Game Over



Havia tanto tempo que ela estava lá que quase perdera a conta, mas, com a colher que lhe davam para alimentar-se, ela riscava na parede cada dia que se passava, ela sabia se era dia ou noite por causa de um tijolo que estava meio solto quando ela chegou lá e, com a ajuda de metade da água que lhe davam para beber ela amolecia o cimento, até que o tijolo soltou, por isso ela sabia o tempo, a cada semana um risco, a cada mês um circulo em torno das semanas, a parede já estava se esgotando com tantos traços. Fora apanhar, se submeter a testes humilhantes para descobrir a extensão de seus poderes, contar os dias, comer e dormir, ela desenhava, desenhava tão bem que pareciam retratos. E, às vezes, para não esquecer como era, escrevia alguma coisa e ficava repetindo o que os guardas diziam, ela tinha esperança de ser resgatada de lá, por isso tentava se tornar um ser humano “normal”, ia cada vez pior no quesito de esconder a sua força. Parecia que, quanto mais o tempo passava, mais sua força aumentava. “O poder dela é latente.” Diziam “eles”, como ela chamava, os Bruxos do Ministério, os Inomináveis. Um dia, ela sonhou com um homem, um homem muito bonito que ia buscá-la. Ela o chamou de “Príncipe”, como nos contos que sua babá lhe contava. E esperava, mas o Príncipe nunca chegava e os Inomináveis a maltratavam e sua tia lhe confundia...Sua vida era um inferno, mas ela sempre tinha esperança de que o Príncipe chegasse, montado num cavalo branco. Aliás, a figura do Príncipe era a única coisa que a impedia de enlouquecer ou dar fim à própria vida. Havia tanto medo no coração que ela já esquecia das cantigas da babá, dos sorrisos do pai, ela não os culpava por estar ali, eles deviam estar confusos, logo estaria tudo bem...Eles viriam buscá-la. Como sempre faziam quando ela se perdia na floresta. Mas também nunca vieram ela estava ali desde os três anos, sua babá morrera um ano depois dela ir parar naquele quarto. Ela já tinha quatorze anos e havia sonhado com a morte do pai, todos os seus sonhos sempre se tornaram realidade, seu peito apertava, era dia de visita e ela esperava pela habitual surra sem motivos aparentes que sua tia, sua única visita, lhe dava. Ela já ouvia passos no corredor, fechou rápido o diário, escondeu-o embaixo de uma tábua solta e se encolheu num canto, esperando não ser notada.
-Aí está você, monstrinha. Ela era dotada de uma beleza rara, os longos cabelos emolduravam seu rosto oval com perfeição, os dentes eram certos, a pele corada, a única coisa que destoava naquela beleza estonteante eram os olhos cruéis. Olhos cruéis e famintos, ansiosos pelos berros da menina. Os olhos de Ann se arregalaram de pavor, ela sabia o que ia acontecer...Mas não avançou, ficou parada, encostada na porta como que sem saber o que fazer.
-Seu pai está...Começou ela, afinal, decidira contar à menina e ver como ela reagiria.
-Então ele está mesmo morto?! Disse Ann, com lágrimas invadindo os seus olhos, ela queria não saber, daria tudo para dar esse poder a alguém...
O rosto da tia se deformou de ódio.
-VOCÊ SABIA E NÃO FEZ NADA?! Ela avançou para a menina que havia se chapado contra a parede de pavor.
-Eu, eu tentei contar, mas ninguém me ouve...A menina, assustada, tentava se justificar.
-CALADA! VOCÊ É UM MONSTRO! UM GRANDE E HORRÍVEL MONSTRO! COMO ASSIM NINGUÉM TE OUVE?! VOCÊ, ALÉM DE TUDO, É MENTIROSA! SABE POR QUE SUA MÃE MORREU?! ELA MORREU POR SUA CULPA! VOCÊ A MATOU! As belas feições da mulher estavam desfiguradas pelo ódio.
=Não, eu não a matei...Eu não mataria a minha mamãe...=
-EU TENHO NOJO DE VOCÊ! TENHO NOJO DE MIM POR TER O MESMO SANGUE QUE VOCÊ! O SEU PAI TAMBÉM TINHA! ELE MORREU DE DESGOSTO! MORREU! E A CULPA É TODA SUA!
As lágrimas desciam descontroladas pelo rosto da menina, fechando as feridas que os tapas abriam, as lágrimas podiam curar as marcas do corpo, mas sua alma já estava tão destroçada que não seria grande surpresa se ela nunca se recuperasse. E os xingamentos aumentavam, os tapas eram com mais força e tudo o que a menina fazia era chorar e tentar se defender.
-Pára tia...
-PÁRA?! VOCÊ AINDA TEM A PETULÂNCIA DE PEDIR PARA EU PARAR?! SÓ ESTOU TE DIZENDO VERDADES! SE EU TE BATO, SE EU TE DIGO TUDO ISSO É PORQUE TENHO A ESPERANÇA DE QUE VOCÊ SE REDIMA!
-Me redimir do quê? A menina se arrastara para longe da mulher, na esperança de que, com a “conversa” a mulher desistisse de bater nela.
-DOS SEUS PECADOS! DE VOCÊ TER MATADO SUA MÃE! DESGOSTADO SEU PAI! DESTRUIDO MINHA VIDA...
Ann sentiu o sangue pulsar nas suas veias, ela não sabia como tinha matado a mãe, e duvidava que tivesse sido proposital. E ela destruiu a vida da tia? Como aquela mulher podia dizer isso?! Era por culpa daquela maníaca que ela passara quase toda a sua vida naquele quarto imundo, se submetendo a todas aquelas humilhações...
-CALA A BOCA!-Ann estava descontrolada o ódio subia a sua cabeça –EU TE ODEIO! VOCÊ ENCHEU MINHA CABEÇA COM SUAS LOUCURAS E DESCARREGOU A FRUSTRAÇÃO DE SER ESSA MULHER MEDÍOCRE EM MIM E VEM FALAR QUE EU PEQUEI?! SABE O QUE EU ESTOU SENTINDO?! ESTOU SENTINDO RAIVA, MUITA RAIVA! NÃO, NÃO É RAIVA, É ÓDIO! EU TE ODEIO E A TI NUNCA ME SUBMETEREI, NÃO IMPORTA O QUANTO TENTES!
A mulher estava assustada, não era só pela atitude da menina, mas também, porque havia uma enorme Fênix atrás dela, e, em sua cintura, estava enroscada uma cobra de gelo. Os olhos da garota pareciam feitos de brasas e seus cabelos eram as chamas da fogueira, chamas tão quentes que estavam brancas. Ela sentia o corpo derreter e queimar, olhou para a própria mão e viu sua pele escorrendo por seus ossos, como sopa quente pelos dentes do garfo.
-AHHHH!!!! AHHHHH!!!! SOCOOORRO!!!!
Ann ria, uma gargalhada fria que não combinava com sua figura. Era tão divertido ver a tia agonizando com sua ilusão...Ela estava inteira, claro, era muito mais divertido fazer joguinhos psicológicos com ela do que lhe dar o consolo da morte. Ela ergueu o rosto da tia, forçando-a a ficar cara a cara com ela.
-Não é bom ficar louca? Disse Ann em seu ouvido, com um sorriso cruel nos lábios. Os olhos da tia estavam vidrados, um filete de baba escorria pelo canto de sua boca. Ela agarrou as vestes da sobrinha e implorou:
-Pare, pare por favor, me salve Ann,...Me salve...
-Te salvar? Te salvar do que, monstrinho? Essa ilusão foi construída para te redimir, e você ainda tem a petulância de pedir para eu parar? Eu tenho nojo de ter o mesmo sangue que você. E gargalhou, alta e friamente, finalmente aquela nojenta sabia como ela se sentia.
-Olho por olho, dente por dente. Game Over, titia. E se atirou pela janela, durante a queda ela sentiu penas crescendo por todo o seu corpo, sua boca se transformando em bico...Era tão bom ser uma Fênix! Ela sentia o vento passando por suas penas e suas asas, que pareciam ter vontade própria, a levavam para um lugar que ela desconhecia. Ela passou por cidades, vilarejos,...Ela passou por um paredão de rocha e ela pousou com um ruído fofo na areia de uma praia. Foi voltando a ser ela mesma lentamente...Quando deu por si, já estava “normal” de novo. E ela ouvia uma voz conhecida, mas que não conseguia identificar, chamando-a.

(N/A: Vou usar um trecho da finc da Lilith.)


Ann corria pela praia, sentindo as pernas quase fraquejarem ao fazerem força para vencer quase um metro da parede de água que barrava seu caminho, como se tentasse desesperadamente impedi-la de chegar a seu destino.
Mas Ann não desistiria. Nada a faria desistir. Porque a voz a chamava, e ela não podia mais ignorá-la.

Sussurros roucos invadiram seus ouvidos, os sussurros roucos já tão conhecidos, que a faziam querer que tudo se acabasse, quando ela finalmente poderia ter paz...
“Vá para lá” – a voz dizia, e sua própria voz rouca de tanto gritar e clamar por sanidade respondia que estava indo, que estava indo o mais depressa que podia...
Estava louca, sabia. Todos diziam isso. Que aquela voz, o chamado, o rosto que via tantas vezes em seus sonhos, um rosto indefinido, um rosto que não podia lembrar de quando havia visto pela primeira vez, o rosto sem dono, sem nome, mas pelo qual nutria uma paixão louca, absurda, era sinal da profunda loucura da qual sofria desde seu nascimento...
Queria tocá-lo, queria vê-lo, porque as sombras escuras de sua mente perturbada não permitiam que Ann o visse, mas ela o amava assim mesmo. Ela as amava e as odiava. Odiava, porque aquelas vozes malditas a perturbavam o tempo todo, dizendo-lhe como as coisas deveriam ser e como as coisas aconteceriam, mas antes que Ann pudesse evitar que assim as coisas ocorressem. Mas as amava, porque eram a voz dele... E não importava quem ele fosse, sabia só que precisava encontrá-lo...

Seu pé dormente de frio topou numa pedra qualquer no meio do caminho, e Ann caiu com o rosto imerso na água, a rocha fria cortando seus lábios e fazendo uma flor de sangue vermelho aflorar à superfície ondulante de espuma do mar, tremendo fantasmagoricamente antes de se dissolver com a próxima onda forte.
Ignorando a dor e o frio, Ann continuou a correr, sem saber para onde estava indo, só seguindo a voz que se intensificava, chamando-a, chamando, chamando, chamando...
“Estou indo!” – Gritou mais uma vez, e sua voz saiu como o som de algo que se rasga, rouca e desesperada.
“Estou indo, estou indo, pare com isso, por favor...”
Novo tropeço e dessa vez a superfície aguda e cortante do paredão de rocha ralou sua perna, fazendo mais sangue gotejar nas águas escuras do mar, que pareceu parar de ondear por alguns segundos para se deliciar com o novo tributo de sangue.
A lua cheia circundada por um fantasmagórico arco alaranjado iluminou o rosto coberto de cicatrizes e arranhões da garota que se debatia na água; ela tinha certeza de que tudo conspirava para que não chegasse lá, mas o chamado se intensificava, e a voz continuava chamando, chamando, chamando e ela não podia ignorá-la, não mais, já o tinha feito por muito tempo...
Um grito desesperado de sofrimento e dor varou a noite solitária quando Ann tropeçou pela terceira vez, e foi seu braço fraturado pela queda do rochedo quem recebeu o novo ferimento. Contudo, ela não desistiu, continuou apenas seguindo o chamado da voz; a visão mais clara do que nunca...
Então entrou por uma fenda na rocha, e adentrou um salão onde estalactites acima de sua cabeça pendiam perigosamente, enrolando-se em seus longos cabelos brancos como algodão, mas Ann não se importou de deixar alguns fios para trás, nem de rasgar a roupa encharcada. A voz, enfim, cessara, mas a visão do rosto sombrio continuava fixa em sua mente, e ela continuou se arrastando até que tudo o que tinha à frente era um paredão de rocha lisa. Ajoelhou-se e pediu clemência, implorou por razão e sanidade, implorou por algo que nunca tivera... E então desmaiou.

[...]
O corpo estremeceu por alguns segundos e então a mocinha abriu um par de grandes olhos azul-esverdeado aguados, quase incolores, e piscou assustada, voltando a si lentamente.
Então Ann ergueu o braço fino e num gesto delicado acariciou o rosto de Voldemort, sorrindo tolamente e murmurando esquisitices sem nexo.
“Você veio!”
Voldemort parou encarando a garota que ainda repousava a mão direita muito gelada sobre seu rosto e o acariciava com toda ternura do mundo, totalmente desconsertado.
“Quem é você?” – Rosnou raivosamente e atirando longe a mão da garota, deixando a cabeça que até então repousava em seu colo voltar à desconfortável posição inicial.

Mas Ann não se importou. Porque ele tinha vindo, seu Príncipe Encantado, que era como o chamava, mesmo nunca tendo tido muita certeza sobre qual seria o sexo daquele rosto e daquelas vozes. Não era um rosto feio, muito pelo contrário, Ann reparou que havia uma beleza estranha ali, como se um dia ele tivesse sido diferente. Também não saberia dizer se seu Príncipe Encantado era jovem ou velho, embora seus cabelos fossem escuros e bem cuidados.

“Que está fazendo aqui? Como veio parar aqui?” – Perguntou Voldemort, e Ann se assustou com a voz gélida e sombria que a fez se encolher no canto da parede da caverna.
“Eu vim, eu vim, eu disse que vinha...” - Gritou novamente com a voz rouca, recomeçando a chorar e se ajoelhando aos pés do homem.

Não era justo, não era, Ann queria seu Príncipe Encantado, queria amá-lo, queria casar com ele, queria... Queria... Queria tantas coisas!

Voldemort deu um salto para trás, se afastando das mãos feridas que agarravam a bainha de suas vestes.

“Se não disser o que veio fazer aqui, vou matá-la.” – Avisou, apontando a varinha ameaçadoramente para o trapo de gente a seus pés.
“Eu vim atrás do meu Príncipe, elas disseram que ele estaria aqui...”

E então Voldemort se deu conta de que não estavam falando em inglês, mas que o que saia de suas bocas era Língua de Cobra, e todo o seu desejo de matar a menina evaporou com uma rapidez espantosa. Não podia matá-la, ela era ofidioglota também!
“Príncipe?” – Perguntou Voldemort
Ann sacudiu a cabeça afirmativamente e tornou a agarrar a bainha de suas vestes.
“Eu sou seu Príncipe” – Disse, decidido a investigar a menina.
“Você é?” – Ela perguntou, e sua voz soou desesperadamente contente.
“Com certeza. Estou aqui para levar você.”
Ann soltou um guincho de felicidade e verteu mais lágrimas de alegria. Dando um sorrisinho amarelo em direção à garota, estendeu a mão e a ergueu, a abraçou e desaparatou para Londres, esquecendo-se totalmente do que viera fazer ali.


(N/A: Fim do trecho de T.S Riddle)


Era uma sensação muito esquisita, desaparatar, mas ela estava com ele, finalmente. E nada de mal poderia acontecer, porque, afinal,


Ele era seu Príncipe Encantado.

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