As Quatro



Sábado, 23:30 h. Foi aniversário de umas das milhares primas de Mariana. Ela e sua amiga Carol estavam acabadas de cansaço pois, empolgadas, dançaram e riram até não poder mais. E ainda por cima, sendo a festa não muito longe da casa da Mariana, voltaram a pé. Carol iria passar a noite lá, aproveitando que, excepcionalmente, a mãe, avó e irmã de sua amiga viajaram e liberaram a casa.

Carol e Mary eram amigas praticamente inseparáveis de alguns anos. Unidas sempre, mas cada uma do seu jeito.

Ana Carolina, mais conhecida como Carol, era uma menina normal, na medida do possível, e muito apaixonada por seus amigos. A mais baixinha do grupo adorava tanto os anos 50 e 60, que parecia ter desembarcado de uma máquina do tempo vinda dessa época, usando seu cabelos castanhos presos, na maioria das vezes, com faixinhas de cetim. Todos se divertiam com suas reações diante das situações e com sua forma de contar histórias. Mas sua função no velho círculo de amizades da escola era dar conselhos e apoio às garotas e, eventualmente, aos garotos também. E seu maior hobby era zombar do comportamento explosivo de Mariana (ou Mary, como chamava sua amiga).

Mariana tinha um temperamento difícil, ah, se tinha! Por mais que dissesse que não, bastava passar duas horas com ela para comprovar o quanto se irritava facilmente. Apesar de muito bonita, com sua postura de modelo, seus cabelos anelados e sua cor morena - e ainda por cima inteligente! - Mary arrumava todos os motivos do mundo para reclamar de tudo, inclusive de si mesma. Ainda assim, era uma amiga carinhosa e muito leal.

Naquela noite, tudo parecia normal. Mary reclamava de dor nas costas, dor nas pernas, dor nos calcanhares e dor-de-cotovelo também. Enquanto isso, Carol estava atenta ao clima... sabia que algo estava diferente. Olhou para o céu. A lua estava o mais alto possível e alguns raios de luz escapavam por trás das nuvens espessas que a encobriam.

- ... e ninguém tava merecendo a bermuda daquele garoto, que mais parecia uma samba-canção infantil. Tinha que ver a cara da sua filha, hahaha, a Giselle zoou muito! Se ela fosse sua filha mesmo, eu iria acreditar... A não ser, claro, pela aparência que...

- Como, Mariana? O que que você disse? - perguntou Carol, voltando sua atenção para a amiga desta vez.

- Quê? Você não ouviu nada do que eu disse? - Mary disse, aborrecida.

- Foi mal, mas é que não consigo parar de prestar atenção na lua. Não dá pra ver direito por causa das nuvens, mas ela está diferente, sei lá... Igual, mas diferente...

- Você se esforça em me deixar irritada, né? Pô! Tô aqui falando há meia hora e vem você com esse papo de lua, nuvem... - e fez uma daquelas caretas que ela sabe que a amiga não suporta.

- Cruzes, Mariana! Quando você ficar velha vai ser daquelas bem caquéticas e rabugentas! Pára de reclamar e observa como o clima tá bom hoje... – e inspirou o ar em volta – O cheiro dessas florezinhas, como é o nome delas mesmo?

- Flor de velório. – Mariana respondeu com a cara meio amarrada.

- Damas-da-noite, isso! A mãe da Raquel me disse uma vez... O cheiro delas hoje tá muito forte, não acredito que você não tá sentindo.

- Ih, começou...

- Sério, eu sinto quando alguma coisa está pra acontecer e... - continuou falando como se não ouvisse o que Mariana estava pra dizer.

- Lá vem a história da brisa...

- ...a brisa hoje tá daquele jeito... diferente.

- Ah, Carol! Faz o favor!

- Pô, tô falando sério. A pena é que a lua não apareceu direito hoje, eu queria tanto que isso acontecesse... seria o dia perfeito pra isso. - e olhando pro alto, disse - Poxa, nuvenzinhas! Não sejam más e me deixem ver a lua cheia, toda vez que ela surge, vocês resolvem aparecer e acabar com a visão!

Nesse exato momento, as nuvens foram se afastando para os lados e a lua apareceu todinha, cheia e brilhante.

- Caraca... Valeu aí, nuvenzinhas. - Carol agradeceu, admirada.

- Tá louca mesmo, falando com nuvem... - e puxando a menina pelo braço - Não pára de andar, não, garota. Anda! Quero ver se minha mãe ligar e ninguém estiver em casa pra atender o telefone. E sua mãe também vai te dar uma bronca bonita, viu?

-Não, não... Eu já tinha avisado que a festa ia terminar tarde. - Carol ainda estava impressionada - Nossa, parece até que elas me escutaram, sabia?

- Elas quem?

- Ah... As nuvenzinhas...

- Calma, Carol. - disse Mary irônica, como se estivesse preocupada - Isso é muita Coca-Cola no sangue e sono na cabeça.

- Pô, Mariana! Você é chata-pra-caraca, credo!

- Pára de palhaçada e vambora.

Continuaram andando acelerado. Ao chegarem na pracinha, já bem próximas à casa de Mariana, depararam com uma cena no mínimo curiosa. Várias corujas estavam empoleiradas nos brinquedos e encolhidas em cantinhos escuros, onde só era possível enxergar seus olhinhos brilhantes. As amigas estranharam, óbvio. Corujas no Brasil? Claro que existem, mas não em tamanha quantidade, quanto mais numa área urbana do Rio de Janeiro. Pela primeira vez durante o caminho para casa, Mary parecia ter concordado com Carol, de que havia algo estranho:

- Que que é isso? - ela disse. Tinham parado para observar.

- Sei lá. - mas, recuperando o senso de humor, Carol falou - Daqui a pouco a gente recebe a cartinha... E vai pra Hogwarts... - e riu.

Mariana parecia não ter achado graça.

- De onde saiu isso?

- Ah, sei lá, Mariana. Deixa isso pra lá. Não era você quem estava me apressando? Agora vai ficar bolada também?

Mary saiu do transe e riu, dizendo:

- É, tem razão, a gente tá quase em casa e eu tô louca pra tirar logo esse sapato.

- Então, vamos logo. Só toma cuidado pra não assustar os bichinhos, vai devagar.

- Tá bom, Greenpeace!

Carol tentava andar o mais devagar possível para não assustar as aves e batia em Mariana cada vez que ela ameaçava tentar afugentá-las só para irritar. Para surpresa delas, as corujas simplesmente se deslocaram sutilmente de seus lugares, formando uma pequena passagem. Ao atravessarem a praça, Carol e Mary se olharam ao mesmo tempo e depois para os pássaros, que já tinham voltado às suas posições anteriores.

- Mariana, isso tá macabro, vamos embora logo...

Foram andando muito rápido, quase correndo, até chegarem em casa. Se atiraram no sofá, ofegantes, porém rindo muito. Agora que estavam a salvo, tudo parecia bem hilário e até patético. Aliviadas, foram tomar banho e comeram umas pizzas que a mãe da Mary havia pré-preparado para elas.
Depois de satisfeitas com o lanche, as meninas resolveram ficar conversando um pouco no fresquinho da rua, que estava deserta. Mal sentaram, olharam-se mutuamente e começaram a rir, provando que o sono e mais uma dose de refrigerante estavam fazendo seu efeito eufórico sobre elas. Passada a crise de riso, Carol inspirou bem fundo para recuperar o fôlego. Porém, ao olhar para o lado, viu Mariana estarrecida, os olhos arregalados, a boca meio aberta, olhando para o alto. Perguntou o que estava acontecendo à amiga e olhou para o mesmo ponto que ela. Um bando de corujas estavam sobrevoando ao alto da casa de Mariana e mais algumas se encontravam empoleiradas no telhado. Virando o rosto para os outros lados da rua, notou que nenhuma outra casa tinha o telhado cheio de corujas. Antes que pudessem se dar conta do que estava havendo, uma coruja pousou sobre o braço da Mariana, que a enxotou histericamente e depois puxou Carol pela camisola, entrarando disparada em casa. Já jogada em uma cama improvisada na sala, Carol perguntou confusa:

- Que foi isso? O que tá acontecendo aqui?

- Não... sei... - respondeu a Mary, ainda meio assustada. - Deve ser um distúrbio ecológico, sei lá.

- Igual nos livros do... - Carol disse baixinho para si mesma.

- Quê?

- Nada não, loucura minha...

O telefone tocou e elas deram um pulinho de susto.

- A gente tem que parar com isso, Mariana. - o telefone tocava - Deve ser doideira nossa, só pode, não tem outra explicação... - o telefone ainda tocava e Carol disse impaciente - Anda, Mariana, atende! A casa é sua, pô!
Ela se levantou, mas demorou pra tirar o fone do gancho.

- A-alô? - Mary falou baixinho, quase num sussuro, mas suspirou e recuperou o tom normal ao reconhecer a voz do outro lado da linha. - O-oi... Tudo, tudo bem, sim. Quer falar com ela? Tá, tchau. - e tapando o bocal - Carol, sua mãe.

- Ih, o que será que houve? - ela atendeu - Mãe?

- Oi, filha. - respondeu a mãe de Carol - Porque você não me ligou?

- Porque pensei que você estivesse dormindo. Já são... - ela foi conferir no seu celular - ... 1:30 da manhã!?! O que que você tá fazendo acordada a essa hora?

- Tava na internet. Escuta, eu te liguei porque aconteceu um negócio muito estranho aqui hoje, deixa eu contar. Eu tava mexendo no computador, aí, do nada, entrou uma coisa pela janela e deu de cara com a parede. As nossas cachorras começaram a latir e tentar pegar. Pensei que fosse um pombo, né? Mas depois eu vi que era uma coruja! Carol, você ainda tá aí?

- Ahn... aham, mãe... - a garota entrara em choque.

- Bem, como eu ia dizendo... A coruja parecia filhote, mas ela tem uma força do caramba, tinha que ver a dificuldade pra colocar na caixa de sapato... Amanhã eu vou levá-la na veterinária porque nem sei o que se deve fazer com um bichinho desses... Mas eu tô vendo aqui na internet e parece que isso tá acontecendo em algumas partes do Brasil também... Alguns zoólogos até dizem que é normal, um fenômeno que acontece todo ano nessa mesma época e...

Ao longo da conversa, Carol permaneceu com uma expressão tão aterrorizada que Mariana se levantava a toda hora, perguntando o que estava acontecendo. Depois de alguns minutos de conversa...

- Aham... sei, mãe. Tá, eu te ligo. Tchau.

Ao desligar, Mariana perguntou impacientemente o porquê da cara de Carol.

- Coruja.

- Quê?

- Uma coruja invadiu a casa da minha mãe. Ela falou que tá na internet que isso é um fenômeno normal, que acontece todo ano e tal, mas...

- Mas o quê?

- E essas corujas que estavam aí fora? Não sei, elas parecem adestradas ou alguma coisa assim... Isso tá muito esquis... Aaaahhh!

- Aaahhh!

Não se sabe como, mas uma enorme coruja estava apoiada do lado de fora do basculante da cozinha e deixou cair alguma coisa dentro da pia. Mariana se apressou para fechar o basculante. A coruja a encarou (se é que corujas encaram) por um segundo e levantou vôo. Carol correu para pegar o que estava na pia : eram dois envelopes. Curiosamente, não tinham se molhado na água acumulada da pia. Os dois eram iguais e tinham uma aperência meio oficial, selados cuidadosamente com cera azul e escritos com letras muito floreadas à tinta azul claro. A única diferença entre elas é que cada carta estava endereçada a uma das meninas. Carol ficou examinando aqueles envelopes enquanto Mary reabria o basculante. Ouviu-se o som de muitas asas batendo... parecia que as corujas haviam resolvido ir embora, mas ninguém teve coragem de ir conferir.

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Sábado, 23:30 h.

- Ah, mas a Thaís é muito exigente.

Thaís olhou para o teto como quem diz "Lá vem..."

- Você também é assim, Priscila?

A menina riu e olhou pra cara da Thaís. Tentando ficar séria, disse:

- Não sou bem como a Thaís, Tia. Mas eu procuro escolher a dedo os garotos...

- Há, brincou! - Thaís zombou, arremeçando um travesseiro na amiga - Priscila, fala sério, você escolhe a dedo? Mãe, você precisa ver a foto do namorado dela.

- Quem, o... holandês?

- Ele já é ex-namorado há muito tempo, Thaís.

- E ele era dinamarquês, mãe. - Thaís disse e todas riram muito.

- Ah, mas é tudo igual.

- Ele parece com o Leonardo DiCaprio gordinho. Se lembra quando ele tava meio gordinho, né? Pois é. Igualzinho.

Priscila se dobrava de rir.

- Ah, não fala assim da Priprizinha... - e a Tia se levantou da cama da Thaís, onde estava sentada - O Leonardo DiCaprio até que é bonitinho.

Thaís fez uma cara de nojo e rindo, a Tia saiu do quarto e fechou a porta.
Priscila, ou Prip'z, era uma menina muito vaidosa e adorava usar roupas verdes que, apesar das amigas nunca admitirem, lhe caíam muito bem e combinavam com sua pele clara e cabelos escuros e ondulados. Priscila sempre pareceu mais velha e madura diante das outras amigas. Mas só parecia. Na verdade, era uma garota que se empolgava facilmente com qualquer coisa e arrancava muitas risadas das amigas, principalmente quando o assunto era seu gosto (nada convencional, digamos assim) para garotos. Porém, seu gosto literário e parte do musical eram invejáveis, sem contar a simpatia inegável pelas coisas cultas e chiques.

Já Thaís era uma menina meiga cujo rosto adquiria feições ainda mais infantis quando seus cabelos cacheados estavam presos em trancinhas, como naquela noite. Thathá nunca pensava em assuntos românticos - a menos que fossem alheios - e era considerada a mais inocente neste quesito... mas só nesse quesito. Gozadora de primeira, não perdia a oportunidade de tirar sarro de alguém e odiava ficar por fora dos assuntos, o que a tornava um pouco indiscreta, mesmo que despropositadamente.

As duas garotas também eram amigas muito próximas de Mary e Carol.
Nesse dia, Priscila tinha ido passar a noite na casa da Thaís, pois foram assistir a uma peça no bairro vizinho, o que já era comum. Quando a mãe da Thaís (que, carinhosamente, todas as amigas da menina chamavam de Tia) entrou no quarto da filha, iniciou uma conversa sobre relacionamentos, o que geralmente deixava Thaís com uma expressão hilária de constrangimento e fazia a visita chorar de rir. Ao passo que Pri se recuperava do acesso de risos, Thaís lhe perguntou:

- Falando no dinamarquês... O que aconteceu com ele, hein?
- Como assim?
- Ah, quando ele foi embora e tudo...
- A gente terminou, ué!
- Dã, isso eu sei, né? Eu digo assim, como foi tão fácil, sabe? "Ah, a gente terminou, tchau." E pronto? Poxa, de todos os que você gostou, ele era o que eu mais simpatizava, mesmo nunca tendo conhecido. Tudo bem que ele parece com o Leonardo DiCaprio gordinho, mas... - e começou a rir.

Thaís calou-se abruptamente ao ver uma sombra passando ligeira pela parede.

- O que foi isso? - Thaís perguntou, intrigada.

- Isso o quê?

- O treco que passou pela janela... Deixa pra lá. Já passou.

Só que a sombra cruzou novamente a parede do quarto, e de novo, e de novo. Até que, certa hora, algo parou em frente à janela, tapando os raios lunares que iluminavam fracamente o quarto.

- O que é isso? Cruzes.

- Deve ser um pombo. - e Prip'z acrecentou rapidamente ao ver a cara desconfiada da amiga - Bom, pode ser uma revoada de pombos. Um saco plástico voador. Tempo nublado. - mas ela mesma não conseguiu se convencer das próprias possibilidades que apontara e subiu na cama - Peraí, deixa eu ver o que é aqui atrás da... Ai, meu Deus!

Com o susto, Priscila caiu sentada na cama e o quarto tornou a se iluminar quando seja-lá-o-que estava na janela se afastou com um farfalhar que lembrava um bater de asas.

- São corujas enormes, muito grandes mesmo, Thaís!

- Corujas, aqui?

- Sério! E imensas! Muito grandes!

- Priscila, você não tá exagerando, não? Peraí que eu vou conferir... - e resmungava sussurrando - ...parece até a Mariana... adora aumentar os fatos... corujas, humpft... aposto que não é nada de mais...

E, realmente, ela não encontrou coruja alguma, mas sim dois envelopes bem apoiados no parapeito da janela. Thaís pegou os envelopes, sem compreender como podiam ter parado lá, e olhou pra cima. Viu o que jamais esperava ver um dia e ficou boquiaberta: um bando inigualável de pássaros (corujas!) voando contra a luminosidade da lua cheia que brilhava lá fora.

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