Tlavez...



Chuva... Desde que chegara ali chovia durante todo o tempo. Talvez o céu não fosse tão vazio de significados quanto pensara enquanto assistia às tediosas aulas de adivinhação. Talvez as estrelas tivessem finalmente compreendido o que se passava em seu interior e tudo aquilo não passasse de um ato de simpatia. Mas não fazia muita diferença.
Estava parado diante da imponente janela da biblioteca. A mesma se estendia do chão coberto por tapetes belamente ilustrados com cenas contidas nas antigas histórias de família ao teto cuidadosamente esculpido com espadas envolvidas por ramos dourados. Síruis suspeitava que não eram feitos de ouro verdadeiro, mas sim uma imitação qualquer que servisse para encobrir os tempos difíceis que os matriarcas da família já haviam enfrentado num passado sempre ocultado.
Mas não era isso o que se passava em sua mente naquele momento. Talvez, se questionado sobre o assunto mais tarde, nem ele mesmo pudesse dizer ao certo no que estava pensando. Porém seu olhar fixo em um ponto qualquer do jardim - Poderia ser até mesmo a fonte, quem saberia dizer? – revelava muito mais do que ele mesmo gostaria de saber sobre si.
Não é que não gostasse da mansão. Muito pelo contrário, era um lugar de classe, decorado com todo o bom gosto que uma família que fora educada durante séculos para viver nas rodas da nata social poderia ter acumulado. Belas tapeçarias, móveis de mogno fabricados na França especialmente para ilustrar o lar dos Black, lustres de cristal que pareciam fractais ao serem tocados pela luz, cortinas negras que ajudavam a manter o ambiente sóbrio que tanto apreciavam... Ele adorava aquilo tudo. Se pudesse escolher qualquer lugar onde morar, não escolheria outro.
O que não apreciava eram as pessoas. Fora criado como um Black, por isso aprendera a valorizar o bom gosto, mas isso não o impedira de criar opiniões próprias a respeito do mundo. E sua opinião era que ali moravam pessoas egocêntricas, fúteis, arrogantes e prepotentes. Nada do que a hereditariedade o tenha privado, porém ele também desenvolvera qualidades capazes de superar tais detalhes de sua personalidade. E agora preferia não se lembrar de que ainda pertencia àquele mundo.
Esses sempre foram pontos contraditórios em sua mente, desde que podia se lembrar. E era isso que fazia com que quase se sentisse arrependido de ter escolhido voltar ali. Quase. Mas não se arrependera ainda, ou não conseguira se decidir. O fato era que tinha esperanças de reencontrar ali qualquer lembrança das últimas férias. Algo curioso demais foi não ter conseguido encontrar qualquer resquício que pudesse sugerir o acontecido.
Mas ele já deveria saber. As coisas eram sempre assim quando a envolviam. Porque ela tinha o condão de fazer com que tudo corresse de acordo com a sua vontade, sem se preocupar com as lembranças alheias, porque essas seriam enfraquecidas com o tempo até que, finalmente, fossem completamente esquecidas. Talvez fosse isso o mais sensato a se fazer. Mas ele era Sírius Black e não dava a mínima para a sensatez, embora ainda não houvesse notado esse traço marcante de sua personalidade. E as palavras dela ainda ecoavam em seus ouvidos como se houvessem acabado de ser pronunciadas. Não que tenham sido palavras doces, eram até indiferentes. Mas havia alguma coisa no timbre da sua voz que ele simplesmente não conseguia...
- As lembranças atormentam? – Ele sentiu um estranho arrepio passar pelo seu corpo. Besteira. Ela não teria como saber, afinal de contas. Ele tinha plena consciência de que aquilo era pura dedução e uma flechada dada ao acaso. O que o irritava mesmo era o fato dela ter conseguido acertar o alvo com tamanha perfeição. Superá-lo. Isso era imperdoável!
- E porque atormentariam? – Respondeu virando-se de frente para ela e erguendo uma sobrancelha numa expressão irônica que, embora combinasse perfeitamente com suas feições, não contrastava em nada com seu humor no momento.
- Me diga você, priminho. – E, ele havia notado, ela fizera questão de pronunciar a palavra ‘priminho’ com mais ênfase do que seria necessário. – Porque atormentariam? – Ele não estava muito disposto para aquele tipo de joguinho, mas também não a deixaria vencer tão facilmente. Buscou uma saída mais rápida.
- Algo que muito me surpreende é o fato de você se preocupar em dirigir a palavra a mim. Porque isso agora, Bellatrix, se antes você nunca fez questão de se lembrar do nosso grau de parentesco? – Tudo bem. Aquilo não era exatamente o melhor que poderia fazer, mas a presença dela era um tanto quanto... Incômoda?
- Pode ser... Mas você não sabe, não é? – Detestava aquilo. Nunca a certeza, sempre a dúvida. Até mesmo nas mais acaloradas discussões ela era capaz de sempre manter aquela áurea de mistério. Suspirou. E ela esboçou um, quase imperceptível, sorriso com o canto dos lábios.
- O que faz aqui?
- Eu também moro aqui, lembra-se? – Sim, era verdade. Mas aquele nunca fora um fato de grande relevância.
- Você entendeu o que eu quis dizer.
- Vim buscar um livro do qual preciso. Então te encontrei aqui. – Por um segundo ele pode notar o mesmo brilho estranho que contornara as íris da garota na última conversa civilizada que haviam tido, há alguns meses atrás. Foi então que percebeu que ainda não haviam começado a gritar ofensas um ao outro. Aquilo não acabaria bem. – Deduzi que estivesse refletindo, porque não poderia ver nada por esses vidros embaçados, e resolvi saciar um pouco da curiosidade.
- Inconveniente como sempre.
- Acho que esse é um traço da família. Não concorda?
- Talvez.
Ficaram parados se encarando por alguns minutos após essas palavras. Ela com um pequeno sorriso ainda estampado no canto dos lábios, numa clara exibição de sarcasmo. Ele refletindo sua expressão, porém com um pouco menos de segurança. Chegou a pensar que talvez ela tivesse ficado sem uma resposta boa o bastante e decidira se calar em busca de uma, mas desistiu da idéia logo em seguida. Não importava.
- Não vai pegar seu livro? – Estava provocando, sabia. Mas não perderia a única chance que tivera em tanto tempo de ver o que poderia acontecer.
- Perdi a vontade. – Dizendo isso voltou-se para se sentar numa poltrona mais à frente, de onde ficou encarando-o enquanto brincava com o pingente em ouro branco formando um ‘B’ que pendia de uma delicada corrente em seu pescoço, as unhas impecavelmente pretas deslizando-o de um lado a outro num movimento contínuo. Sabia disso porque aquele colar fora um presente seu. Algo que dera a Bella quando a mesma completava dez anos, antes de ingressarem em Hogwarts, quando, mesmo não sendo amigos, ainda possuíam certa cordialidade sincera entre si. Mas não fora só a cordialidade que se desfizera com o tempo, mas também a sinceridade.
Era uma confirmação. Aquilo definitivamente não acabaria bem. Havia anos que não a via usando aquele colar. E não deixaria escapar tal observação.
- O que houve com a sua vasta coleção de jóias, priminha? – Fez questão de repetir, na pronúncia da palavra ‘priminha’, a ênfase dada por ela. – Tirando a poeira?
- Apenas usando um presente que ganhei há um tempinho. Não acha que está reparando demais? – Bingo! Sim, ele estava reparando demais e ela sabia exatamente o porque.
- Apenas uma observação. Não acha que está se incomodando demais? – ‘Desse jogo dois podem brincar, Bella’, pensou consigo mesmo.
- Incômodo algum, eu gosto de receber atenção. – Fez questão de ilustrar sua frase com um sorriso travesso.
Ele ficou em silêncio. Não tinha o que dizer. Mas também não adiantaria, ele tinha que admitir, ela era melhor que ele. Se encararam durante algum tempo, até o momento em que um elfo doméstico apareceu para avisar que o jantar estava servido.
Bella então se levantou e saiu caminhando tão graciosamente quanto ele podia se lembrar de já ter observado. Mas, antes de desaparecer pela porta em direção à sala de jantar, ela ainda se virou e disse.
- Mais tarde terminamos nossa conversa. – E essas palavras foram seguidas de um beijo jogado para o ar e uma gostosa gargalhada divertida.
Sim. Ele esperaria por isso.

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