eu te ajudo. – ela o ajudou a tirar a camiseta e quando sua mão tocou levemente nas costas alvas do rapaz pôde sentir a pele dele se arrepiar com o toque e amaldiçoou-se por sentir sua pele esquentar. Apesar de sempre ter sido a única menina da casa por tanto tempo, entre tantos alunos e visitantes, nunca se sentiu desconfortável com a particular proximidade de alguém. E quando seu pai começou a ensinar garotas também, ela já havia se tornado a especialista em preparar chás e pomadas para eliminar a dor que era tão comum entre os mais entusiasmados lutadores, portanto no seu papel de “enfermeira” o contato físico era inevitável. O respeito que ela impunha através de sua postura e carisma era suficiente para manter os mais engraçadinhos na linha. Mas o novo visitante, o jovem loiro, misterioso e desconfiado provocou sentimentos diferentes na garota, nada parecido com sentimentos já conhecidos, mas mesmo assim lhe parecia familiar. “Mas ele é tão bonito, e sedutor, e esse mistério todo tem certo charme... não Yume, não pense nisso... pense no Enrique, lembra? Enrique, o amor da sua vida... droga!!!”. Tentou ignorar aquela sensação e dispersar sentimentos inadequados, sentou-se atrás dele na cama e logo começou a aplicar a pasta nos ferimentos enquanto explicava brevemente os efeitos esperados com o passar dos dias.
O loiro também foi pego de surpresa pela agradável sensação que o toque de Yume lhe causou. Apesar de ela ser cuidadosa e atenciosa, ele não estava com cabeça para se preocupar com qualquer tipo de relacionamento. “Mas ela é bastante bonita, e inteligente, e esse carinho com que me trata é um tanto quanto sedutor... Ahhh... pare com isso, idiota... tenho coisas mais sérias com que me preocupar no momento, não posso me distrair com garotas... Muito menos essa, ela merece alguém mais que especial”. Como aconteceu no outro dia, sentiu-se entorpecido pela miscelânea dos aromas do ambiente, da pasta e do chá, e agora surgiu outra questão: o perfume dela, sua pele e cabelos. E novamente não soube definir se aquela tontura e fraqueza repentina eram efeitos do chá ou do remédio ou do contato com a garota que despertara em si algo nunca sentido antes. “Não posso pensar nisso... Ela é incrível... mas tenho outras coisas... estou tonto... Merlin! O que tem nesse... chá? Foi bem mais rápido que... on-tem, eu acho... Tem quase o mesm-o... e-feito da poção para d-ormir... sem son-hos da enferm-aria de... Hog-warts. Y-u-me?...”
- Yume... – a voz de Draco saiu fraca e rouca, quase um sussurro. Estava de costas para ela, segurando debilmente a xícara já vazia com as duas mãos.
Ao ouvir o chamado ela despertou de seus devaneios e viu que ele já estava quase adormecendo. Retirou a xícara da mão dele e a colocou no chão ao lado da cama. Levantou-se devagar segurando-o pelo ombro para que ele não tombasse para trás e delicadamente o guiou até ele se deitar de bruços na cama. Terminou de espalhar a última camada da pasta, limpou as mãos numa toalha e abaixou-se um pouco para ajeitar o travesseiro para o rapaz, quando sentiu ele puxar sua mão. Quase sem força ele agarrou o pulso dela e sussurrou algo inaudível, mas imaginando o conteúdo das palavras ela apenas sorriu e lhe acariciou o rosto com ternura.
- Não se preocupe Draco. Suas escamas são bem mais fortes do que as outras que já tratei. Fique tranqüilo. Eu dupliquei a dose hoje, você não terá pesadelos. Durma bem. – depois de afastar uns fios do cabelo dele que caiam sobre os olhos, fez mais um carinho no rosto dele e depositou um doce beijo em sua testa, cobriu-o com um lençol até a altura da cintura, apagou a luz e encostou a porta ao sair.

Draco não teve pesadelos esta noite. Dormiu tão tranquilamente que parecia estar ouvindo um canto doce e suave em sua mente que junto com o aroma floral-amadeirado que ficou impregnado em suas narinas orquestraram a mais linda sinfonia de paz e relaxamento que poderia vivenciar. No dia seguinte, nem a claridade invadindo o quarto foi capaz de incomodar seus olhos e, menos ainda, intimidar o sorriso breve que estava estampado em seus lábios por ter tido a melhor noite de sono de sua vida. Aspirou ao próprio sorriso como se bebesse a fonte da vida, abriu os olhos devagar, alongando o corpo preguiçosamente. Levantou bem disposto e animado e alguns minutos depois desceu as escadas com os cabelos ainda molhados e o “bom dia” na ponta da língua para quem quer que encontrasse.
- Pelo visto você dormiu bem, não foi?
- Muito bem, Yume. O que tem naquele chá afinal? Senti-me quase que embriagado depois da primeira xícara... Nem me lembro de vê-la sair ou de como me deitei... – respondeu olhando diretamente para Yume, com um quase sorriso nos lábios, mas sua alegria estava mais explícita no tom de voz leve e tranqüilo e o brilho nos olhos. Baixou o olhar e tornou a encará-la sem-graça. - Obrigado por cuidar de mim.
- Não há o que agradecer, não seja bobo. Fiz por você o que já fiz pelos alunos de papai e outras tantas pelos meus irmãos, principalmente Yuk... – não terminou a frase ao sentir a garganta fechar e o coração falhar uma batida pelo susto do comentário tão espontâneo. “Hummm... Então não é só minha família que tem assuntos proibidos, Yume?” Draco perguntou-se mentalmente ao observar a expressão da garota que olhava seu pai inexpressivo e Shaoran, que acabara de entrar, sair sem fazer barulho. Tentando contornar a situação que indiretamente causara, Draco continuou a conversa como se nada tivesse acontecido.
- Certo, mas mesmo assim, acho que devo recompensar de alguma forma. É inacreditável como já não sinto a dor de ontem. O que devo fazer para ajudá-la? Ou melhor, ajudá-los, já que todos têm enorme participação nisso. Claro que vão ter que me ensinar como fazer o que quer que seja, mas estou disposto a aprender! – disse com sinceridade, tentando ser simpático, mas pareceu apenas querer cumprir uma dívida ou retribuir um favor, pois soou muito frio, e o fato de, desde que chegara, não ter exibido nenhum sorriso que não fosse apenas uma leve curvatura dos lábios em forma de agradecimento, contribuiu para esta impressão.
- Não se preocupe, você ajuda da forma que for possível, e claro, conforme for aprendendo. Aliás, hoje seria um excelente dia para começar minhas aulas. Faça a aula do meu pai e depois vá ao pomar, minha aula começa as dez. São só cinqüenta minutos, você nem vai ver passar... E vai te fazer muito bem, acredite. O que você acha? – perguntou Yume com sorriso travesso.
- Eu nem sei do que você dá aulas... – o loiro desconfiado respondeu já levantando da mesa e levando a louça para a cozinha e só nessa hora notou que o sr. Hikari e Shaoran não estavam mais lá. E lembrando-se da noite passada continuou. – Ah! E falando em ensinar, quero aprender a preparar esse chá e essa coisa que você aplicou nas minhas costas. O efeito é realmente impressionante.
- Hu-hum, ensino sim. – respondeu balançando a cabeça afirmativamente e com um sorriso completou - Falei que parece mágica, não falei? Da primeira vez não teve o efeito esperado, mas ontem acertei direitinho, quer dizer, quase direitinho. Foi diferente, não foi?
- Foi! – respondeu olhando desconfiado como se perguntasse “Como assim?”.
- Dose dupla pra você, Ryu... suas escamas não devem estar assim tão fora de forma. Você possui uma incrível resistência à dor, não sei como é possível. Fiz a mesma receita de sempre nas primeiras vezes, mas ainda assim você teve pesadelos e sofreu com a dor. Tive que reforçar a pasta com uns ingredientes mais fortes e de efeito mais imediato e duradouro, assim como o chá, o fiz bem mais forte também. Só que foi algo meio experimental, me desculpe, não imaginei que você fosse apagar daquele jeito, sem nem ao menos terminar de tomar a segunda xícara. – seu sorriso demonstrava o quanto se preocupava com a recuperação dele e ansiava pela aceitação de suas desculpas.
- Certo... Estou sendo sua cobaia? – perguntou com a voz arrastada, desconfiado e acusador assustando a garota, mas logo em seguida suavizou a expressão e quase sorriu. – Obrigado. Funcionou e estou bem melhor. - “Eu realmente tenho muito que aprender aqui... ela fez um chá que tem o mesmo efeito da poção para dormir-sem-sonhos e esta pasta é quase tão eficiente quanto um feitiço de cura, só que com o resultado mais demorado... e tudo isso sem instruções específicas, foi experimental, intuitivo! Isso é fantástico.” – Agora eu vou indo pra aula de hoje... Te vejo mais tarde então. – e saiu pensando nas possibilidades de aprendizado com quem ele, até pouco tempo, não tinha nenhum tipo de informação ou respeito.

Draco fez duas aulas seguidas, sem forçar muito, pois seu ombro ainda doía bastante dependendo do movimento que executava. Ao término das aulas entrou na casa para beber um pouco de água e foi ao pomar encontrar a turma de Yume, aproveitando para pegar um punhado de framboesas no caminho. “Que delícia!”, pensou enquanto enchia a boca com as frutas e limpava as mãos na calça marrom. Avistou Yume sentada no chão debaixo de uma amoreira, com os olhos fechados, pernas cruzadas, postura ereta e o ar leve ao redor. Draco chegou devagar, sem fazer barulho e surpreendeu-se quando ouviu-a dizer, ainda sem abrir os olhos:
- Não precisa vir na ponta dos pés, Draco. Senti sua presença antes mesmo de você parar para se deliciar com minha árvore preferida. – respirou profundamente e só depois abriu os olhos, encarando o loiro que a olhava com espanto.
- Como? Eu não fiz barulho, e estava longe...
- Não preciso de olhos para enxergar um corpo, nem de ouvidos para escutar um coração. Apesar de eu ter sentindo o cheiro da framboesa misturada ao seu perfume. Sente-se aqui, ainda temos uns quinze minutos antes deles chegarem. – e apontou para o espaço ao seu lado no chão. Vendo-o se sentar, continuou. – Eu estava meditando, então fica ainda mais ‘fácil’ pressentir os movimentos. – vendo-o com uma expressão de espanto, completou. - Não se assuste, Ryu, isso é prática aliada ao dom, e eu treino isso desde criança. Veja meu pai, por exemplo, tem muito mais tempo de prática do que eu, mas não vê com a mesma clareza que eu vejo. E Shaoran, com menos prática que nós já é bastante bom quando está concentrado, em breve será bem melhor do que eu jamais serei.
- O que você vê? – perguntou curioso.
- O que você sente...
- Como assim?
- Eu sinto o que a pessoa sente. Eu sinto sua energia. Reconheço as vibrações e analiso a atmosfera ao redor. Sinto quando está angustiado, nervoso, agradecido, com medo, tenso, triste, feliz... Eu apenas sinto, não há como explicar.
- Isso te ajuda a tomar a verdade das pessoas?
- O que quer dizer?
- É isso que faz com que eu simplesmente diga pra você tudo o que sinto, como se eu não tivesse controle sobre o que eu digo? Toda a verdade.
Ela sorriu. Não esperava tamanha sinceridade num ponto tão direto.
- Você percebeu logo na nossa primeira conversa, não foi? Na cozinha.
- Percebi que tinha algo diferente... não entendi como aquelas palavras saíram da minha boca tão facilmente... talvez eu não as dissesse em outra ocasião... É como se você capturasse meus pensamentos e me fizesse expô-los abertamente...
- Tudo isso? ... Não é bem assim... Por isso eu lhe pedi pra não pisar em brasas comigo, Ryu... Não faço por mal, por favor, não pense que uso isso de alguma forma em meu favor... É natural, eu apenas sinto... é como se eu fosse capaz de romper as barreiras, as máscaras que nos separam... Por isso pedi... sei que disse o que não queria, e sei que não gostou daquela situação, que se sentiu vulnerável e frágil. Não fiz por mal.
- Viu só? Sabe definir o que eu senti melhor do que eu mesmo...
- Às vezes sim...
- Então... – mudou seu tom de voz, que antes era um misto de curiosidade e admiração, e agora se tornou baixa e soava sedutora, apesar dela saber que também estava confuso. - Me diga o que senti ontem, no quarto? Os aromas, o chá... seu toque...
- Não vai querer ouvir. E eu não poderia lhe dizer sem me sentir... um pouco... envergonhada... – seu rosto corou e sentiu sua pele ficar quente. Começou a se levantar, mas foi impedida pela mão dele segurando seu braço, fazendo-a sentar novamente.
- Espere. - ele ficou de frente para ela e disse suplicante - Me diga... Alguma coisa aconteceu ali... até eu percebi.
- Não posso Draco.
- Não sonhei com nada, sei disso. Nem sonhos, nem pesadelos. Posso não me lembrar de mil lembranças visuais, mas não esqueço um perfume... E acordei sentindo o seu perfume...
- Você estava confuso com tanto aromas... – tentava parecer segura, mas a proximidade dele era inebriante. – Você se deixou levar pelos aromas. Estava mais sensível que nos outros dias. E agora que se sente mais seguro comigo, se deixou levar pelo momento... – não estava parecendo muito segura agora.
- Yume... – aproximou-se um pouco, notando o estado agitado em que ela ficou.
- Draco... não... Droga... não posso pensar nisso... não devo.
- Se não é culpa sua eu despejar a verdade do que estou sentindo, então não pode ser culpa minha, pode?
- Não existe culpa em dizer a verdade.
- Então me diga por que não deve se deixar levar por isso? – aproximou-se mais um pouco e levou sua mão à face da garota e fez-lhe um carinho nas maçãs do rosto e no queixo. O desejo estampado no cinza turvo dos olhos dele já estava impresso na pele arrepiada e na retina da oriental. Ela fechou os olhos devagar e entreabriu os lábios aspirando ao hálito envolvente do rapaz que estava com o rosto tão próximo do seu. Sensual. Quente.
- Draco... e-eu... – perdeu a voz ao sentir o ar quente e apressado da respiração dele bater em seu rosto. Razão! “Onde está minha razão?” – N-não. Meus alunos... estão pra chegar... – abaixou o rosto devagar e esperou que ele se afastasse, o que levou alguns minutos pra acontecer.
Logo em seguida ele ouviu um barulho ao longe, sinal de que os alunos dela estavam se aproximando. Afastou-se se sentindo ainda mais confuso do que quando chegou. “Odeio me sentir confuso! Nem percebi... quando exatamente... me aproximei dela... assim...” – distraiu-se pensando e ainda sentindo o calor e a maciez do rosto dela em seus dedos. Viu Yume conversando com os alunos e ela logo o convidou a se juntar a eles e alguns minutos depois se iniciou a aula. Um cumprimento formal e delicado, postura ereta, controle da respiração, movimentos lentos, pausados e firmes.

- Bom dia pessoal... – a oriental começou a falar em português, deixando o inglês totalmente perdido nas palavras. – Sei que este é o mês de conversarmos em português, mas hoje temos a companhia de um jovem britânico para acompanhar nossas aulas e ele ficará um tempo conosco, e como ele não entende o português ainda, ficaremos com o inglês por mais um tempo, ok? Tem alguém aqui com dificuldade para entender o inglês? – e vendo que todos acenaram negativamente, sorriu e continuou – Ótimo! Conto com a compreensão de todos. – apontou para Draco e falou no idioma que ele entendia - Temos um novo amigo hoje... Draco... seja bem-vindo ao Tai Chi Chuan*. – e novamente inclinou o corpo num cumprimento formal, viu-o repetir o movimento e voltou a falar – A cada bimestre praticamos um idioma diferente nas aulas, de acordo com o nível de entendimento de cada um. É um dos nossos diferenciais, pois aceitamos aqui todas as pessoas que queiram aprender e praticar o Tai Chi. Esse é o mês do português e estava dizendo a eles que dessa vez vamos ficar com o inglês para que você possa entender também. Tente acompanhar até onde conseguir. Respeite seu corpo e seu tempo, certo? Pessoal, hoje vamos apenas relembrar os dez princípios essenciais segundo Yang Chengfu. – parou um instante. - Mas... antes... alguém se habilita a explicar para o Draco o significado e a origem do Tai Chi?
- Vou tentar falar... – uma mulher de cabelos grisalhos e um sorriso radiante e amável no rosto ergueu o braço timidamente e disse. – Perdoe meu inglês... enferrujado, rapaz, não deve estar muito... bem... bom, mas vamos lá... – começou a falar com muito sotaque e alguns erros de pronúncia, mas mesmo assim prosseguiu, com muitas pausas e trocas de palavras. - Eu gosto da origem das... como se diz... z-v-coisas. Sei que os criações, não, os criaturos, criadores, isso, os criadores do Tai Chi Chuan basearam ali, er... basearam a sua arte na observação da Natureza, não sozinh... não apenas na observação dos animais, mas... também no estudo dos princípios da... interação entre os diversos elementos naturais. E como... nós somos parte desta natureza, o conhecimento... destes princípios e de como interpret... er... atuam... entre, não... de como ele atuam dentro de nós, revelam o Tai Chi como uma fonte... efetiva... de energia que encontra-se em nosso interior. O mestre Yang Chengfu é considerado historicamente o maior famoso... er... o mais famoso professor da arte marcial do Tai Chi Chuan e percorreu a China de norte a sul divulgando... esta prática não... apenas como uma arte marcial, mas também como uma terapia para... manter a saúde. E para mim, particularmente, é essencial para a saúde... – e concluiu sorrindo - para a minha, pelo menos.
- Não só para a senhora, Rosa. Para mim também é fundamental. – disse uma mulher de estatura baixa e longos cabelos castanhos presos num ‘rabo de cavalo’. Falava com muito sotaque também, mas se saiu bem com o vocabulário e a pronúncia. – Bem, eu já gosto mais dos significados dos ideogramas... Tai significa "o maior", "o mais alto", originalmente se referia à parte mais alta do telhado, a "cumeeira". Chi significa "supremo", "absoluto”. E Chuan é “punho”, aqui simbolizando "soco", "luta à mãos livres". Sendo possível, portanto, traduzir como "Punho da Suprema Cumeeira", "Punho do Limite Supremo" ou simplesmente "Punho do Tai Chi". Mas como cada ideograma pode ter mais de um sentido, há a possibilidade de outras formas de tradução do termo além destas.
- Eu gosto do que diz o Taoísmo, onde o Tai Chi teve sua origem. – disse um rapaz alto e magro e aparentemente desengonçado, e com excelente fluência no inglês - A expressão "Suprema Cumeeira" ou "Limite Absoluto" tem uma conotação filosófica, resultando em "Elevação", "Sublimação", "Purificação". Em outras palavras, é onde se desenvolve um mecanismo de defesa emocional pelo qual tendências ou sentimentos inferiores se transformam em outros que não o sejam. É a teoria que mais me agrada, particularmente.
- Mas também temos outras, certo? Alguém se lembra de mais alguma? – perguntou Yume sentindo-se extremamente satisfeita com as explicações de seus alunos.
- Tem a ver com o símbolo do Yin-Yang também. – disse uma menina loira de olhos verdes e voz enérgica. - O Tai Chi também simboliza o "Cosmos" e a interação dos princípios energéticos Yin e Yang, em constante mutação, sendo conhecida a sua representação pelo Tai Chi Tu (Diagrama do Tai Chi), ou simplesmente, como conhecemos no Ocidente, o "Símbolo Yin-Yang".
- Esse aqui! – um garoto na frente de Draco disse em português mesmo, já que o inglês ele entendia bem, mas ainda não falava com desenvoltura, e apontou para as costas de seu quimono, onde Draco viu um círculo dividido em preto e branco por uma linha sinuosa e dois círculos menores na vertical, na cor oposta ao fundo. O garoto era Fernando, o mesmo que vira quando chegou e treinava com Shaoran no bosque.
- Quanta informação... – disse Draco baixinho.
- É... e foi só pra você ter uma pequena noção do que estamos aprendendo. Prontos para começar? Agora vamos aos princípios de Yang Chengfu. – ela ficou de frente para eles e esperou que todos se organizassem no espaço. Respirou fundo mais uma vez e começou a falar:
*Suspendam a cabeça pelo topo com leveza e sensibilidade... – dizia Yume com autoridade e suavidade na voz. E seguiu para uma postura, enquanto seus alunos imitavam seu movimento.
* Esvaziem o peito e alonguem as costas... Respirem devagar e profundamente. – ela continuava a falar.
* Relaxem a cintura...
* Tentem distinguir entre o cheio e o vazio... – entre cada frase havia uma longa pausa onde uma nova postura era imposta ou a respiração era fortalecida.
* Relaxem os ombros e soltem os cotovelos...
Draco tentava acompanhar todas as posturas, mas algumas eram particularmente mais difíceis, exigiam mais equilíbrio e controle físico do que havia imaginado. Exigia concentração e tranqüilidade, e sua mente não estava muito tranqüila por enquanto.
* Usem a mente e não a força muscular...
Sem se dar conta de quando um movimento começava ou terminava, ele entregou-se ao ar e respirava profundamente como ela havia pedido.
* Interliguem os movimentos da parte superior e inferior do corpo...
A voz suave de Yume lhe transmitia uma segurança surreal. Era como se a ouvisse dentro de sua mente.
* Unindo o interior e o exterior...
* Movam-se com continuidade, sem rupturas...
Os músculos tensos, pernas flexionadas, braços alongados, respiração compassada, profunda e uniforme.
* Busque a quietude dentro do movimento...
Corpo e mente em equilíbrio e harmonia.

Com outro cumprimento formal ela deu a aula por encerrada e buscou Draco com o olhar enquanto se despedia dos alunos. Notou que ele permanecia no mesmo lugar, parecia distante, porém totalmente presente. Atendeu uma aluna que tinha uma pergunta referente à aula passada e depois foi ao encontro de seu mais novo aluno.
- Draco... – aproximou-se devagar e sem fazer nenhum barulho. Não queria despertá-lo daquele aparente transe. Posicionou-se à frente dele e com um tímido sorriso chamou novamente. – Draco? Você está bem?
Ele desviou seus olhos do horizonte e a encarou com um desfocado e brilhante olhar. Era visível aos olhos dela a leveza de espírito que o jovem inglês se encontrava agora. Não aparentava mais a constante confusão que sempre vira nos olhos dele. Não apresentava nem sequer o medo que parecia o consumir a cada segundo. Não mostrava também nenhum resquício do desejo que vira em seus olhos uma hora atrás. Os olhos cinza, não mais turvos de desejo e dúvida como antes, mas agora prateados e profundos, esconderam-se atrás das pálpebras por dois segundos a mais. Ele respirou profundamente mais uma vez antes de falar.
- Obrigado... novamente...
- Obrigado por quê? – perguntou confusa, mas imaginando o porquê do agradecimento, logo percebeu sobre o que ele se referia - Bem, não há de quê... essa é minha aula. O que achou?
- Quanto tempo de aula mesmo? Não foram cinqüenta minutos, foram? Não pareceu nem dez... Quantas vezes já te disse “obrigado” desde que cheguei? – ele perguntou curioso. - Isso é muito estranho pra mim. Mas... eu... vou te agradecer... eternamente por tudo que tem feito por mim, Yume.
- Não precisa, Ryu. O que importa é como se sente, o que eu faç...
- O que importa é como me sentirei daqui pra frente. O que você tem feito por mim ninguém faria... não... por... mim. – interrompeu-a sério e ela pôde perceber a pesada tristeza nos olhos dele antes que ele os fechasse para mais uma vez respirar profundamente para desanuviar o pensamento e continuar a falar. – Obrigado Yume. – segurou as mãos dela com as duas mãos com ternura e carinho, num gesto explícito de gratidão. E sorriu. Um sorriso leve, mais que um curvar de lábios, mas ainda assim um sorriso tímido, puro e sincero. Sorriu pela primeira vez em meses, talvez pela primeira vez em sua vida sorrira de forma tão verdadeira.
Ela sorriu ainda mais, sorriu com os lábios e com os olhos, que brilhavam de alegria. Num movimento rápido, ficou na ponta dos pés e beijou a bochecha do loiro que aprendera a gostar tão logo o viu pela primeira vez. Sem se soltar das mãos dele, Yume falou:
- Podemos treinar mais, todos os dias, de manhã, antes das aulas do meu pai, e a tarde, depois do treinamento com o Shao. O Tai Chi vai fazer muito bem a você, como eu havia imaginado. Agora vamos comer que estou faminta. – nem esperou a resposta e já o arrastava pelo jardim correndo em direção a casa.

Os dias seguiram nessa mesma dinâmica. Afazeres domésticos, aulas de karatê, domínio da espada samurai e Tai Chi Chuan, brincadeiras e conversas agradáveis, filmes a noite, cuidados e atenção. Sabiamente, Draco tentou deixar de lado o quase beijo que dera em Yume, e como ela não comentou nada, ele fez o mesmo. Ele sentia-se tão leve, tão diferente, que nem parecia ser o mesmo ou que estava vivendo em outro mundo. Bruxos, guerras, mortes, nada disso fazia parte de seus pensamentos. E ele estava gostando desse novo mundo. Ele queria se sentir cada vez mais distante de tudo que o perturbava. Queria que tudo fosse mesmo diferente, exatamente como estava acontecendo, mas nem sempre era assim. De fato, não praticou magia nenhum dia, e nem sentiu falta disso até agora, nem sequer abriu a mochila que Snape lhe dera, mas às vezes pensava em sua mãe, sua antiga casa, a escola, os inimigos, os feitiços, o “mundo” que deixou para trás ao partir. Mas sabia também que não podia se perder nessas lembranças, sabia que deveria olhar para frente, pois no momento certo, e esperava verdadeiramente que esse momento chegasse logo, tudo se resolveria e ele finalmente poderia respirar aliviado ao encontrar Narcisa Malfoy – de preferência, sem Lucius por perto, sem obrigações ou ameaças.

Draco estava deitado na grama e refletia sobre a magia. A pergunta de Yume ainda martelava em sua mente, sem ter encontrado a resposta até agora. “O que é magia pra você, Ryu?” Ele tinha certeza de estar praticando magia naqueles dias, mesmo sem ter sequer retirado sua varinha da mochila, nem mesmo abriu a mochila que tinha poções, livros de feitiços, ervas e camuflagem mágica. “O que é magia pra mim?” E mesmo assim sentia que estava em contato com algo nitidamente mágico. O lugar, as pessoas, o tratamento que recebia, os chás que aprendeu a preparar, a concentração para meditar, a agilidade para lutar, tudo naquele sítio era mágico. “O que é magia afinal?” Imerso em pensamentos e absorto no aroma doce das frutas do pomar, permitiu que sua boca expressasse a pergunta que cutucava seus pensamentos:
- Yume... – Draco falou baixinho chamando a garota. Estavam ambos deitados na grama contemplando de baixo para cima as árvores do pomar após uma aula com meditação. Estavam com as cabeças quase encostadas, com as pernas para lados opostos. Deitaram ali logo depois da aula e ficaram conversando até o silêncio se fazer presente e necessário. Depois de muitos minutos silenciosos, Draco de repente quebrou o ar com o nome da garota, e vendo que ela não respondeu, chamou novamente depois de um tempo. – Yume?
- Sim... – ela respondeu com o pensamento distante.
- Está acordada?
- Sim.
- Mas está distante... Onde você está?
Ela virou o rosto para encarar o rapaz encontrando os olhos incrivelmente cinzas dele também procurando seu olhar. Ela sorriu levemente e rebateu a pergunta:
- Onde você está, Draco?
- Como assim?
- O que é magia pra você, Ryu?
Ele se levantou devagar, intrigado, e sem quebrar o contato visual sentou e cruzou as pernas. Ela levantou-se também, sentando sobre os joelhos, ficando de frente para ele, mantendo os olhos fixo nele como se tivesse uma linha invisível a conectá-los.
“Como ela faz isso???” – perguntou-se em pensamento.
- Era exatamente o que eu ia perguntar a você... Então, o que é magia pra você, Yume?
- Eu já te dei essa resposta... Eu acredito que a magia está em tudo e em todos. Mas sei também que algumas pessoas estão mais suscetíveis à magia, ou melhor, estão mais abertas a receber qualquer forma de energia que possa influenciar nosso meio. Sei também Draco, que você é uma pessoa assim... como minha mãe, como eu, o Shao, e até Yuki... mas cada um tem uma maneira de representar isso. A sua eu nunca tinha visto ainda.
- Como você vê a minha maneira? – ele perguntou receoso. Não tinha certeza se queria tocar no assunto. Ou talvez tivesse medo de saber que ela conhecia seu lado obscuro.
- Vejo muito do Yuki em você... principalmente o lado... desculpe-me, mas foi você que perguntou, ok?... O lado obscuro do Yuki se assemelha muito com o seu.
- Com o meu lado obscuro?
- Sim. O Yuki partiu por estar confuso, dividido, vivendo uma guerra interna entre razão e emoção, combatendo os inimigos que habitavam seu coração e seus pensamentos... E você chegou pelos mesmos motivos. Está confuso e dividido também. Fugiu de uma guerra, que eu não sei qual, mas a batalha levou um pedaço do seu coração e você trouxe consigo seus inimigos no pensamento. Você deve se concentrar no que você quer, no que você deseja e seguir sua intuição. Deve encontrar seu equilíbrio, para só depois seguir em frente.
- Sinto-me bem aqui. Acho que estou seguindo meu coração ao escolher ficar num lugar que me traz um pouco de paz... Só estou me deixando levar pelo momento e tentando aproveitar o que esse momento tem pra me ensinar... Ainda não sei o que eu quero, nem que caminho devo seguir... Por que Yuki partiu? Você ainda não me falou nada dele... talvez isso possa me ajudar, já que nossos lados sombrios se parecem...
- Tudo bem... mas não agora, pode ser? Estou faminta! Vamos entrar que meu pai já deve ter preparado o jantar e nós não ajudamos em nada. – levantou-se delicadamente, batendo na roupa para retirar a grama e a terra.
O loiro se levantou também, um pouco contrariado por não ter a conversa que queria, mas ainda assim imitou o gesto da oriental, limpando a própria roupa. Olhou para ela que o encarava pensativa e distraída e se aproximou perigosamente. Com muita delicadeza, tocou-a na face e escorregou os dedos nos negros cabelos dela, retirando dos fios um raminho de grama que havia se prendido ali, fazendo-a sorrir de forma doce. “Esse sorriso ainda me afeta.” – pensou enquanto ela piscava devagar e deixava o sorriso evanescer, permitindo ser hipnotizada pelo olhar profundo do loiro e do carinho suave que recebia. Ele manteve as duas mãos sobre o rosto dela tentando não pensar em nada que o fizesse parar, para não ter que sair dali.
- O que é magia pra você Yume? – sussurrou perto da orelha dela enquanto sua mão esquerda alcançava a nuca da garota, trazendo-a para perto de seu rosto.
Um breve toque... Breve, porém intenso. Nada além de um leve pressionar de lábios. Leve e quente.
Ainda com os lábios finos roçando na boca delicada da garota, Draco sussurrou com a voz rouca:
- O que é magia pra você Yume? – e beijou-a com mais intensidade por alguns segundos, sendo correspondido com a mesma força.
Yume mantinha um braço largado ao longo do corpo e o outro pousando no peitoral do loiro. Sentia as pernas tremerem. O rosto quente. A pele formigando. A mente vazia. Sensações novas e surpreendentes tomaram conta de seu corpo e ela não soube reagir de outra forma, apenas o beijava em resposta. Era um beijo calmo, terno, suave. Começou a afastar-se lentamente e ao abrir os olhos viu-o ainda com os olhos fechados e constatou que o estado dele não era muito diferente do seu. Ele parecia também estar com as pernas trêmulas, o rosto quente e a mente vazia.
Draco abriu os olhos devagar sem saber ao certo o que lhe deu coragem de beijar a garota e correr o risco de estragar tudo de bom que tinha conseguido até agora. Mas no momento não conseguia pensar em mais nada, principalmente porque sabia que quando estava ao lado dela, sempre agia mais por impulso e intuição do que com razão. E isso normalmente funcionava muito melhor do que em outras situações. Sabia que ao lado dela conseguia dar o melhor de si. Analisava o rosto dela e sabia que tinha um sorriso bobo nos lábios, mas não se importava com isso, queria apenas deixar gravado na memória aquela deliciosa sensação e o sorriso meigo que ela mantinha no rosto.
Sem dizer nada, Yume ficou na ponta dos pés e deu um beijo doce no rosto do loiro e virou-se para o pomar, entrando no bosque que seguia uma trilha até a casa, deixando para trás o sorriso bobo no rosto do garoto e um olhar de dúvida e total surpresa.

Durante o jantar e na arrumação da cozinha após a refeição conversaram sobre as atividades do dia e outros assuntos menos importantes para a mente de Draco, que trabalhava confusa e desconcentrada. Tentava entender porque Yume saiu daquela forma e não lhe dirigiu a palavra até então, como se nada tivesse acontecido. “Ela não pode fingir que nada aconteceu! Ela correspondeu ao beijo! Ela também gostou! Ninguém me ignora assim!!!” – pensava revoltado enquanto ajudava Shao a retirar a mesa. Resmungou algo em resposta ao que Shao falara mas não ouviu o que era, e foi repreendido pelo menino:
- Ow, será que dá pra você voltar de Vênus por um momento e me responder?
- O que você disse?
- É disso que estou falando... você não está prestando atenção em nada do que eu disse... o que aconteceu? Você está bem? – perguntou desconfiado já sabendo que algo de diferente tinha acontecido ao amigo.
- Sim... estou sim... só estava distraído.
- Isso eu percebi sozinho Draco... O que aconteceu hoje? Você não está só distraído, você está estranho...
- Não foi nada Shao. Você está imaginando coisas...
- Escuta... – o menino parou de frente para o loiro e disse com uma voz séria muito pouco usada. – Você não me engana, Draco. Não sou tão bom quanto a Yume, mas também percebo quando algo estranho acontece, e eu sei que alguma coisa mudou em você hoje. E não mudou pouco não. Então você pode me falar se você quiser, ou eu posso tentar fazer uma leitura da sua aura e descobrir sozinho... – sua voz sapeca e alegre voltou, mas o tom de desafio era bem evidente.
- Não tenho nada pra contar, Shaoran. Aconteceu algo sim, mas não foi... nada... importante, eu acho. Eu vou... levar as cadeiras lá pra fora... que seu pai pediu... – desconversou e saiu rápido da cozinha. Tinha se esquecido que também não era possível esconder nada do japonesinho.
“Merda! Oclumência não funciona com eles... eles não lêem a mente, eles lêem a aura. Como posso disfarçar algo que eu nem sabia que era possível sentir? Merda! Porque Yume me deixou ainda mais confuso? Não posso me envolver com ela... não posso... não agora... Não... Ahhhhh, droga!” – brigava consigo mesmo enquanto levava distraído para a varanda umas cadeiras a pedido de Hikari e soltou um urro de dor quando uma pesada cadeira de madeira caiu sobre seu pé e ele a jogou no chão com violência. Ficou ainda mais furioso quando viu Yume aparecer na janela para ver o que provocou o barulho de algo sendo arremessado ao chão. “Agora vai ficar rindo de mim! Era só o que me faltava! Eu aqui com dor de cabeça por causa de uma garota estranha que com um simples sorriso me desestabiliza e ela ainda fica rindo de mim! Isso não! Era eu quem ria das garotas! Era eu que... Merda! Maldita cadeira! Tenho coisas muito mais sérias com o que me preocupar.”

Logo na primeira aula da manhã Hikari percebeu que Draco estava mal-humorado e desatento e chamou-lhe a atenção para os movimentos corretos, mas de nada adiantou pois o garoto seguiu a manhã toda se atrapalhando em todas as tarefas e falhando em todas as lutas.
Draco evitou encontrar com Yume e não apareceu no pomar para a aula dela. “Isso vai soar infantil, mas eu não vou à aula dela... Dane-se, estou pouco me importando...” – pensou antes de entrar em casa e subir para seu quarto para esperar a hora do almoço. “Não estou pensando direito nesse calor!” Tirou a camiseta num movimento só ignorando uma leve fisgada que sentiu no ombro já quase totalmente curado e se deitou de bruços na cama, cobrindo a cabeça com o travesseiro. “Odeio esse calor!” – mesmo irritado e mal-humorado acabou pegando no sono em poucos minutos e dormiu.

Shaoran é um garoto muito esperto e nunca perde um detalhe. Como Yume dissera, ele é quase tão bom quanto ela, e é ainda melhor quando se concentra no que faz. E Yume não estava errada.
- Yume-san? – a garota se despediu do último aluno e foi atender seu irmão que a chamava.
- O que foi Shao? – perguntou desconfiada. - Você só me chama assim quando tem algo sério a dizer...
- O que aconteceu com o Draco ontem? Ou melhor... o que aconteceu entre vocês? – ele não parecia estar de brincadeira. Encarava a irmã e analisava sua reação. Ao perceber um leve tremular do ar apressou-se em dizer – Não adianta tentar Yume... Estou aprendendo com você a detectar as modificações do ar, temperatura e vibração. Então desfaça essa nuvem de disfarce que você está começando a formar.
- Shao... onde você quer chegar? Não houve... nada... – sua voz saiu nervosa.
- Yume... tome cuidado, ok? Eu sei que você não faria nada de errado... mas tome cuidado!
- Não entendi... onde quer chegar?
- O Draco te evitou o dia inteiro e nem veio à sua aula. Ontem a noite ele estava distraído. Quando percebi tentei descobrir alguma coisa e... e sei que você tem tudo a ver com isso. Ele não ficou bem. Ele está confuso, irritado, nervoso e agressivo. Não quero que tudo que estamos fazendo para ajudá-lo nessas semanas se perca em um dia por um beijo de diversão ou sei lá o quê!
- SHAO!
- Que foi?
- Droga... Eu... Eu também não quero que nada se perca... mas... não é diversão!
- E é o que então, Yume? Você não está apaixonada por ele... e nunca ficaria!
- O que sabe sobre isso, moleque?
- Sei que seu coração já está preenchido. Maninha... foi você que me treinou, não se esqueça! Sei que seu coração acelera quando o loirão lá aparece todo perfumado, mas sei também que seu mundo pára quando o Enrique chega.
- Sai daqui Shaoran.
- Tome cuidado, Yume. É só isso que vim te pedir. Não brinque com um coração em pedaços. Você foi a primeira a entender que o coração do Draco está em pedaços... não destr-
- NÃO É FÁCIL, tá legal? Não fiz por querer... aconteceu... Ahhhh!!! Essas coisas simplesmente acontecem... Não fiz por mal, você sabe disso, não sabe?
- Sei. Mas ele tá lá trancado no quarto e algo me diz que ele não vai descer pra almoçar.
- E você acha que EU vou lá ver o que está acontecendo?
- Deveria.
- Mas não vou mesmo! Já está sendo bastante difícil do jeito que está.
- Que jeito que está?
- Sai daqui Shaoran. Você só tem onze anos... não deveria entender de relacionamentos amorosos. Ou melhor, não deveria entender o que se passa em meu coração quando eu mesma não entendo.
- Eu realmente não entendo... Eu só acho que você não pode deixá-lo acreditar em algo que talvez nunca venha a acontecer. O Enrique está pra voltar, não está? – deixou escapar seu usual e contagiante sorriso travesso.
- Sai daqui moleque. – ela sorriu também, entendendo a preocupação de seu irmão. – De que lado você está afinal?... Ei, quando foi que você ficou tão esperto?
- Não sei! Acho que foi quando deixei de me espelhar em você! – disse entre risos e saiu correndo pra longe do alcance dos golpes rápidos de sua irmã.
- Isso não vai ficar assim pirralhinho. – gritou para o irmão que já estava chegando ao bosque e riu da risada gostosa que ele deixava no ar. Mesmo que fosse uma risada por ter sacaneado com ela, ainda assim ela se divertia com o riso alto e cristalino que só ele tinha. E ficou pensando no que seu irmão caçula e irritantemente esperto dissera. – Mas eu também não sei o que está acontecendo... Ah droga... E também, de que adianta o Enrique estar para chegar se ele mal sabe que eu existo? Ele nunca me notaria, notaria? ... Yukiiiiiii? Você saberia o que me dizer num momento desse... – largou-se no chão e ficou a contemplar a copa das árvores e o aroma que vinha na brisa. Não ficou nem dois minutos e se levantou em um pulo ao se lembrar do que aconteceu ali no dia anterior. Levou a mão à boca como se prendesse ali a lembrança do beijo. “Tão bom...” Voltou correndo para casa e tratou de se ocupar com algo e pensar em como resolver a situação embaraçosa que se criou, chegando à conclusão que seu irmão realmente tinha razão. Tinha que tomar cuidado para não misturar as coisas. Sabia que gostava muito do loiro lindo e misterioso que surgira do nada em sua vida e que seria bem difícil ignorar a atração que existia, mas sabia também que tinha muito mais coisas a ensinar para ele do que simples chás ou meditação. Começava a entender algumas coisas que cintilavam em sua mente, mas só agora pareciam transparecer.

Draco ouviu umas batidas na porta de seu quarto e só então percebeu que tinha caído no sono e não desceu para almoçar. “Droga. Hikari vai pegar no meu pé”. Levantou-se sonolento e foi abrir a porta, esperando encontrar a cara fechada e brava do exigente mestre. Abriu a porta já pedindo desculpas:
- Desculpe senh...
- São é hora da bronca ainda...
- Yume?
- Pois é... meu pai perguntou se você estava passando bem porque desde cedo você estava estranho... e pediu pra eu vir vê-lo... não pude recusar um pedido dele... Fiz mal? – perguntou receosa da resposta, mas não conseguiu controlar o ímpeto de descer o olhar até o peitoral nu do garoto. Sabia que esse olhar não passaria despercebido e voltou a olhar nos olhos dele que a encarava com uma expressão dura. “Ótimo! A máscara da ausência de sentimentos de novo!”
- Não. De forma nenhuma. – respondeu frio. – Eu estou bem, apenas cochilei depois da aula e perdi a hora. Não estou acostumado com esse calor... Só isso.
- Sim... sua pressão pode ter abaixado... Draco...
- Eu já vou descer... – cortou a garota antes que ela tocasse no assunto que ele ainda não estava pronto pra ouvir. - Não quero deixar seu pai preocupado comigo. – deu um passo para trás para poder fechar a porta, mas ela a segurou com o pé e continuou.
- Draco... Não dá pra me evitar por muito tempo.
- Eu só preciso de um pouco de tempo. – virou as costas pra ela sabendo que ela não sairia dali, vestiu uma camiseta e saiu.
- Ótimo! – a oriental resmungou baixinho quando o loiro já estava na metade da escada.

O restante da tarde foi bastante produtivo para Draco e Shaoran. Eles treinaram até o sol se pôr. Treinaram sem parar, sem conversar, sem se distrair com nada. Shao resolveu usar o sentimento negativo que Draco tinha no momento para tirar dele o melhor na luta. Aprendera com seu irmão que os melhores momentos para testar concentração e raciocínio são quando a mente está em conflito e os músculos estão fadigados pelo exercício. Na primeira meia hora Draco só se deu mal e Shao não falou nada. Apenas observava. Quando imobilizou o loiro pela sétima vez consecutiva finalmente se manifestou.
- Você tem muita coisa na cabeça, Draco. – falou com a espada na mão direita encostada na garganta do rapaz que estava caído no chão e seu pé esquerdo pisava sobre o pulso direito do loiro.
- Estou cansado. É isso. – Draco respondeu rolando pro lado e se levantando.
- Acabamos de começar. Você geralmente só se cansa depois de duas horas ou mais.
- Não dá pra você pelo menos fingir que não sabe disso.
- Não. Estamos treinando... Estou aqui para ensinar, e não para ser seu amigo! Você tem coisa demais na cabeça, Draco. Espada, golpe, ataque, esquiva, passado, inimigos, ombro, guerra, medo, Yume... Esvazie sua mente!
Draco olhou-o espantado. Soltou a espada no chão e encarou o garoto à sua frente. Não sabia como reagir diante tamanha exposição. Foi pego de surpresa e não soube como esconder que o garoto acertara em cheio o motivo da falta de atenção e descuido no treino. Sentia-se totalmente desconfortável e vulnerável, da mesma forma que se sentira com Yume nos primeiros dias, e não esperava que se sentisse assim com o pequeno japonesinho sempre tão falante e brincalhão.
- Odeio quando vocês fazem isso... – conseguiu falar depois de um tempo.
- Você está mais vulnerável hoje. É inevitável sentir.
- Sinto-me ainda mais vulnerável agora depois de você ter dissecado o que estou sentindo de uma forma tão nítida. Que merda! Você e a Yume descrevem o que eu sinto antes que eu consiga entender o que é.
- Por isso que demora... você não precisa entender, precisa apenas sentir. – pegou a espada de Draco do chão e entregou a ele. - Coisa demais na cabeça. - falou em japonês.
- Coisa demais na cabeça... – Draco repetiu em inglês, pensando no significado da frase.
- Esvazie sua mente...
- Isso não é nada fácil.
- Ninguém falou que seria... Base!
- Não vou conseguir, Shaoran.
- Ninguém falou que conseguiria... mas não é por causa disso que você vai desistir, vai?... Prepare-se!
- Quantos anos você tem mesmo? 52?
- Concentre-se, droga! E você? Tem 11, por um acaso? – falou irritado e jogou a espada na direção de Draco e este a pegou no ar. Shao olhou para Draco de novo e continuou – Aprendemos com os erros e com os acertos. Acredito que não viverei o suficiente para aprender tudo que eu preciso com todos os erros que eu possa cometer, então eu tento aprender com os erros dos outros também. E com os acertos! E eu tenho excelentes professores.
- Você tem uma excelente família Shaoran.
- Tenho sim... Concentre-se Draco. Concentre-se no agora! – acenou com a mão pedindo a espada de volta e Draco jogou-a pra ele. – Aprenda tudo o que for possível. Treine o quanto conseguir. Liberte-se de tudo que não precisa mais... Concentre-se no presente.
Draco se concentrou a partir daquele momento e o treino seguiu tranqüilo e produtivo, na certeza de que mais de uma lição foi aprendida ali. Mais que golpes e defesas. Mas sim uma lição para vida toda. Os dois voltaram tarde pra casa e foram direto para seus quartos para uma ducha. Draco não voltou à sala para jantar, queria absorver melhor o que aprendera naquela tarde. “Aprenda tudo o que for possível. Treine o quanto conseguir. Liberte-se de tudo que não precisa mais...” Adormeceu pensando nas sábias palavras de um garoto de onze anos de idade, mas que incrivelmente soube dizer exatamente o que ele precisava ouvir.

No dia seguinte conseguiu encarar Yume novamente sem tanto rancor, mas ainda não entendia a reação dela. “Corresponde ao beijo e depois me ignora?” Mas as coisas voltaram ao lugar em menos de dois dias. “Concentre-se no agora.” Repetia a todo momento. Sabia que tinha muito o que aprender ainda e estava disposto a errar e acertar e observar.

Já fazia mais de três semanas que Draco estava na casa, mas ainda não sabia exatamente onde estava. Na verdade, não havia se perguntado nenhuma vez sobre isso, exceto no momento em que aparatou no bosque. Era chegada a hora de descobrir. Num final de tarde, após a última aula de Yume, Draco iniciou a conversa:
- Quero te fazer uma pergunta... bem simples... – vendo-a acenar a cabeça em concordância, ele continuou – Na verdade, não sei porque nunca perguntei isso ainda... Afinal, onde estamos? Que cidade estamos? Não vi nenhuma casa por perto, apenas aquela estrada, deserta por sinal, mas os alunos vêm pra cá andando ou vêm de bicicleta, o que indica que é perto de alguma coisa... mas perto do quê? Não estamos no Japão, estamos? Não, não estamos...
- Pxiiiiiu... pare de pensar alto e deixe-me responder? – ela disse com um enorme sorriso no rosto, se segurando para não dar gargalhada sobre a referência ao Japão.
- Claro! Antes que ria de mim.
- Não estamos no Japão, Draco... não tão longe... Estamos em Lourinhã, uma cidade localizada a uns 65 km ao norte de Lisboa, capital de Portugal, e a oeste daqui temos o Oceano Atlântico. Esta é uma vila portuguesa com extensos campos agrícolas e a costa marítima rochosa e bastante alta é absolutamente linda, e tem cerca de 12 km de orla costeira onde se encontram belíssimas praias. A capital também é linda... sou suspeita pra falar, pois eu amo Lisboa. Você conhece? Podemos ir até lá num fim de semana que eu não tenha aulas no sábado... Podemos ir à praia também. É fabulosa! E é bem pertinho daqui...
- Por que não me falaram logo no começo?
- Não sabíamos quem você era... Não somos de ficar falando quem somos para estranhos... sabe como é, não é? – respondeu sorrindo e piscando um olho.
- Não é isso! – ele disse sério e desconfiado. – Você está escondendo algo. Assim como Shaoran também estava quando me encontrou. Eu não estava exatamente consciente, mas me lembro bem que ele hesitou quando perguntei onde estava...
- Assim como você hesitou quando perguntamos seu nome, ou de onde você é, ou por que está aqui, ou com quem estava, ou...
- Ok... Ok. Já entendi.
- Qual é o seu segredo Draco? Talvez eu possa te contar o nosso!
Ele não soube o que responder. Ficou calado, imparcial, inexpressivo. Ela entendeu que ele ainda não estava pronto para dizer algo e foi para casa, deixando-o sozinho com seus pensamentos.

“Portugal?... Então não estou tão longe da Inglaterra...”
“O que está acontecendo por lá?”
“Qual é o segredo deles?”


/ * \ . / * \ . / * \

N/A:

Pessoas... aí está o primeiro capítulo... tão esperado (por mim mesma, pois não via a hora de vê-lo finalmente pronto)... tão querido (por mim mesma também, já que ‘sonhei’ com essas cenas várias vezes por meses)... tão especial (foram dias e dias de pesquisas, leituras, inspirações e temores, tudo junto, numa intensidade inenarrável e surpreendente).
Espero que vocês tenham gostado, pois para mim foi o máximo! O próximo capítulo já está bem encaminhado... e dependendo da aceitação deste, o próximo virá mais rápido... ou não. Depende de vocês!!! Por isso, espero que realmente tenham gostado, e eu só saberei disso se vocês comentarem, certo? Então... COMENTEM!

* As informações sobre Tai Chi Chuan, Sudoku e outras foram obtidas na internet, principalmente na Wikipédia.

Quanto à história: Vou repetir: Não se desesperem e não me matem ainda, ok? Esse é só o começo! Essa é só a introdução. Muita coisa vai acontecer e vocês não perdem por esperar. Aceito perguntas, sugestões e afins, mas digo que só respondo o que me for possível revelar... huahuahuahuahuahua...

COMENTEM!!! Os seus comentários aceleram minha imaginação... Aguardo comentários!!!

Até breve.
Beijos a todos.



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