No Expresso Oriente



Foi o início de uma vida nova para Hermione. Ela comprou uma linda casa
georgiana, na Eaton Square, 45, esplêndida e alegre, perfeita para receber.
Tinha um Queen Anne - a gíria britânica para designar um jardim na frente - e um
Mary Anne - jardim nos fundos - magníficos quando chegava a primavera.


Sirius ajudou Hermione a decorar a casa e antes que os dois acabassem já era
um dos lugares de destaque de Londres. Ele apresentava Hermione como uma jovem
viúva rica, cujo marido ganhara sua fortuna em operações de importação e
exportação. Ela foi um sucesso instantâneo: bonita, inteligente e charmosa, logo
se viu inundada de convites. Claro que Sirius convenientemente nunca mencionava
o afilhado para Hermione.


A intervalos, Hermione realizava pequenas viagens à Suíça, Bélgica, Itália e
França, a cada vez obtendo novos lucros para ela e Sirius. Sob sua orientação,
Hermione estudou o Almanaque de Gotha e o Debrett's Peerage and Baronetage, os
livros mais atualizados, com informações detalhadas, sobre a realeza e títulos
da Europa. Hermione tornou-se como um camaleão, uma perita em transfiguração
humana, disfarces e sotaques. Adquiriu meia dúzia de passaportes e prática em
aparatação à distancia. Em vários países, era uma duquesa britânica, uma
aeromoça francesa e uma herdeira sul-americana. Em um ano, acumulara mais
dinheiro do que jamais precisaria.


Instituiu um fundo, que fazia contribuições vultosas e anônimas a
organizações empenhadas em ajudar as mulheres que haviam passado pela prisão.
Providenciou uma pensão generosa a ser enviada todos os meses a Otto Schmidt.
Nem sequer passava pela sua cabeça a idéia de largar essa vida. Adorava o
desafio de sobrepujar pessoas espertas e bem-sucedidas. A emoção de cada
aventura ousada agia como um tóxico. Hermione descobriu que constantemente
precisava de novos e maiores desafios. Havia um credo pelo qual vivia: Jamais
roubar inocentes. As pessoas que caíam em seus golpes eram gananciosas ou
imorais, se não as duas coisas. Ninguém jamais cometerá suicídio por causa de um
ato meu, prometeu Hermione a si mesma.


Os jornais começaram a publicar notícias sobre os golpes audaciosos que
ocorriam por toda a Europa. Como Hermione usava disfarces diferentes, a polícia
ficara convencida de que uma erupção de golpes e assaltos engenhosos estava
sendo promovida por uma quadrilha de mulheres. Foi ai que a Interpol começou a
se interessar.


Em Manhattan, na sede da Associação Internacional de Proteção do Seguro, J.J.
Reynolds mandou chamar seu melhor agente, Dudley Dursley.


- Temos um problema - disse Reynolds. - Muitos dos nossos clientes europeus
estão sendo gravemente atingidos... aparentemente por uma quadrilha de mulheres.
Todos estão furiosos. Querem que a quadrilha seja desbaratada. A Interpol já
concordou em cooperar conosco. A missão é sua, Dan. Você parte rumo a Paris pela
manhã.


Hermione estava jantando com Sirius no Scott's, na Mount Street.


- Já ouviu falar da nova fortuna de Draco Malfoy, Hermi?


O nome parecia familiar. Onde ela o ouvira antes? Lembrou de repente. Harry,
a bordo do Queen Elizabeth II, dissera: "Estamos aqui pelo mesmo motivo. Draco
Malfoy."


Ela disse:


- Ele voltou a ser muito rico, não é mesmo?


- E absolutamente implacável. Especializa-se em comprar companhias e
saqueá-las.


"Quando Joe Romano assumiu a companhia, despediu todo mundo e trouxe o seu
próprio pessoal. E começaram a saquear a companhia. Tiraram tudo - a companhia,
esta casa, o carro de sua mãe..."


Sirius a observava com estranheza:


- Você está bem, Hermi?


- Estou, sim. - "A vida pode às vezes ser injusta e compete a nós endireitar
as coisas", pensou ela. - Fale-me mais a respeito de Malfoy.


- Divorciou-se a pouco tempo da terceira esposa, ela fugiu com o motorista -
aqui Sirius deu uma pequena risadinha - está sozinho agora. Acho que poderia ser
proveitoso se você o conhecesse. Ele tem uma reserva no Expresso do Oriente de
sexta-feira, partindo de Londres para Istambul.


Hermione sorriu.


- Nunca viajei no Expresso do Oriente. Acho que vou gostar.


O rosto de Sirius se iluminou.


- Ótimo. Malfoy possui a única coleção de ovos Fabergé, fora do Museu
Hermitage, de Leningrado. Um cálculo moderado lhe atribui o valor de vinte
milhões de dólares.


- Se eu conseguisse lhe arrumar alguns desses ovos, Sirius, o que faria com
eles? - indagou curiosa. - Não são conhecidos demais para vendê-los?


- Colecionadores particulares, minha cara . Traga os ovinhos para mim e
conseguirei encontrar-lhes um ninho.


- Verei o que posso fazer.


- Malfoy não é um homem fácil de abordar. Contudo, há dois outros alvos que
também viajarão no Expresso do Oriente, a caminho do festival de cinema em
Veneza. Creio que estão maduros para serem depenados. Já ouviu falar de Silvana
Lualdi?


- A atriz de cinema italiana? Claro.


- Ela é casada com Alberto Fornati, que produz aqueles horríveis filmes
épicos. Fornati é famoso por contratar atores e diretores por pouco dinheiro,
mas prometendo participação nos lucros. Contudo ele sempre dá um jeito de
açambarcar todos os lucros. E ganha o suficiente para comprar as jóias mais
caras para a esposa. Quanto mais lhe é infiel, mais jóias para ela Fornati
compra. A esta altura, Silvana já deve estar em condições de abrir uma
joalheria. Tenho certeza de que os achará uma companhia muito interessante.


- Estou ansiosa em conhecê-los.


O Expresso do Oriente Veneza Simplon parte da Victoria Station, em Londres,
toda manhã de sexta-feira, às 11:44, seguindo de Londres para Istambul, com
escalas em Boulogne, Paris, Lausanne, Milão e Veneza. Meia hora antes da
partida, uma roleta portátil é armada à entrada da plataforma de embarque no
terminal, dois corpulentos homens uniformizados estendem um tapete vermelho,
empurrando para o lado os outros passageiros à espera.


Os novos proprietários do Expresso do Oriente tentaram reconstituir a época
áurea da viagem ferroviária, conforme ocorria ao final do século XIX. O trem era
uma réplica do original, com um vagão Puliman britânico, vagões- restaurantes,
um bar e os vagões-dormitórios.


Um atendente com um uniforme azul-marinho da década de 20, com alamares
dourados, levou as duas malas de Hermione e a sua frasqueira para a cabina, que
era desapontadoramente pequena. Havia uma única poltrona, estofada em mohair,
num padrão florido. O tapete, assim como a escada para se subir ao beliche, era
coberto por pelúcia verde. Era como estar numa caixa de bombons.


Hermione leu o cartão que acompanhava a garrafa de champanha num balde de
prata: OLIVER AUBERT, GERENTE DO TREM.


"Guardarei o champanha até ter alguma coisa para comemorar", decidiu-se.
Draco Malfoy. Harry Potter fracassara. Seria maravilhoso superar o Sr. Potter.
Hermione sorriu ao pensar nisso.


Ela desfez as malas no espaço apertado, pendurou as roupas que precisaria.
Preferia aparatar ou um jato da Pan American ao trem, mas aquela viagem prometia
ser das mais emocionantes.


Pontualmente no horário, o Expresso do Oriente começou a deixar a estação.
Hermione sentou-se e ficou observando a passagem dos subúrbios meridionais de
Londres. À 1:15 da tarde o trem chegou ao porto de Folkestone, onde os
passageiros foram transferidos para a barca Sealink, que os levaria através do
Canal da Mancha até Boulogne, onde embarcariam em outro Expresso do Oriente,
seguindo para o sul.


Hermione aproximou-se de um dos camareiros:


- Soube que Draco Malfoy está viajando conosco. Poderia apontá-lo para mim?


O camareiro sacudiu a cabeça.


- Eu bem que gostaria, madame. Ele reservou uma cabina e pagou, mas nunca
apareceu. Pelo que me disseram, trata-se de um cavalheiro bastante imprevisível.


Assim, restavam Silvana Lualdi e seu marido, o produtor dos horríveis filmes.
Em Boulogne, os passageiros foram conduzidos ao Expresso do Oriente continental.
Infelizmente, a cabina de Hermione no segundo trem era idêntica à outra que
acabara de deixar, o leito irregular da estrada tornando a viagem ainda mais
desconfortável. Ela permaneceu na cabina durante o dia inteiro, fazendo planos.
Às oito horas da noite começou a se vestir.


A etiqueta do Expresso do Oriente recomendava traje a rigor. Hermione
escolheu um deslumbrante, longo, cinza-claro de seda indiana, com sandálias de
salto finíssimo, da mesma cor. A única jóia era uma magnífica fieira de pérolas
iguais. Ela parou diante do espelho antes de deixar a cabina, contemplando a sua
imagem por um longo tempo. Os olhos verdes tinham uma expressão de inocência, o
rosto parecia ingênuo e vulnerável. "O espelho está mentindo, pensou Hermione.
Não sou mais essa mulher. Vivo uma fantasia. Só que das mais emocionantes". No
instante em que deixou a cabina, a bolsa escorregou de sua mão. Ela ajoelhou-se
para recuperá-la e aproveitou para examinar rapidamente as fechaduras pelo lado
de fora da porta. Havia duas, uma vale e uma Universal. "Não serão problemas".
Hermione levantou-se e seguiu para os vagões-restaurantes.


Havia três. Os assentos eram forrados de pelúcia, as paredes envernizadas,
luzes suaves brilhando em candelabros de latão, com anteparos Lalique. Hermione
entrou no primeiro restaurante e notou que havia diversas mesas vazias. O garçom
cumprimentou-a.


- Uma mesa só para uma pessoa, mademoiselle?


Hermione olhou ao redor.


- Vou me encontrar com alguns amigos. Mas obrigada.


Ela continuou para o vagão-restaurante seguinte. Este estava mais cheio, mas
ainda havia diversas mesas vazias.


- Boa noite - disse o garçom. - Vai jantar sozinha?


- Não. Vou encontrar com alguém. Obrigada.


Hermione deslocou-se para o terceiro vagão-restaurante. Ali, todas as mesas
se achavam ocupadas. O garçom deteve-a na porta.


- Infelizmente, terá de esperar por uma mesa, madame. Mas há algumas
disponíveis nos outros carros.


Correndo os olhos pelo vagão, logo avistou o que procurava numa mesa no outro
canto.


- Não se preocupe - disse ela. - Estou vendo alguns amigos.


Ela passou pelo garçom e se encaminhou para o objetivo.


- Com licença. Todas as mesas estão ocupadas. Importam-se que eu me sente
aqui?


O homem levantou-se no mesmo instante, lançou um olhar apreciativo para
Hermione e exclamou:


- Prego! Com piacere! Sou Alberto Fornati e esta é minha esposa, Silvana
Lualdi.


- Hermione Granger.


Ela estava usando o seu próprio passaporte.


- Ora, é americana! Falo um excelente inglês.


Alberto Fornati era baixo, calvo e gordo. Por que motivo Silvana Lualdi
casara com ele era um tema de animadas conversas em Roma durante os 12 anos em
que viviam juntos. Silvana era de uma beleza clássica, com um corpo sensacional
e um talento natural e irresistível. Ganhara um Oscar e uma Palma de Prata,
constantemente era solicitada para novos filmes. Hermione reconheceu que ela
vestia um Valentino, que valia pelo menos cinco mil dólares. As jóias que
ostentava, então, deviam valer quase um milhão. Hermione lembrou-se das palavras
de Sirius: "- Quanto mais lhe é infiel, mais Fornati compra jóias para ela. A
esta altura, Silvana já deve estar em condições de abrir uma joalharia."


- Esta é a sua primeira viagem no Expresso do Oriente, signorina? - perguntou
Fornati, puxando conversa, depois que Hermione sentou.


- É, sim.


- Trata-se de um trem muito romântico, cheio de histórias. - Os olhos de
Fornati estavam úmidos. - E histórias muito interessantes. Sir Basil Zaharoff, o
magnata das armas, por exemplo, costumava viajar no velho Expresso do Oriente...
sempre na sétima cabina. Uma noite ouviu um grito e uma batida em sua porta. E
uma linda duquesa espanhola jogou-se em cima dele.


Ele fez uma pausa, passando manteiga num pãozinho e comendo.


- O marido estava tentando assassiná-la. O casamento fora promovido pelos
pais e só então a pobre moça descobria que o marido era insano. Zaharoff conteve
o marido, e acalmou a jovem histérica. Assim começou um romance que durou
quarenta anos.


- Emocionante! - murmurou Hermione, os olhos arregalados de interesse.


- Sim. Depois disso, eles se encontravam no Expresso do Oriente, Zaharoff na
cabina sete, ela na oito. Quando o marido morreu, a duquesa casou com Zaharoff.
Como símbolo de seu amor e um presente de casamento, Zaharoff comprou para ela o
casino de Monte Carlo.


- Uma linda história, Sr. Fornati.


Silvana Lualdi se mantinha num silêncio impassível.


- Mangia - recomendou Fornati a Hermione. - Coma.


O cardápio consistia de seis pratos. Hermione notou que Alberto Fornati comia
cada um e ainda terminava o que a esposa deixava no prato. Entre os bocados, ele
falava sem parar.


- Por acaso é atriz? - ele perguntou.


Ela riu.


- Oh, não! Sou apenas uma turista.


Ele contemplou-a com uma expressão radiante.


- Pois é bastante bonita para ser uma atriz.


- Ela já disse que não é uma atriz - interveio Silvana, bruscamente.


Alberto Fornati ignorou-a e disse a Hermione:


- Sou produtor de filmes. E tenho certeza que os conhece. Os Selvagens, Os
Titãs Contra a Supermulher...


- Quase não vou ao cinema - desculpou-se Hermione, sentindo a perna gorda de
Fornati a comprimir-se contra a sua.


- Talvez eu possa dar um jeito para lhe mostrar alguns dos meus filmes.


Silvana ficou pálida de raiva.


- Já esteve alguma vez em Roma, minha cara? - indagou Fornati, subindo e
descendo a perna na sua.


- Para dizer a verdade, eu planejava ir a Roma depois de Veneza.


- Esplêndido! Benissimo! Vamos nos encontrar todos para jantar. Não é mesmo,
cara mia? - Ele lançou um olhar rápido para Silvana, antes de continuar: - Temos
uma residência espetacular na Via Apia. Dez acres de... - Ele fez um gesto amplo
com a mão, derrubando uma tigela de molho no colo da esposa. Hermione não pôde
determinar se fora ou não um acidente. Silvana Lualdi levantou-se, olhando para
a mancha a se espalhar em seu vestido.


- Sei un mascalzone! - gritou ela. - Tieni le tue puttane lontano da me!


Ela saiu furiosa do vagão-restaurante, acompanhada por todos os olhos.


- Mas que pena! - murmurou Hermione. - É um vestido tão bonito...


Ela tinha vontade de esbofetear o homem por aviltar a esposa daquela maneira.
Ela merece cada quilate de jóia que ganha, pensou Hermione. E muito mais.
Fornati suspirou.


- Fornati comprará outro vestido para ela. E não dê importância a suas
maneiras. Ela tem muito ciúme de Fornati.


- Tenho certeza que ela tem bom motivo para isso. - Hermione disfarçou a
ironia com um pequeno sorriso. Fornati sentiu-se envaidecido.


- Tem razão. As mulheres acham Fornati muito atraente.


Hermione teve de fazer um grande esforço para não desatar a rir do pomposo
homenzinho.


- O que posso perfeitamente compreender.


Ele inclinou-se por cima da mesa e pegou-lhe a mão.


- Fornati gosta de você. Fornati gosta muito de você. O que faz para ganhar a
vida?


- Sou uma secretária-executiva. E poupei todo o meu dinheiro para esta
viagem. Espero conseguir um bom emprego na Europa.


Os olhos esbugalhados de Fornati percorreram o corpo de Hermione.


- Fornati lhe promete que não terá qualquer problema. Ele trata muito bem as
pessoas que o tratam bem.


- É um homem muito generoso - disse timidamente.


Ele baixou a voz para acrescentar:


- Talvez pudéssemos conversar a esse respeito mais tarde, em sua cabina.


- Isso poderia ser embaraçoso.


- Perche? Por quê?


- É um homem muito famoso. E todos no trem sabem provavelmente quem é.


- Mas é claro!


- Se o virem entrar em minha cabina... algumas pessoas podem interpretar de
maneira errada. Mas se sua cabina for perto da minha... Qual é o número de sua
cabina?


- Setenta.


Ele fitou-a com uma expressão esperançosa. Hermione suspirou.


- Estou em outro vagão. Por que não nos encontramos em Veneza? - Fornati
ficou radiante.


- Bene! Minha esposa passa a maior parte do tempo no quarto. Não suporta o
sol em seu rosto. Já esteve alguma vez em Veneza?


- Não.


- Pois iremos a Torcello, uma linda ilhota, com um restaurante maravilhoso, o
Locanda Cipriani. É também um pequeno hotel. - Os olhos dele brilharam. - Molto
privato.


Hermione presenteou-o com um sorriso lento e compreensivo.


- Parece excitante...


Ela baixou os olhos, triunfante demais para acrescentar qualquer outra coisa.
Fornati inclinou-se para a frente, apertou a mão de Hermione e sussurrou:


- Ainda não sabe o que é excitamento, cara mia.


Meia hora depois Hermione estava de volta à sua cabina.


O Expresso do Oriente avançava velozmente pela noite solitária, passando por
Paris, Dijon e Vallarbe, enquanto os passageiros dormiam. Todos haviam entregue
seus passaportes na noite anterior e as formalidades na fronteira seriam
tratadas pelos cabineiros.


Às três e meia da madrugada Hermione aparatou na cabine em frente a cabine
setenta. Era o momento crítico. O trem chegaria a Lausanne e atravessaria a
fronteira Suíça às 5:21, e deveria chegar em Milão, na Itália, às 9:15. De
pijama e chambre, levando uma bolsa, Hermione estava parada em frente a porta,
todos os sentidos alerta, a emoção familiar fazendo seu pulso disparar. Não
havia banheiros nas cabinas, apenas um na extremidade de cada vagão. Se alguém a
detivesse, Hermione diria que estava à procura de um banheiro de mulheres, mas
não encontrara nenhum. Os cabineiros aproveitavam as horas sossegadas da
madrugada para recuperar o sono atrasado.


Experimentou a maçaneta. A porta se achava trancada. Hermione abriu a bolsa,
tirou a varinha lá de dentro e um pequeno vidro com uma seringa, e começou a
trabalhar.


Dez minutos depois retornava à sua cabina e meia hora mais tarde dormia
profundamente, com o vestígio de um sorriso no rosto recentemente lavado.


Às sete da manhã, duas horas antes de o Expresso do Oriente chegar a Milão,
houve uma sucessão de gritos penetrantes. Partiam da Cabina 70 e despertaram
todo o vagão. Passageiros abriram as portas de suas cabinas para descobrir o que
estava acontecendo. Um cabineiro, aproximou-se correndo e entrou na 70. Silvana
Lualdi estava histérica.


- Auto! Socorro! Todas as minhas jóias sumiram! Este trem miserável está
cheio de ladrões!


- Acalme-se, por favor, madame - suplicou o cabineiro. - Os outros...


- Acalmar-me? - A voz de Silvana Lualdi ergueu-se uma oitava. - Como se
atreve a me mandar acalmar, stupido maiale? Alguém roubou minhas jóias, que
valem mais de um milhão de dólares!


- Como isso pode ter acontecido? - indagou Alberto Fornati. - A porta estava
trancada... e Fornati tem o sono leve. Se alguém tivesse entrado, eu acordaria
imediatamente.


O cabineiro suspirou. Sabia muito bem como acontecera, porque já ocorrera
antes. Durante a noite, alguém se esgueirara pelo corredor e lançara uma seringa
com éter pelo buraco da fechadura. As trancas seriam brincadeira de criança para
quem soubesse o que estava fazendo. O ladrão fecharia a porta, saquearia a
cabina, pegando o que bem quisesse, voltando a seu lugar, enquanto as vitimas
continuavam inconscientes. Mas havia uma coisa naquele roubo que o tornava
diferente dos outros. No passado, os furtos só haviam sido descobertos depois
que o trem chegara a seu destino. Com isso, os ladrões tiveram chance de
escapar. Mas aquela situação era diferente. Ninguém desembarcara desde o roubo,
o que significava que as jóias ainda se encontravam a bordo.


- Não se preocupem - prometeu o cabineiro a Fornati. - Terão suas jóias de
volta. O ladrão ainda está no trem. - E ele afastou-se apressadamente, a fim de
se comunicar com a polícia de Milão.


Quando o Expresso do Oriente entrou no terminal de Milão, vinte guardas de
uniforme e detetives à paisana esperavam na plataforma da estação, com ordens
para não deixar quaisquer passageiros ou bagagens saírem do trem.


Luigi Ricci, o Inspetor encarregado do caso, foi levado diretamente à cabina
dos Fornatis. A histeria de Silvana Lualdi aumentara.


- Todas as jóias que eu possuía estavam nesta caixa! - gritou ela. - E
nenhuma se achava segurada!


O Inspetor examinou a caixa de jóias vazia.


- Tem certeza de que pôs as jóias aqui na noite passada, signora?


- Mas claro que tenho certeza! Guardo-as todas as noites! - seus olhos
luminosos, que haviam emocionado milhões de fãs apaixonados, exibiam lágrimas. O
Inspetor Ricci estava disposto a enfrentar dragões por ela.


Ele foi até a porta da cabina, abaixou-se, farejou o buraco da fechadura.
Percebeu o odor persistente de éter. Houvera um roubo e ele tencionava agarrar o
bandido insensível. O Inspetor Ricci empertigou-se e disse:


- Não se preocupe, signora. Não há qualquer possibilidade de as jóias serem
retiradas deste trem. Pegaremos o ladrão e suas jóias serão devolvidas.


O Inspetor Ricci tinha todos os motivos para estar confiante. A armadilha
estava hermeticamente fechada e não havia qualquer possibilidade de o culpado
escapar.


Um a um, os detetives levaram os passageiros a uma sala de espera da estação
que fora cercada, revistando-os meticulosamente. Muitos passageiros eram
proeminentes e ficaram indignados.


- Lamento profundamente - explicava o Inspetor Ricci a cada um - mas um roubo
de um milhão de dólares é uma coisa muito grave.


À medida que cada passageiro deixava o trem, os detetives reviravam suas
cabinas pelo avesso. Cada centímetro de espaço era examinado. Aquela constituía
uma oportunidade esplêndida para o Inspetor Ricci e ele tencionava tirar o
máximo proveito. A recuperação das jóias roubadas significaria uma promoção e um
aumento. Sua imaginação entrou em delírio. Silvana Lualdi ficaria tão grata que
provavelmente o convidaria para... Ele deu ordens com um vigor renovado.


Houve uma batida na porta da cabina de Hermione e um detetive entrou no
instante seguinte.


- Com licença, signorina. Houve um roubo. É necessário revistar todos os
passageiros. Se fizer o favor de me acompanhar..


- Um roubo? - A voz de Hermione era chocada. - Neste trem?


- Receio que sim, signorina.


Quando Hermione saiu da cabina, dois detetives entraram, abriram suas malas,
começaram a verificar cuidadosamente o conteúdo.


No final de quatro horas de busca, a polícia encontrara vários maços de
marijuana, cinco onças de cocaína, uma faca e um revólver ilegal. Mas não havia
qualquer sinal das jóias desaparecidas. O Inspetor Ricci não podia acreditar.


- Revistaram todo o trem? - ele perguntou a seu lugar-tenente.


- Inspetor, revistamos cada palmo do trem. Examinamos a locomotiva, os
vagões-restaurantes, o bar, os banheiros, as cabinas. Revistamos os passageiros
e os tripulantes, examinamos a bagagem inteira. Posso jurar que as jóias não se
encontram no trem. Talvez a mulher tenha simplesmente imaginado o roubo.


Mas o Inspetor Ricci sabia que isso não acontecera. Conversara com os
garçons, que confirmaram que Silvana Lualdi realmente usara jóias espetaculares
ao jantar, na noite anterior. Um representante do Expresso do Oriente chegara de
avião a Milão.


- Não pode reter o trem por mais tempo - insistiu ele. - Já estamos muito
atrasados.


O Inspetor Ricci sentiu-se derrotado. Não tinha desculpa para segurar o trem
por mais tempo. Não havia mais nada que pudesse fazer. A única explicação que
podia pensar era a de que o ladrão, de alguma forma, jogara as jóias do trem
para um cúmplice à espera perto da linha, durante a noite. Mas poderia ter
acontecido assim? O cálculo do tempo seria impossível. O ladrão não poderia
saber de antemão quando o corredor estaria livre, quando um cabineiro ou
passageiro poderia surgir, em que momento o trem passaria por um local deserto
determinado. Era um mistério para o Inspetor resolver.


- O trem pode continuar - ordenou ele.


O Inspetor Ricci observava desolado quando o Expresso do Oriente deixou a
estação. Lá se ia sua promoção, o aumento e uma orgia feliz com Silvana Lualdi.


O único tópico de todas as conversas, ao café da manhã no trem, foi o roubo.


- É a coisa mais emocionante que me aconteceu em muitos anos - confessou uma
empertigada professora de uma escola feminina. Ela pôs a mão num colar de ouro,
com uma lasca mínima de diamante. - Estou com sorte de não terem levado o meu
colar.


- Muita sorte - concordou Hermione, solenemente.


Ao entrar no vagão-restaurante, Alberto Fornati avistou-a e aproximou-se dela
rapidamente.


- Já sabe o que aconteceu, é claro. Mas sabia que foi a esposa de Fornati que
roubaram?


- Oh, não!


- Exatamente! Minha esposa corre grande perigo. Uma quadrilha entrou em minha
cabina e deixou-me desacordado com Clorofórmio. Fornati poderia ter sido
assassinado enquanto dormia.


- Que coisa terrível!


- É uma bella fregatura! Terei agora de substituir todas as jóias de Silvana.
O que me custará uma fortuna.


- A polícia não encontrou as jóias?


- Não. Mas Fornati sabe como os ladrões se livraram das jóias.


- É mesmo? E como foi?


Ele olhou ao redor e baixou a voz para dizer:


- Um cúmplice esperava numa das estações por que passamos durante a noite. O
ladrão jogou as jóias do trem e... tudo estava acabado.


Hermione disse, com evidente admiração:


- Como foi esperto ao calcular isso!


- Sim. - Ele alteou as sobrancelhas, sugestivamente. - Não esquecerá o nosso
pequeno encontro secreto em Veneza, não é mesmo?


- Como poderia esquecer? - respondeu sorrindo.


Ele apertou-lhe o braço com força.


- Fornati está ansioso pelo encontro. E agora tenho de ir consolar Silvana.
Ela está histérica.


Quando o Expresso do Oriente chegou à estação de Santa Lúcia, em Veneza,
Hermione estava entre os primeiros passageiros a desembarcarem. Foi com a
bagagem diretamente para um beco ao lado da estação e desaparatou para Londres,
levando as jóias de Silvana Lualdi. Sirius ficaria bastante satisfeito.


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