Escaravelho



Capitulo 1 - Escaravelho


 


 


Três meses antes.


      


     Minha vida nunca foi fácil... Nem um pouco. Minha mãe morreu quando eu tinha apenas sete anos e meu pai começou a beber desde então. Bebia a ponto de esquecer quem era... E até mesmo a ficar violento. Ele não tinha tempo para mim, pois trabalhava em uma hidroelétrica durante o dia todo e fazia um bico em uma mercearia até as onze horas da noite. Mal nos víamos, meramente aos finais de semana já que ele gostava de beber, assistir futebol e sair com os amigos para beber de novo e jogar poker até altas horas, enquanto fuma e bebe mais ainda. Não, não estou sendo exagerado quando repito tantas vezes a preferência dele por bebida.


     Convenhamos, eu me sentia só. Minha vizinha e minha tia vinham me ajudar durante alguns dias da semana, mas na maioria das vezes eu é que tinha de me virar. Eu lavava, passava e cuidava das minhas roupas que eram de péssima qualidade, pois eu não sabia comprar e meu pai nunca tinha dinheiro para me dar uma vestimenta decente. Morávamos na rua Weston, esquina com a travessa Churchill, num bairro... Não digo pobre, mas bem simplório.


     Nunca reclamei a falta de luxo... Minha casa era simples, possuía apenas dois quartos e uma sala de fronte à cozinha aberta. Os móveis eram o que restaram de quando meu pai e a minha mãe viviam “felizes”. Não me lembro desses tempos... Estão muito distantes para mim agora.  


     E apesar das bebedeiras do meu pai, minha vida era calma. E só. Que atire a primeira pedra quem nunca se sentiu sozinho... Quem nunca olhou para o lado e percebeu que a única companhia era a própria sombra nas horas de dia, e a escuridão durante a noite. Aqueles seres denominados de amigos servem apenas para encher lingüiça, porque estão tão preocupados com os próprios problemas que não há um dedo sequer para nos auxiliar.


     Percebi que tinha que mudar num dia que deveria ser como outro qualquer.


     Foi numa segunda-feira, se não me engano.


     Eu acordei sentindo os raios de sol que transpassavam pelos furos da janela velha do meu quarto. Fiz uma careta desconfortável; Já estava na hora de eu dar um jeito naquilo, nem que fosse colando chiclete velho. Sentei-me aos pés da cama e calcei meus chinelos. Levantei, me dirigindo ao banheiro que ficava no corredor.


     Quando fechei a porta, olhei meu próprio reflexo. Eu tenho dezesseis anos, dezessete em três meses. Senti-me um estranho ao fitar meus cabelos negros escuros e espigados, resistentes a um pente que só eu sei, meus olhos azuis vivos, que no instante estavam mais para mortos, e meu rosto cujos traços de minha mãe predominavam. Nunca fui bonito, ou pelo menos nunca achei, embora minha tia e minha vizinha tendessem a dizer sempre que meu problema era me vestir mal.


     Eu sou alto para minha idade e desengonçado. Que atire a primeira pedra de novo quem nunca ficou um curto espaço de tempo mal acomodado com o tamanho do próprio corpo, minha única diferença era que eu sempre estava mal acomodado com minhas dimensões. Os ombros largos ficavam salientes por baixo das blusas folgadas e meus músculos tendiam a se desenvolver demoradamente, isso quando decidiam se desenvolver. Ultimamente eles estavam até que bem obedientes, mas era porque eu praticava natação no lago próximo de casa.


     Tomei um banho rápido e corri para meu quarto ao perceber as horas, eu estava atrasado para a aula. Olhei para meu armário, sentindo-me menosprezado. Estava uma bagunça, é claro. Escolhi as primeiras peças mais salientes das demais, vestindo-me com agilidade. Era uma calça jeans folgada e com um rasgão no lugar do joelho esquerdo, tive de por um cinto para conseguir fixá-la bem. E pus uma camisa de botões que herdei de meu pai. Acabou ficando folgado, infelizmente. Jacob, meu pai, tinha pelo menos trinta quilos a mais que eu. E desde que começara a beber com freqüência depois da morte de minha mãe, sua barriga também ficou maior. Tive a impressão de que ele está doente quando o vi pela última vez.


       Acostumei-me a desde cedo comer sozinho. Abri as janelas da casa para retirar aquele cheiro de álcool impregnado do final de semana. Como se eu ligasse para ventilação ou meu gosto de moda...


     - Odeio segundas. – Disse para o nada.


     Devo dizer que meu crescimento sempre foi atrasado. Finalmente agora, após anos de pré-adolescência, é que espichei em altura. Ainda não tenho nenhum traço de barba e minha voz acabou de passar por uma transformação absurda, saltando do tom adolescente para o grave. Era estranho falar... Sentia-me envergonhado por causa disso. Não sei por que.


     Atirei a mochila sobre o sofá e abri a geladeira, selecionando uma caixa de leite quase vencida e alguns biscoitos de manteiga feita pela Dette, minha vizinha. Dette sabia cozinhar muito bem e não era a toa que tinha diabetes, ninguém resistia aos doces dela. Devorei rapidamente meu café, mesmo que estivesse sedento por torrada e ovos mexidos.


     Juntei as chaves sobre a mesa circular de almoço e estaqueei, de susto. Meu pai estava parado na porta do quarto. Olhei no relógio de pulso; Ele já deveria ter saído há duas horas para o trabalho. Logo notei que estava bêbado. Era estranho, porque Jacob só bebia aos finais de semana ou durante o começo da noite. Sempre se encontrava sóbrio no dia seguinte e com ressaca, o que tornava o seu humor áspero insuportável.


     Jacob era gordo e barrigudo, usando no instante em que o vi uma blusa aberta na frente que revelava toda sua pança avermelhada, abaixo do peito cabeludo e suado. Tinha a barba por fazer e os cabelos desgrenhados enfeitando seu rosto carrancudo e inchado, acentuado pelos olhos vermelhos e injetados. Seu nariz de gancho era uma coisa que eu dava graças a deus por ter herdado. Ainda não entendia como minha mãe poderia ter se casado com um homem tão... Grotesco.


     Ele largou a garrafa de uísque que carregava, espatifando-a no chão e sujando tudo com álcool. Riu, esfregando a manga na boca para limpar a baba. Percebi logo que ele tinha um olho roxo e o lábio inferior inchado.


     - O que houve com você? – Perguntei com um quê de irritação.


     Sabia que não deveria falar mal, afinal um bêbado era tão burro e irracional quanto um animal.


     - O que tá olhando, idiota? – Questionou ele com arrogância. Eu estava acostumado a isso. – Eu me meti em uma briga, e daí?


     - E daí que é segunda-feira! – Lembrei juntando a mochila sobre o sofá. – Estou saindo... Vê se toma um banho e dá um jeito nessa cara.


     - Olha o jeito como fala comigo, muleque! – Rosnou ele avançando em passos capengas em minha direção.


Recuei com cautela, Jacob gostava de arranjar motivos para me bater. E isso só aconteceu duas vezes... Não viria a se repetir.


     - Você é incompetente! Não trabalha, não paga as suas contas... Irresponsável e mal agradecido... – Gritou Jacob balançando os punhos no ar. O rosto estava tão vermelho quanto um pimentão. – Só sabe reclamar de barriga cheia!


     - Não vou discutir com você, Jacob. Tenho mais o que fazer.


     Dei-lhe as costas, mas ele me puxou pela mochila e atirou no chão tão rápido quanto pude pensar. Vi em seus olhos coléricos que não hesitaria em me dar uma verdadeira sova. Chutei-o com o pé para longe e fiquei de pé a tempo de vê-lo esbarrar no sofá e cair sobre a nossa mesinha de vidro. E ficou imóvel. Assustei-me a princípio, mas vi que seu peito subia e descia. E no instante seguinte começava a roncar.


     Aproximei-me para verificá-lo. A mesinha não havia quebrado, apenas as pernas de metal se entortaram.


     - Que vidro resistente. – Comentei com desinteresse.


     Baixei o olhar e percebi que o vaso de porcelana preferido de minha mãe não tivera tanta sorte. Ele tinha o formato de um elefante nas cores azul e rosa bebe, com adornos dourados. A longa tromba aberta e grossa servia para por as flores e o rabo em “c” para pegá-lo. Porém, naquele instante, o vaso não passava de milhares de cacos.


     Senti uma dor no peito. Mamãe gostava tanto dele... E eu também. Era um das poucas coisas dela que sobrara se não as lembranças. Comecei a juntar os cacos cuidadosamente sobre a palma de minha mão... Se não estivesse tão estraçalhado, dava para colá-lo de novo. Suspirei e joguei tudo dentro de um saco, mas não coloquei fora. Não tive coragem.


     Pensei em por meu pai no quarto e tentei levantá-lo, mas estava pesado demais para que conseguisse sozinho. Larguei-o então sobre o pequeno sofá de dois lugares bege. Dei-lhe as costas e parei quando pisei em algo. Pensando que fosse só mais um caco do vaso, abaixei-me e peguei. Era um retângulo de marfim com um pouco mais de dez centímetros de comprimento. Visualizei-o por longos instantes; Nunca tinha o visto antes. O desenho de um escaravelho em preto com detalhes dourados em alto-relevo me chamou a atenção. Um pequeno símbolo em baixo semelhante a um triangulo, apenas semelhante, pois as duas bases de cima se cruzavam e um risco as dividia no meio, reluzia em prateado abaixo do escaravelho.


     Acho que deveria estar dentro do vaso, por isso associei-o a minha mãe e guardei em meu bolso. Olhei uma última vez para trás e sai.


 


 


     Escola. O âmbito enlouquecedor de qualquer pessoa normal... Transformador de seres inocentes em animais selvagens repletos de hormônios e má educação. Pensei isso por pura inveja, já que em plenos dezessete anos nunca tinha beijado uma garota antes. Eu era desajeitado e não chamava atenção delas. As mulheres sempre acabavam com os populares, bonitos ou que sabiam ter um pingo de moda. Eu não ligava em usar roupas velhas... Não ligava também por ser mais pobre ou nem tão bonito.


     Eu só queria paz.


     Andei o mais discreto possível pelos corredores, ingenuamente é claro. Alguém da minha altura e com as minhas vestes chamaria a atenção de qualquer um. Nunca tive amigos, nunca tive um espaço só meu e nem respeito. Não gostava de falar em sala de aula quando era menor e isso se habituou até hoje. Uma vez ouvi que quem tem boca vai a Roma... Então não arredarei meu pé de casa.


     A aula até que passou rápido. Quando faltava apenas poucos minutos para me ver livre, a professora de literatura apontou em minha direção.


     - Oliver, leia para nós o poema da página trinta e cinco. – Pediu ela calmamente.


     Problemas. Repentinamente, fiquei pálido. Eu, Oliver, com meus dezessete anos, não conseguia ler perante a turma. Todos me olharam de imediato. Não era a primeira vez que acontecia, por isso algumas risadinhas se espalharam pela sala. Como eu me sentava no último lugar, senti que a parede atrás de mim começava a me comprimir.


     - E então? – Questionou a mulher avidamente por baixo dos óclinhos. – Qual é o seu problema?


     - Eu...


     - Ele não sabe ler, professora. – Retrucou um marmanjão lá na frente.


     Todos riram. Eu não ligava que rissem ou o que fosse, eu só queria ir embora. Me fiz de indiferente e ignorei os demais. Baixei os olhos para as páginas pálidas do livro e foi como se as palavras fugissem dos meus olhos... Aquilo sempre acontecia na frente dos outros. Semicerrei os olhos, incomodado.


     - He-Helo.. ísia. Heloísia. – Li vagarosamente.


     Me senti um idiota lendo daquela forma. Mais risadas.


     - Você está com algum problema, garoto?


     Encarei a professora com um quê de dúvida.


     - Eu não consigo ler isso...


     - Falta um ano para você concluir o ensino médio e não consegue ler um poema chamado heloísia? – Questionou ela cruelmente. Eu não a culpava por tanta amargura, acredito que dar aulas em uma escola pública repleta de adolescentes que iam contra a sua religião deveria ser fatídico. Resumi-me apenas a sorrir, desdenhoso. – Na hora de namorar todos vocês sabem ler, dançar, cantar e o que seja, não?


     - Oliver nunca esteve com uma mulher, professora. Ele namora tão bem quanto lê. – Zombou Charlie.


     Charlie era o garoto engomado que adorava rir dos outros. Não era rico, muito menos bonito, mas sabia encantar as garotas da escola como ninguém. Fiquei com um pouco de raiva, quem aquele imbecil pensava que era para falar de mim. Apenas meneei a cabeça, sentindo os olhares de zombaria pesar sobre mim. Meu estômago embolou um pouco.


     - Esse garoto não faz nada além de andar por ai que nem um mongolóide. – Comentou uma garota que não vi.


     Baixei a cabeça. O que mais eu, um anormal, poderia fazer?


     A professora assistiu sem intervir. No mínimo ela pensava que eu era um alienado na sociedade que merecia sofrer para pagar seu sofrimento. No entanto, todos ali eram hipócritas. Olhei para meus braços estirados sobre a mesa e o texto cujas letras encontravam-se paradas no instante. Minhas mãos grandalhonas eram enormes em comparação ao material que eu usava. Odiava ser alto, odiava ser zombado... Odiado por ter aquela vida.


     - Ele vai chorar. – Riu outro aluno.


     - Vai um lenço ai, maluco? – Gritou outro lá da ponta.


     Comecei a contar até dez. Pensei no vaso quebrado, no meu pai caído sobre a mesinha... O sinal tocou, mas não me senti aliviado. Levantei e comecei a juntar minhas coisas. Acabei derrubando meu lápis sem querer... Abaixei-me para juntá-lo, no mesmo instante alguém pisou em cima da minha mão. Só não percebi de imediato porque vi um pequeno inseto perambulando próximo ao pé da minha cadeira. Era uma barata? Arqueei as sobrancelhas de surpresa; Era um escaravelho negro. Ele desapareceu ao entrar por uma fissura no rodapé.


     Puxei minha mão e fiquei de pé. Eu era, no mínimo, uns dez centímetros maiores do que Charlie. Mais largo e robusto, mas aquele salafrário tinha uma gangue que me desmontaria inteiro se estivesse unida. Quatro de seus amigos estavam atrás dele no instante.


     - Você é retardado mesmo, não é? Qual é a sua doença?


     Fiquei quieto e continuei guardando minhas coisas. Minha mãe me disse e eu nunca esqueci: A violência não leva a lugar nenhum. Por isso nunca revidei, briguei ou optei por me vingar. Eu gosto da paz... Gosto de coisas que me façam bem.


     - Ele nem ouve... É um alienado. – Retrucou outro.


     Pus a mochila nas costas e fitei o teto. Quantas vezes ainda ouviria aquilo em minha vida? Não importava, nada importava. Só queria ir para a casa.


     - Eu não gosto de você. – Disse Charle com veemência quando me virei para ele, pois estava em meu caminho para a saída.


     - Eu não ligo para o que você pensa. – Falei, por fim. Minha voz grave soou oca e distante, contrastando com a dele, que era ainda infantil e arrogante.


     O garoto arqueou as sobrancelhas, surpreso pela minha resposta.


     - Saia da minha frente, eu quero ir embora. – Não sei por que disse isso, apenas saiu de minha boca.


     Fiquei um segundo refletindo. Até que eu tinha gostado do tom daquilo...


     - Quem você pensa que é para falar assim comigo, seu lixo? Pedaço de lixo! Debilóide! Tenho nojo de você e... Aonde você compra suas roupas?


     - Ele deve pegar naquelas doações de supermercado para abrigos infantis. – Zombou um dos quatro.


     Uma veia vincou na minha testa. Eu não estava gostando daquilo... Normalmente eles sempre riam e me deixavam em paz, logo hoje que eu não estava com saco para aquilo.


     - O que eu fiz para vocês? – Questionei. Eu merecia uma resposta... Uma útil. Mas o que veio a seguir me tirou fora do controle.


     - Porque... Porque eu não vou com a sua cara. Com o jeito que você se veste... Com o jeito que você é. – Resmungou Charlie. – E porque eu to afim.


     Aquela foi a gota da água. Ergui minha mão e agarrei seu pescoço. A raiva me engoliu por inteiro, devorando meu íntimo mais guardado. Eu sempre engoli sapos... Sempre aceitei que rissem de mim. Não me contive dessa vez. Arrastei-o pelo meu caminho, derrubando cadeiras e mesas. Alguns alunos que ainda conversavam na sala pararam para assistir. Eu parecia um touro enfurecido; Prestes a amassar o pedaço de humano em minha frente. Charlie tentou se livrar de minhas mãos, mas eu era mais forte. Sempre fui... Só nunca apelei para a minha violência.


     - Cale a boca! CALE A BOCA! – Urrei ao empurrá-lo com força contra o quatro. – Você não me conhece! Não sabe do que eu sou capaz!


     O empurrei com força mais uma vez. Eu tinha raiva... Ser humilhado não é bom. A sensação de desprezo e ódio dos outros sempre cravava uma faca em mim.


     - Solta ele, Oliver! – Gritou uma guria atrás de mim.


     O larguei e me virei para ela. Era uma garota mirrada... A mesma que me chamara de mongolóide.


     - O que você quer de mim? Eihn? Rir não basta?


     Ela se calou, assustada. Vi medo em seu olhar.


     - Ele não está se mexendo. – Informou um dos amigos de Charlie.


     Quando me virei de novo para Charlie, percebi que ele estava caído e imóvel no chão, numa posição molenga. Não percebi o quão forte eu o havia pegado.


      - E nem está respirando! – Confirmou uma colega sua.


     Afastei-me, assustado. Toda a minha raiva desapareceu e tornou-se medo, depois arrependimento. Apenas me dirigi rapidamente a saída, sem conseguir olhar para trás. Logo eu... Logo eu um assassino?


 


 


 


 

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