A Vida Como Ela É




A VIDA COMO ELA É






Filadélfia

SEXTA-FEIRA, 21 DE FEVEREIRO 8 HORAS

Hermione Granger saiu do saguão do seu prédio de apartamentos para uma chuva implacável, misturada com neve, que caía imparcialmente sobre as polidas limusines que desciam pela Market Street, conduzidos por motoristas uniformizados, sobre as casas abandonadas e, fechadas com tábuas dos cortiços do norte de Filadélfia.

A chuva lavava as limusines, deixando-as ainda mais limpas, ao mesmo tempo em que convertia numa confusão molhada o lixo acumulado na frente das fileiras de casas negligenciadas.

Hermione Ganger estava a caminho do trabalho. Seu ritmo era animado enquanto seguia para leste, pela Chestnut Street, na direção do banco.


Tinha de fazer um esforço para não se pôr a cantar em voz alta. Usava capa e botas amarelas, um chapéu de chuva também amarelo, que mal conseguia conter uma massa de cabelos castanhos lustrosos. Tinha vinte e cinco anos, um rosto exuberante e inteligente, a boca cheia e sensual, olhos faiscantes, que podiam mudar de um castanho suave para o preto trovoada de um momento para outro, um corpo esbelto e atlético. A pele passava por toda a gama de branco translúcido a um rosa profundo, dependendo se estava irada, cansada ou excitada.

A mãe lhe dissera certa ocasião:

- Sinceramente, criança, há ocasiões em que não a reconheço. Você muda de um instante para outro.

Agora, enquanto Hermione descia pela rua, as pessoas se viravam para sorrir, invejando a felicidade que brilhava em seu rosto. Ela retribuía aos sorrisos.

É indecente para qualquer pessoa ser tão feliz, pensou Mione. Estou casando com o homem que amo e terei o seu filho. O que mais alguém poderia pedir?

Ao se aproximar do banco, Mione olhou para o relógio. Oito e vinte. As portas do Philadelphia Trust and Fidelity Bank não se abririam para os empregados por outros dez minutos, mas Clarence Desmond, o vice-presidente sênior, no comando do departamento internacional, já estava desligando o alarme externo e abrindo a porta.

Hermione gostava de assistir ao ritual matutino. Ficou parada na chuva, esperando, enquanto Desmond entrava no banco e trancava a porta.

Os bancos do mundo inteiro possuem misteriosos processos de segurança e o Philadelphia Trust and Fidelity Bank não era excepção. A rotina jamais variava, a não ser pelo CÓDIGO de segurança, que era mudado todas as semanas.

O CÓDIGO daquela semana era uma persiana parcialmente abaixada, indicando aos empregados esperando lá fora que se realizava uma revista, a fim de verificar se não havia intrusos escondidos nas instalações, aguardando a entrada deles para convertê-los em reféns. Clarence Desmond estava efetuando uma busca pelos banheiros, depósito, caixa-forte e área dos cofres particulares. Somente depois de estar plenamente convencido de que se encontrava sozinho no interior do banco é que levantaria a persiana, como um sinal de que estava tudo bem.

O contador sênior sempre era o primeiro empregado a ser admitido. Ele ocuparia o seu lugar ao lado do alarme de emergência, até que todos os outros empregados entrassem, depois trancaria a porta.

Pontualmente às oito e meia Hermione Granger entrou no saguão ornado com seus colegas de trabalho, tirou a capa, o chapéu e as botas, escutou com um divertimento secreto os outros se, queixarem do tempo chuvoso.

- O maldito vento arrancou-me o guarda-chuva - lamentou um caixa. - Estou encharcado.

- Passei por dois patos nadando na Market Strect - comentou jovialmente o chefe dos caixas.

- A previsão do tempo é de que podemos esperar por mais uma semana assim. Eu gostaria de estar na Flórida.

Hermione sorriu e começou a trabalhar. Era encarregada do departamento de transferências por cabo. Até recentemente, transferência de dinheiro de um banco para outro, de um país para outro, era um processo lento e trabalhoso, exigindo o preenchimento de muitos formulários e dependendo dos serviços postais nacionais e internacionais.

Com o advento dos computadores, a situação mudara drasticamente.


Quantias enormes podiam ser transferidas instantaneamente. A função de Hermione era extrair do computador as transferências, processadas durante a noite e, processar as transferências por computador para outros bancos.


Todas as transações eram em CÓDIGO, mudado regularmente para impedir o acesso não-autorizado. A cada dia, milhões de dólares eletrônicos passavam pelas mãos de Hermione. Era um trabalho fascinante, o sangue vital que alimentava as artérias dos negócios por todo o globo.


Até Ronald Weasley finalmente tomar coragem e se declarar, a atividade bancária e o serviço de espionagem que fazia para o Ministério da Magia era a coisa mais emocionante do mundo para Hermione.


O Philadelphia Trust and Fidelity Bank tinha uma grande divisão internacional e durante o almoço Hermione e os colegas discutiam tudo o que acontecera pela manhã. Era uma conversa inebriante.


Deborah, uma contadora, anunciou:


- Acabamos de fechar o empréstimo associado de cem milhões de dólares para a Turquia.


Mae Trenton, secretária do vice-presidente do banco, disse:


- Foi decidido na reunião de diretoria desta manhã a participação na nova linha de crédito para o Peru . A taxa inicial é acima de cinco milhões de dólares...


Jon Creighton, o fanático do banco, acrescentou:


- Soube que vamos entrar no pacote de socorro ao México com cinqüenta milhões. Eles não merecem um único centavo.


- Isso é muito interessante - comentou Hermione. - Os países que atacam a América por ser muito obcecada por dinheiro são sempre os primeiros a nos suplicarem empréstimos.


Era também naquele momento que Hermione mais divagava sobre ela e Rony.


O pai de Hermione levara a maior parte de sua vida para construir um negócio que, nos dias de hoje os Weasleys desdenhariam como insignificante.


Depois que começara a subir no ministério (acabada a guerra contra Voldemort, onde Rony perdera os pais e Percy) ele se tornara um fanático por ficar rico e importante. A conta bancaria dele e de seus outros irmãos (os gêmeos que tinham uma fabrica de logros, Gina que era uma modelo de fama internacional e Gui e Carlinhos que continuavam no exterior fazendo o mesmo de antes) eram sempre um assunto a ser comentado no mundo bruxo.


Os Weasleys de hoje e os Granger jamais se misturariam, pensara ela. Óleo e água. E os Weasleys são o óleo. E por que estou agindo como uma idiota?


Rony sempre a chamava para sair, tanto pelo mundo bruxo quanto pelo dos trouxas, onde ela o levava há vários lugares (era mais acostumada que ele).


E Filadélfia era uma cornucópia espetacular de coisas para ver e fazer. Nas noites de sábado, Rony e Hermione iam ao balé ou assistiam Riccardo Muti conduzir a Sinfônica de Filadélfia. Durante a semana, exploravam New Market e o singular amontoado de lojas de Society Hill, vagueavam pelo Museu de Arte de Filadélfia e o Museu Rodin.


Hermione parara um dia diante da estátua de O Pensador. Olhara para Rony e sorrira.


-É você!


Rony não se interessava por exercício (era aficionado por ficar rico), e Hermione adorava esportes (menos aqueles em que uma vassoura era envolvida), mas ainda assim era igual quando em Hogwarts, muito estudiosa e inteligente.

Assim, nas manhãs de domingo, ela corria pelo West River Drive ou pelo passeio que acompanhava o Rio Schuylkifl. Na tarde de sábado freqüentava uma aula de t'ai chi ch'uan. Depois de uma hora de exercício, exausta mas exultante, ia se encontrar com Rony, no apartamento dele. Ele era um cozinheiro gourmet e gostava de preparar pratos esotéricos como bistilla marroquinas, guo bu li, os bolinhos de massa e carne do norte da China, e tahine de poulet au citron.


Rony se tornara o exemplo de Percy, e com isso a pessoa mais meticulosa que Hermione já conhecera. Ela chegara um dia, atrasada 15 minutos para o jantar e o desprazer de Rony lhe estragara o resto da noite. Depois disso, ela jurara que seria sempre pontual com ele.


Hermione tinha muito pouca experiência sexual (poderia se dizer que era virgem, afinal transara apenas uma vez com Vitor), mas parecera-lhe que Rony fazia amor da mesma maneira como levava a sua vida; meticulosamente, sempre da maneira conveniente. Houvera uma ocasião em que Hermione decidira ser ousada e anticonvencional na cama. Deixara Rony tão chocado que secretamente se perguntou, se ela não seria alguma espécie de maníaca sexual.


A gravidez fora inesperada; quando acontecera, Hermione se descobrira dominada pela incerteza. Rony nunca falara em casamento e ela não queria que ele se sentisse na obrigação de casar por causa do bebê. Não tinha certeza se poderia enfrentar um aborto, mas a alternativa era uma opção igualmente angustiosa. Poderia criar uma criança sem a ajuda do pai? Isso seria justo com a criança?


Uma noite, depois do jantar, Hermione resolvera dar a notícia a Rony. Preparara um cassoulet para ele, em seu próprio apartamento, acabara deixando-o queimar, de tanto nervosismo. Ao pôr a carne chamuscada na mesa, ela esquecera o discurso cuidadosamente ensaiado e balbuciara desordenadamente:


- Sinto muito, Rony. Eu... estou grávida.


Houvera um silêncio insuportavelmente prolongado. Quando Hermione já estava prestes a rompê-lo, Rony dissera:


- Vamos casar, é claro.


Hermione experimentara uma sensação de enorme alívio.


- Não quero que você pense que eu... Não precisa casar comigo por causa disso.


Ele levantara a mão para impedi-la de continuar.


- Quero casar com você, Hermione. Tenho certeza que dará uma esposa maravilhosa. - E um instante depois ele acrescentara, falando bem devagar:- é claro que o Ministro Patil ficara surpreso...


Rony sorrira e a beijara. Hermione indagara, suavemente:


- Por que ele ficará surpreso?


Rony suspirara.


-Querida, creio que você não compreende muito bem. Depois da morte de meu pai, Mark Patil se tornou uma espécie de pai para mim. Isso, creio eu que você já sabe...


- E ele já lhe escolhera uma esposa - adivinhara Hermione.


Rony a tomara nos braços.


- Isso não tem a menor importância, jamais me casarei com Padma Patil. O que conta é quem eu escolhi.






Quando faltavam cinco minutos para as nove horas, Hermione percebeu uma diferença no nível de ruído no banco. Os empregados passavam a falar um pouco mais depressa, a se movimentarem um pouco mais rapidamente.

As portas do banco seriam abertas dentro de cinco minutos e tudo tinha de estar pronto. Pela janela da frente, Hermione podia divisar os clientes em fila na calçada lá fora, esperando sob a chuva fria.


Hermione observou enquanto o guarda do banco terminava de distribuir fichas de depósito e retirada pelas bandejas de metal nas seis mesas no corredor central. Os clientes regulares recebem fichas de depósito com um CÓDIGO magnetizado pessoal no fundo; assim, a cada vez que se efetuava um depósito, o computador creditava-o automaticamente na conta apropriada.


Mas, freqüentemente, os clientes apareciam sem suas fichas de depósito e preenchiam as comuns.


O guarda levantou os olhos para o relógio na parede. Enquanto o ponteiro das horas se aproximava do nove, ele encaminhou-se para a porta e cerimoniosamente destrancou-a.


O dia bancário começara.


Durante as horas subseqüentes, Hermione se manteve ocupada demais no computador para pensar em qualquer outra coisa. Cada transferência tinha de ser conferida, a fim de certificar-se de que exibia o CÓDIGO correto.


Quando havia um débito, ela registrava o número da conta, a quantia e o banco para o qual o dinheiro estava sendo transferido. Cada banco possuía o seu próprio número de CÓDIGO; havia um catálogo confidencial que continha os CÓDIGOS de todos os principais bancos do mundo.


A manhã passou voando. Hermione planejava aproveitar a hora do almoço para se encontrar com Rony, e acertar o que faltava de seu vestuário para a festa de candidatura à Chefe de departamento.


No restaurante, Hermione estava preocupada. Rony jamais se atrasava e já estava cinco minutos atrasado.


Quando já pensava em comer sozinha, Hermione viu Rony seguindo o maitre.


- Desculpe-me Hermione - disse ao sentar - mas o ministro me pegou com uma longa conversa e não pude sair mais cedo.


- Tudo bem Ronald - ele sempre fazia questão de serem formais em público.- e entao como vão os preparativos para sua candidatura?


- esta correndo até melhor do que eu tinha previsto. - aqui ele se permitiu um sorriso - mas e você? O que vai usar na noite de hoje?


Enquanto Hermione começava a tagarelar sobre a roupa que iria usar e o penteado, Rony deixou sua mente divagar ate Percy. Sentia-se culpado da morte do irmão. Se Percy não houvesse entrado na frente daquele Avada Kedrava, hoje a vida seria diferente com ele morto e Percy, vivo e feliz. Por isso Rony virara um empertigado de carteirinha.


Queria poder fazer alguma coisa por Percy e a única idéia que lhe surgiu foi viver a vida como seu irmão teria vivido. Mas parecia que ele não estava indo tão bem quanto pensara. Mark Patil, Ministro da Magia, falara com ele ainda agora que se Percy estivesse vivo, se casaria com Padma.


Isso doía, pensar que não era bom o suficiente, nem para imitar seu irmão.


-Ronald? Ainda esta aqui, na terra?


-Sim, sim - respondeu distraído. Perdoe-me, mas estou com a cabeça nas nuvens.


- Não tem importância meu bem. A que horas você vai me pegar para irmos?


- que tal sete horas? -sugeriu.- temos que estar lá às oito, mas como vamos aparatar, poderemos ver se alguma coisa mais precisa de ajuda.


- Então está bem. Ate às sete Ronald.


A partir daí o dia de Hermione foi uma loucura. Depois de trabalhar até as quatro no banco, ainda foi ao cabeleireiro e pegou sua roupa de festa. É claro que tudo isso foi facilitado porque ia de um lugar ao outro aparatando.


Então às sete horas, Rony veio buscá-la em casa, e juntos aparataram para a mansão dos Patil.


Os Patil viviam numa mansão antiga e imponente, na Rittenhouse Square. Era um marco na cidade pelo qual Hermione passara muitas vezes. E agora, pensou ela, vai se tornar o palco da melhor parte da minha vida.


Ela estava nervosa. Seu fino penteado não sucumbira há umidade, (graças a um feitiçozinho que aprendera ainda em Hogwarts). O vestido era de uma seda finíssima, azul escuro, com pequenos pontos brilhantes, dando assim a impressão que era o infinito. Na orelha um pequeno brinco de brilhantes que ganhara dos pais aos dezoitos anos.



A porta da mansão foi aberta por um mordomo de libré.


- Boa noite, Senhorita Granger


O mordomo conhece meu nome, pensou Hermione. Estou impressionada!


- Os Srs. Patil os espera na sala de estar.


O mordomo conduziu-os por um vestíbulo de mármore que parecia duas vezes maior do que todo o banco. Ao entrar na sala de estar, ela sentiu um fio correr no tornozelo da meia-calça, mas, não poderia fazer nada, estava frente a frente com o ministro da magia.


Mark Patil era um homem de aparência austera, com sessenta e poucos anos. Parecia de fato um homem bem-sucedido; era uma projeção do ideal que Rony queria tanto alcançar. Tinha olhos castanhos, queixo firme, uma orla de cabelos brancos. Hermione gostou dele instantaneamente.


A Sra. Patil tinha uma aparência impressiva. Era um tanto baixa e corpulenta, mas apesar disso irradiava uma impressão suntuosa. Ela parece fina e digna de confiança, pensou Hermione. Ao canto da sala Hermione viu Padma Patil, estava muito bonita numa criação exclusiva da famosa costureira de Filadélfia, Andréa Bonett, mas ela irradiava antipatia.


A senhora Patil, primeiro beijou Rony afetuosamente, depois lhe estendeu a mão.


- Seja bem vinda a nossa casa. Pedimos a Rony que chegasse mais cedo para dar tempo de nos conhecer melhor antes da festa. Espero que não se importe.


- Claro que ela não se importa - declarou Mark Patil.


- Sente-se... Hermione, não é mesmo?


- Isso mesmo, senhor.


Os dois sentaram-se num sofá, diante dela. Padma, que agora era filha única, já que Parvati havia morrido na guerra, puxou Rony para uma outra sala, falando em mostrar a decoração para ele. Por que me sinto como se estivesse preste a sofrer um interrogatório? Hermione podia ouvir a voz da mãe: Meu bem, Deus jamais lhe impingirá qualquer coisa que não possa manipular. Basta apenas que dê um passo de cada vez.


O primeiro passo de Hermione foi um sorriso que saiu completamente errado, porque naquele instante podia sentir o fio corrido na meia-calça subir para o joelho. Ainda bem que estava de vestido!


- Pois muito bem! - A voz do Sr. Patil era vigorosa.- Você e Rony querem casar.


As palavras perturbaram Hermione. O que eles tem haver com isso? E certamente Rony lhes dissera que iam casar.


- Isso mesmo - murmurou Hermione.


- Você deve estar se perguntando o que temos com isso, mas Rony era para nós como um filho e queremos o melhor para ele. Explicou o senhor Patil.


- Você e Rony se conhecem há muito tempo, não é? Perguntou a Sra. Patil.


Hermione fez um esforço para reprimir o ressentimento. Eu estava certa. Será um interrogatório.


- Desde os onze anos de idade, Sra. Patil.


- É mesmo? - disse - o Sr. Patil.


A Sra. Patil interveio:


- Para ser franca, senhorita Granger, a notícia de Rony foi um choque para Mark e para mim. - Ela sorriu indulgentemente. - acredito que Rony lhe falou que sonhávamos com o seu casamento e de Padma.


Percebendo que não abalara Hermione como queria, a Sra Patil prosseguiu:


- Entenda, não é nada contra você srta. Granger, mas você é simplesmente uma espiã da Ligação dos Trouxas. E isso não daria uma grande ascensão para Ronald, não é mesmo?


Seguiu-se a isso um silêncio extremamente incomodo.


- Fale-nos a esse respeito de sua família - sugeriu o Sr. Patil.


Por Deus, esta é uma cena do filme da madrugada na televisão, pensou Hermione, irritada. Sou a personagem de Rita Hayworth, encontrando-me pela primeira vez com os pais de Cary Grant. Preciso de um drinque. Nos filmes antigos, o mordomo, sempre aparece em socorro com uma bandeja de drinques.


- Onde nasceu, minha cara? - perguntou a Sra. Patil.


- Na Louisiana. Meu pai era um dentista.


Não havia real necessidade de acrescentar isso, mas Hermione fora incapaz de resistir. Que eles fossem para o inferno. Ela tinha o maior orgulho do pai.


- Um dentista?


- Isso mesmo. Ele abriu uma pequena fábrica em Nova Orleans e desenvolveu-a numa das grandes companhias em seu setor. Quando papai morreu, há cinco anos, minha mãe assumiu o comando da empresa.


- O que essa... hen... Companhia produz?


- Material para consultórios dentários.


Sr. e Sra. Patil trocaram um olhar e murmuraram em uníssono:


- Han...


O tom deles deixou Hermione tensa. Quanto tempo precisarei para amá-los? Perguntou a si mesma. Olhou para os dois rostos impassíveis à sua frente e, para seu horror, começou a balbuciar meio contrafeita:


- Tenho certeza de que gostarão muito de minha mãe. Ela é bonita, inteligente, simpática. Uma mulher do Sul. Bem pequena, é claro, mais ou menos de sua altura, Sra. Patil ...


As palavras de Hermione ficaram pairando no ar, sufocadas pelo silêncio opressivo. Ela soltou uma risadinha tola, que se desvaneceu sob o olhar severo da Sra. Patil. Foi o Sr. Patil quem rompeu o silêncio, dizendo sem qualquer expressão:


- Seus pais são trouxas não?


- Não compreendo como Rony pode...


Mas o que a Sra. Patil não compreendia, Hermione nunca chegou a saber, porque nesse momento Rony e Padma (com uma cara bastante amuada) entraram na sala. Hermione nunca se sentira tão contente por ver alguém, em toda a sua vida.


- E então? - disse Rony, radiante. - Vamos para o salão? Os convidados já estão chegando.


Hermione levantou-se e correu para os seus braços.


Houve uma tosse discreta por trás deles e o mordomo se adiantou para levá-los ate o salão de baile.





A recepção foi excelente, mas Hermione estava nervosa demais para se divertir. Viu Rony a noite inteira conversando com políticos bruxos, ficou a festa praticamente com os gêmeos e Gina, que tinham horror a toda aquela gente do ministério.


De vez em quando ele a apresentava as pessoas com quem conversava, mas no meio da festa ele a chamou para um canto e lhe disse uma coisa que ao mesmo tempo foi boa e ruim:


- Querida, sei queria anunciar o noivado hoje, mas não podemos marcar uma outra festa para fazer somente isso?


- Mas... Mas porque? Perguntou Hermione tolamente.


- Política, meu bem. Assim darei a impressão de que não sou sovina a ponto de aproveitar uma festa, para fazer um pedido que renderia uma outra festa. Entende?


Gentilmente, Rony pegou-lhe a mão, olhando com aquela expressão de suplica, que Hermione não conseguia resistir.


- Tudo bem, Rony. Eu entendo. Mas a verdade era que não entendia nada. Somente queria ir embora para casa.


Ela estava exausta da tensão da noite, mas mesmo assim indagou, quando chegaram à porta de seu apartamento:


- Não vai entrar, Rony?


Ela precisava aconchegar-se em seus braços. Tinha vontade de lhe dizer: "Eu o amo, querido. E ninguém neste mundo jamais poderá nos separar".


- Esta noite não será possível - disse ele. -Terei uma manhã sobrecarregada.


Hermione ocultou seu desapontamento.


- Eu compreendo, querido.


- Falarei com você amanhã.


Ele deu-lhe um beijo rápido e Hermione observou-o se afastar pelo corredor.






O apartamento estava em chamas e o som insistente das sirenes dos bombeiros rompeu abruptamente o silêncio da noite. Hermione soergueu-se abruptamente na cama, tonta de sono, farejando a fumaça no quarto às escuras.


A campainha continuou e lentamente ela percebeu que era o telefone. O relógio na mesinha-de-cabeceira informava que eram duas e meia da madrugada. Seu primeiro pensamento de pânico foi que alguma coisa acontecera com Rony. Ela pegou o telefone bruscamente.


- Alô?


Uma voz de homem distante indagou:


- Hermione Granger?


Ela hesitou. Se era um telefonema obsceno...


- Quem está falando?


- Aqui é o Tenente Miller, do Departamento de Polícia de Nova Orleans. Estou falando com Hermione Granger?


- Ela mesma.


O coração de Hermione começou a disparar.


- Infelizmente, tenho uma má notícia a lhe dar.


A mão de Hermione apertou o telefone com toda a força.


- É sobre sua mãe.


- Ela... Mamãe sofreu algum acidente?


- Ela está morta, Senhorita Granger.


- Não!


Foi um grito. Era de fato um trote. Algum maluco tentando assustá-la Não havia nada de errado com sua mãe. Ela estava viva. "Eu a amo muito, Hermione. Mas muito mesmo".


- Detesto ter de lhe dar a notícia desse jeito, Senhorita Granger.


Era real. Era um pesadelo, mas estava acontecendo. Ela não podia falar. A mente e a língua ficaram paralisadas. A voz do tenente acrescentou:


- Alô? Está me ouvindo, Senhorita Granger?


- Pegarei o primeiro avião.


Na verdade falara isso porque o policial era trouxa, mas ela iria aparatar.


Hermione sentou na pequena cozinha do apartamento, pensando na mãe. Era impossível que ela estivesse morta. Sempre fora uma mulher vibrante, cheia de vida. Haviam desfrutado um relacionamento intimo, repleto de amor. Desde que era garotinha que Hermione podia levar seus problemas à mãe, falar sobre a escola e os garotos, posteriormente sobre os homens.


Quando o pai de Hermione morrera, haviam sido apresentadas muitas propostas por pessoas que queriam comprar a empresa. Ofereceram a Doris Granger dinheiro suficiente para ela viver confortavelmente pelo resto de sua vida. Mas a mãe se recusara obstinadamente a vender.


- Seu pai fez esta empresa. Não posso agora jogar fora todo o trabalho árduo.


E ela mantivera a empresa em plena prosperidade. Oh, mamãe. eu a amo tanto! Pensou Hermione. Agora, você nunca verá meu casamento, nunca verá o seu neto. Ela se pôs a chorar.


Hermione fez um café e o deixou esfriar, enquanto continuava sentada, no escuro. Queria desesperadamente telefonar para Rony e contar-lhe o que acontecera, tê-lo a seu lado. Olhou para o relógio da cozinha. Eram três e meia da madrugada. Não o acordaria; ligaria para ele de Nova Orleans.


Especulou se aquilo afetaria os planos de casamento e no mesmo instante sentiu-se culpada pelo pensamento. Como podia pensar em si mesma num momento como aquele? O Tenente Miller dissera:


- Quando chegar aqui, pegue um táxi e venha direto para a chefatura da polícia.


Porquê a chefatura da policia? O que acontecera?





Hermione aparatou em um beco do bairro Francês, que era mais perto da policia. Foi somente então que se deu conta de algo:


Era uma visão incrível. Havia centenas de milhares de pessoas gritando, usando máscaras, fantasiadas de dragões e crocodilos, de deuses pagãos, povoando as ruas e calçadas à frente, com uma cacofonia de som desvairada. Era uma explosão insana de corpos, música e dança.


Mas é claro! Era fevereiro, o momento em que toda a cidade celebrava o início da Quaresma, fazendo o seu carnaval. Hermione parou por um instante junto ao meio-fio, com a mala na mão. E no momento seguinte foi envolvida pela multidão a gritar, dançar. Era obsceno, um sabá de feiticeiras, um milhão de Fúrias comemorando a morte de sua mãe. A mala foi arrancada da mão de Hermione e desapareceu. Ela foi agarrada e beijada por um homem gordo, com uma máscara de demônio. Um cervo apertou-lhe os seios e um panda gigante agarrou-a por trás e levantou-a. Hermione tentou se desvencilhar e fugir dali, mas era impossível. Estava cercada, acuada, uma parte da celebração de canto e dança. Foi se deslocando com a multidão frenética, as lágrimas escorrendo pelas faces. Não havia escapatória.


Encontrava-se à beira da histeria quando finalmente conseguiu se livrar e fugir para uma rua mais sossegada.


Ficou parada por um longo tempo, encostada num lampião, respirando fundo, lentamente recuperando o controle de si mesma. E, depois, encaminhou-se para a chefatura de polícia.




O Tenente Miller era um homem de meia-idade, de expressão mortificada, o rosto enrugado, parecendo genuinamente contrafeito no papel que tinha de desempenhar.


- Lamento não poder recebê-la no aeroporto, mas a cidade inteira enlouqueceu - disse ele. - Examinamos as coisas de sua mãe e você foi a única que pudemos encontrar para chamar.


- Por favor, tenente, conte-me o que... o que aconteceu com minha mãe.


- Ela cometeu suicídio.


Hermione sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo.


- Mas... Mas isso é impossível! Por que ela haveria de se matar? Ela tinha tudo para viver!


A voz de Hermione era trêmula.


- Ela deixou um bilhete para você





O necrotério era frio, indiferente e aterrador. Hermione foi conduzida por um corredor comprido e branco até uma sala grande, asséptica e vazia. E subitamente compreendeu que a sala não se achava vazia.


Estava povoada pelos mortos. Pela sua morta.


Um atendente de jaleco branco aproximou-se de uma parede, estendeu a mão para uma alça e puxou uma gaveta enorme.


- Quer dar uma olhada?


Não! Não quero ver o corpo vazio e sem vida estendido nessa caixa. Ela queria sair dali.


Queria voltar algumas horas no tempo, quando o alarme de incêndio soava. E que seja um incêndio de verdade, não o telefone, não minha mãe morta.


Hermione adiantou-se, lentamente, cada passo um grito interior. E depois estava olhando para o corpo inanimado que a gerara, alimentara, rira com ela e a amara. Ela inclinou-se e beijou o rosto da mãe. O rosto estava frio e flexível.


- Oh, mamãe! - sussurrou Hermione. - Por quê? Por que fez isso?


- Temos de efetuar uma autópsia - disse o atendente. É a lei estadual nos casos de suicídio.


O bilhete que Doris Granger deixara não oferecia qualquer resposta:


Minha querida Mione:

Perdoe-me, por favor. Fracassei e não podia suportar ser um fardo para você. Esta é a melhor solução. Eu a amo muito.
Mamãe


O bilhete era tão inanimado e desprovido de sentido quanto o corpo que se achava na gaveta.


Hermione tomou as providências para o enterro naquela tarde, depois pegou um táxi para a casa da família. À distância, podia ouvir o rugido dos foliões do Mardi Gras, como alguma celebração estranha e lúgubre


A residência dos Grangers era uma casa vitoriana no Garden District, na área residencial conhecida como Uptown. Como a maioria das residências de Nova Orleans, era construída em madeira e não tinha porão, pois o lugar situava-se abaixo do nível do mar.


Hermione crescera naquela casa, que estava povoada por recordações agradáveis e afetuosas. Ela não estivera em casa no ano anterior. Quando o táxi diminuiu, a fim de parar diante do prédio ela ficou chocada com o cartaz grande que avistou no gramado: À VENDA - COMPANHIA IMOBILIÁRIA DE NOVA ORLEANS. Era impossível. Nunca venderei esta casa, a mãe dissera muitas vezes. Fomos muito felizes aqui.


Dominada por um medo insólito e irracional, Hermione passou por uma enorme magnólia, encaminhando-se para a porta da frente. Ganhara a chave de casa quando voltou das férias do quinto ano e a carregava desde então como um talismã, uma lembrança do refúgio que sempre estaria ali, à sua espera.


Ela abriu a porta e entrou. Parou prontamente, aturdida. Os cômodos estavam inteiramente vazios, desprovidos de móveis. Todas as peças antigas e bonitas haviam desaparecido. A casa era como uma casca vazia, abandonada pelas pessoas que outrora a ocupavam. Hermione correu de um cômodo para outro, com uma incredulidade crescente. Era como se tivesse ocorrido um desastre repentino. Subiu apressadamente e parou na porta do quarto que ocupara durante a maior parte de sua vida. O quarto a fitava, frio e vazio. Oh, Deus, que pode ter acontecido? Hermione ouviu a campainha da porta da frente e desceu a escada para atender, como se estivesse em transe.


Otto Schmidt estava parado na porta. O capataz da Granger Dentist Parts Company era um homem idoso, o rosto todo enrugado, um corpo muito magro, em que se destacava a barriga de cerveja. Uma tonsura de cabelos brancos emoldurava o crânio.


- Acabei de receber a notícia, Hermione - disse ele, com um forte sotaque alemão - Eu... eu não sei como lhe dizer o quanto lamento.


Hermione segurou-lhe as mãos.


- Oh, Otto, não sabe como estou feliz em vê-lo! Mas entre. - Ela levou-o para a vazia sala de estar. -Lamento que não haja lugar para sentar. Importa-se de se sentar no chão?


- Claro que não.


Sentaram-se de frente um para o outro, os olhos aturdidos pela dor. Otto Schmidt fora empregado da companhia por tanto tempo quanto Hermione podia se lembrar. Ela sabia o quanto o pai dependia dele. Quando a mãe herdara a companhia, Schmidt continuara para dirigi-la.


- Não entendo o que está acontecendo, Otto. A polícia diz que mamãe cometeu suicídio. Mas você sabe muito bem que não havia motivo para ela se matar. - Um pensamento súbito ocorreu-lhe. - Ela não estava doente, não é mesmo? Ela não tinha alguma doença terrível. . .


- Não. Não foi isso.


Ele desviou os olhos, contrafeito, alguma coisa em suspense nas suas palavras. Hermione disse, lentamente:


- Você sabe o que foi.


Ele fitou-a com os olhos azuis remelentos.


- Sua mãe não lhe contou o que vinha acontecendo ultimamente. Não queria preocupá-la.


Hermione franziu o rosto.


- Não queria me preocupar com o quê? Continue... Por favor.


As mãos calejadas de Otto Schmidt se abriram e fecharam.


- Já ouviu falar de um homem chamado Joe Romano?


- Joe Romano? Não. Por quê?


Otto Schmidt piscou os olhos.


- Romano procurou sua mãe há seis meses e disse que queria comprar a companhia. Ela respondeu que não estava interessada em vender. Mas ele ofereceu dez vezes mais do que a companhia valia e ela não pôde recusar. Ficou muito animada. Investiria todo o dinheiro em aplicações seguras, que proporcionariam uma receita de que vocês duas poderiam viver, confortavelmente, pelo resto de suas vidas. Tencionava fazer-lhe uma surpresa. Fiquei muito satisfeito por ela. Há três anos que eu estava querendo me aposentar, mas não podia deixar a Sra. Doris sozinha, não é mesmo? Esse Romano... - Otto pronunciou a palavra com uma fúria evidente. - Esse Romano deu a ela uma pequena entrada. O dinheiro grande,... O pagamento do saldo... Deveria entrar no mês passado.


Hermione disse, impaciente:


- Continue, Otto. O que aconteceu?


- Assim que assumiu, Romano despediu todo mundo e trouxe o seu próprio pessoal. E começou a depredar a companhia. Vendeu todos os bens e encomendou uma porção de equipamentos, vendendo tudo, mas não pagando. Os fornecedores não se preocuparam com o atraso no pagamento, porque pensavam que ainda estavam tratando com sua mãe.


Quando finalmente começaram a pressionar sua mãe pelo pagamento, ela procurou Romano e exigiu que ele explicasse o que estava acontecendo. Ele disse que desistira da transação e estava lhe devolvendo a companhia. A esta altura, porém, a companhia já não valia mais nada e ainda por cima sua mãe devia meio milhão de dólares, que não tinha condições de pagar. Quase me matou e à minha mulher, Hermione. Acompanhamos a luta de sua mãe para salvar a companhia. Mas não havia jeito. Eles a forçaram à falência. Tomaram-lhe tudo... A companhia, esta casa, até mesmo seu carro.


- Oh, Deus!


- Há mais. O promotor distrital comunicou à sua mãe que ia pedir um indiciamento por fraude, que ela se arriscava a uma sentença de prisão. Acho que foi nesse dia em que ela realmente morreu.


Hermione fervilhava com uma onda de raiva impotente.


- Mas tudo o que ela tinha de fazer era contar a verdade... Explicar o que aquele homem lhe fez.


O velho capataz sacudiu a cabeça.


- Joe Romano trabalha para um homem chamado Anthony Orsatti. E Orsatti manda em Nova Orleans


- Descobri tarde demais que Romano já tinha feito a mesma coisa com outras companhias. Mesmo que sua mãe o levasse aos tribunais, muitos anos se passariam antes de tudo se esclarecer. E ela não tinha dinheiro para lutar contra ele.


- Por que ela não me disse nada?


Era um brado de angústia, um brado pela angústia da mãe.


- Sua mãe era uma mulher orgulhosa. E o que você podia fazer? Não há nada que alguém possa fazer.


Você está enganado, pensou Hermione, furiosa.


- Quero falar com Joe Romano. Onde posso encontrá-lo?


Schmidt disse, incisivamente:


- Esqueça-o. Não faz idéia de como ele é poderoso.


- Onde ele mora, Otto?


- Ele tem uma casa perto de Jackson Square. Mas não adiantará ir até lá, Hermione.


Hermione não respondeu. Estava dominada por uma emoção que lhe era totalmente desconhecida: o ódio. Joe Romano pagará pela morte de minha mãe, jurou Hermione para si mesma.

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