Vermelho



Capítulo 1 - Vermelho

A chuva cai com violência sobre o Vilarejo de Ottery St. Catchpole, castigando e fustigando com estrépito os diversos planos inclinados que compõe o telhado d’A Toca. Apesar da aparência maltratada da casa de sete andares, a garota de cabelos castanhos crespos, fartos e armados, que lê absorta um velho alfarrábio de magia sentada confortavelmente a um sofá à frente da lareira, sabe que está perfeitamente protegida das intempéries do ambiente exterior, apesar de poder jurar que a excepcional construção tende a continuar permanecendo de pé, apenas e tão somente, por pura mágica.

O vampiro que vive no sótão, inquieta-se com o silencio incomum que domina o ambiente, e faz sua manifestação de discordância batendo nas paredes e sacudindo os canos entrelaçados que se distribuem pelo restante da casa, aproveitando-se para gemer e chiar alto. Hermione levanta uma sobrancelha, sem desviar o olhar das palavras de sabedoria que sorve com avidez, pretende apenas demonstrar, com o trejeito, que o inconveniente roedor alado lhe causa aborrecimento.

Repentinamente, um vozerio crescente aproxima-se no quintal, vindo do pomar perto da casa, e que serve também de campo de Quadribol para os moradores adolescentes e visitantes d’A Toca. A noite já começa a impor-se no firmamento, largamente auxiliada pelo temporal que se iniciou há pouco e que tinge o céu de tons de chumbo, quando a porta de entrada de abre com estardalhaço e uma longa fila de “doninhas” com os cabelos em fogo invade o recinto com balbúrdia e dirige-se escada acima em direção aos banheiros, liderados pela geniosa caçula que até pouco tempo atrás era a detentora do coração do último componente do grupo a adentrar ao ambiente, e que também é o único a destoar nas características físicas dos demais, no que concerne às sardas e cabelos ruivos.

A menina ao sofá não move um músculo sequer, entretida que está em terminar um parágrafo sem perder o fio de entendimento que tenciona gravar em sua mente, porém, seu sexto sentido percebe e compreende que o retardatário, estrangeiro como ela à família proprietária do lugar, não acompanha os demais, retendo-se em fechar a porta e, em seguida, avançando em sua direção. Ela levanta os olhos do grosso compendio que traz apoiado sobre o colo e, inadvertidamente seus olhos brilham: ele está com as vestes toda molhadas, sujo de barro dos pés à cabeça e com um pequeno filete de sangue escorrendo do supercílio esquerdo, logo abaixo da marca em forma de raio, na mão esquerda carrega sua Firebolt e, na outra, uma pequena esfera dourada e de asas tenta inutilmente fugir de seu toque.

Uma grande algazarra se instala nos pavimentos superiores, sendo continuamente alimentada pelos jogadores que se comunicam aos gritos entre um e outro lavatório, transformando, mesmo um mero exercício, num acontecimento fantástico. A estudiosa exemplar mal consegue disfarçar uma leve aceleração em seus batimentos cardíacos, pensa em dizer alguma coisa, para romper o breve silencio que novamente se instalou à sua volta, alheia à agitação que se desenvolve mais acima, mas morde o lábio inferior, contendo-se, para, logo em seguida, arrepender-se do gesto, temerosa de ser mal interpretada. Harry estanca à frente dela por um instante, também um pouco deslocado, e deixa-se analisar pelo olhar da outra – ela o vê com uma aura vermelha à sua volta, que significa força, virilidade, masculinidade, dinamismo, sim isso é o que ele demonstra para ela.

— Você devia ter ido assistir o treino, Mione – ele diz, virando-se e se aproximando da lareira, que também emite um fulgor vermelho, e que se mistura à aura dele –, foi o máximo: se fosse um campeonato realmente... se jogássemos assim contra a Sonserina... eles não teriam chance!

— Harry... desisti de tentar entender que louca razão leva vocês a enfrentarem uma tempestade destas para voar atrás de um pombo de ouro... ganhei muito mais ficando aqui, esteja certo disso! – ela abaixa os olhos novamente para a leitura interrompida.

— É pomo de ouro... não pombo... – ele limita-se a dizer, encostando a vassoura a um canto e virando-se em direção às chamas, ajoelha-se à frente delas, em busca de calor.

Ela aproveita que ele não a está vendo e levanta o olhar novamente, mas com discrição, para que ninguém mais perceba seu interesse (como se houvesse mais alguém ali, naquele instante), e mira o filete vermelho que desce pela fronte do bruxo até perder-se no interior do colarinho... uma cor essencialmente quente, transbordante de vida e de agitação: sangue, fogo, força, energia!

Ela se levanta de um salto, deixando o velho livro cair aos seus pés: havia se esquecido dele! Retira um pequeno lenço branco dos bolsos e o leva aos lábios, umedecendo-o com sua saliva. O rapaz continua de joelhos em frente ao fogo, e ela o imita, encostando seu peito ao ombro dele e passando a limpar o pequeno ferimento em seu rosto com o delicado pedaço de tecido.

— Não é nada! – ele diz, mas não rejeita a atenção, em poucas passadas o objeto já absorveu o vermelho da lesão em sua trama. Ela o leva novamente à boca, sentindo o gosto não habitual e tentando evitar um pequeno estalo de sua língua. Ela não reprime um pequeno sorriso: lembrou-se do vampiro que há pouco a incomodara lá do sótão e imagina que iguaria sem igual não seria aquela para ele.

Ele sorri também ao percebe-la mostrando seus sentimentos tão inocentemente, mesmo sem saber o motivo, os olhos dela se desviam até as labaredas vermelho-fogo e retornam até a ferida, já limpa, e param em seu lenço, que absorvera todo aquele vermelho: é uma cor exaltante e até enervante - impõe-se sem discrição.

— Vocês são tão brutos... – ela disfarça enquanto retira a varinha do cós das calças e fecha definitivamente a ferida com um gracioso gesto mágico – Vai acabar se resfriando assim... todo molhado.

— Vocês é que são muito delicadas! – ele a olha no fundo dos olhos, chegando a semicerrar os seus, como que tentando decifrar seu interior.

— Não sou delicada... e você sabe disso! – ela diz, ruborizando um pouco: o vermelho da vergonha em seu rosto.

— Eu sei... e gosto disso! Mas, também não sou bruto!

— Também sei... que não é.... e gosto que seja assim! – ela imagina que talvez seu rubor possa ser confundido com o calor que a lareira irradia, percebe então que, apesar de já ter concluído os primeiros socorros, continua colada ao corpo dele.

Hermione percebe sua respiração se alterar, tornando-se mais rápida e até mais ruidosa que o normal, ela passa instintivamente a respirar pela boca, a fim de camuflar seu estado emocional, mas percebe que isto faz com que seu hálito quente atinja o rosto do rapaz. E, seu peito arfando, quase que descontrolado, começa a realizar uma leve pressão no ombro dele, num vaivém excitante, em seu braço, em seu corpo. Ela esquece o lenço tingido de vermelho em sua mão e passa a acariciar levemente o rosto dele, com as pontas de seus dedos, com a palma de sua mão.

Ele está muito próximo agora, ela pode observar o vermelho do fogo refletindo-se em seus olhos, e sente o coração dele batendo, junto ao seu peito, muito acelerado também. Olha para seus lábios, estão umedecidos e convidativos, muito próximos aos seus, vermelhos como o desejo, vermelhos como a cor do pecado. Muito, muito próximos...

Não há mais barulho, não existe algazarra, o tempo parou e com ele todos os sons, todos os medos e receios: ele a hipnotizou, e ela está entregue, não consegue mais desviar os olhos de seu objetivo, já começa a fechar seus olhos, aguardando ansiosa o toque que tanto deseja e que, em breve, irá sentir em seus lábios, também umedecidos, também prontos, também vermelhos de paixão.

Sente a respiração dele, também ofegante, açoitando sua pele, aquecendo sua fronte, sente seu cheiro, sente seu corpo, quente como o fogo: vermelho!

— Que é que está pegando? – a voz da ruivinha, descendo euforicamente as escadas, a traz de volta ao mundo real.

Ela se levanta rapidamente, desajeitada, sente seu peito ainda arfando descontrolado, sente seu rosto em brasa, provavelmente delatando seu estado emocional pelo vermelho que, com toda certeza, ali está impresso, que está estampado em sua fronte, em seu coração, em sua alma.

Ela se sente desamparada, deslocada, sente que aquele instante passou e não mais voltará, mas, um quase indistinguível gesto do rapaz lhe dá esperanças de que aquele momento não tenha sido de todo perdido, que não foi apenas ela que sentiu alguma coisa diferente acontecer naquele breve momento: com um rápido gesto ele tentou segura-la perto de si, continuar com a mágica, continuar com o calor, mas ela escapou de seus dedos, eles apenas conseguiram resvalar em sua mão e, mesmo assim, causaram um choque sucinto, como se faíscas vermelhas tivessem saltado daquele breve toque.

— N-nada! – disfarçou ela – Limpava um ferimento que ele tinha no rosto! – e, para comprovar suas palavras, mostrou o lenço manchado de vermelho.

— É... não foi nada! – a voz dele saiu estranhamente abafada, como se nunca tivesse dito nenhuma palavra durante toda a sua vida e, de repente, descobrisse que tinha esse dom.

— Vocês dois estão muito esquisitos! – a menina disse, interpondo-se entre os dois: o vermelho de seus cabelos a separa-los.

— Está quente aqui! – ele diz, o rosto vermelho, e só então percebe os demais residentes da casa descendo para o jantar e se aglomerando ao redor deles.

— Você deve estar ficando doente, Harry! – recuperou-se Hermione, mantendo-se ainda de costas para o grupo, ocultando sua face, com medo que alguém lesse seus pensamentos – Suba logo e tome um banho! Você vai ver como irá melhorar!

Ele se levanta e sobe as escadas silenciosamente, aparentando estar confuso. Quando chega ao topo da escada, seu olhar a busca novamente, ela esperava por isso, não o perdoaria se não o tivesse feito.

Ela dá um leve sorriso, quase imperceptível, mas seu semblante se ilumina, isto é o suficiente para demonstrar o que se passa em seu interior: ela disse que ele está doente, mas é ela que arde em febre, é seu corpo que queima, vermelho!

Ele retribui o sorriso e some no final da escadaria, sua aura o acompanha: vermelha!

Ela tenta distrair sua mente, esquecer o que se passou, o que quase aconteceu, resolve perguntar uma futilidade, uma bobagem qualquer, apenas para ocupar sua mente e evitar lembrar-se daquele momento proibido, demarcado por um sinal vermelho, de proibido!

— O que vamos ter de sobremesa, hoje?

— Apenas frutas... – responde alguém ao longe – ...maçãs, cerejas e morangos.

continua...


próximo capítulo: Laranja

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