O Revelar do Medo



A galeria estava vazia, a não ser por dois garçons que juntavam as taças, quando Susan resolveu sentar em uma cadeira fofa para ver se conseguia se livrar de todo o álcool que havia colocado para dentro do corpo. Sua cabeça rodava, mas ela ainda se mantinha consciente. Basílio há muito havia ido embora e Herriett deixara com ela um número de telefone. Dino e Lina não haviam aparecido, mas Susan ainda se mantinha dentro da galeria, caso eles aparecessem.


Seu quadro parecia sorrir para ela, enquanto ela contemplava toda a magnitude do quadro. Os olhos pedintes e os lábios rosados... Os braços perfeitamente torneados debaixo da blusa transparente... Os seios fartos, escondidos pelos cabelos... Tudo bem que a maior parte dos efeitos de transparência e veias arroxeadas havia sido feita por tecnologia, mas Susan sabia que possuía todas aquelas qualidades.


- Susan! – Ela ouviu a voz de Dino lhe chamar.


- Dino? – Perguntou, ainda vendo as coisas demorarem a tomar forma quando girava muito rápido a cabeça. – Pensei que você não viria.


- Eu tive um contratempo.


- Meu retrato. – Ela ergueu o dedo, apontando para a parede leste.


O olhar de Dino demorou-se em cada detalhe da fotografia, a deixando com tempo suficiente para que ela bebesse mais alguns goles pesados de uma bebida diferente que estava por sobre a mesa de canto, perto de onde estava sentada. Era algo que lhe fazia enxergar as coisas ainda mais tensas, mas ainda assim lhe causava um formigamento pelo corpo.


- Belo retrato. – Ele disse, finalmente, virando para ela.


- Todos me disseram a mesma coisa.


- Então é verdade.


Susan deixou que o rosto escorregasse das mãos e caísse na mesa. O golpe fez um barulho surdo, mas mesmo assim os garçons olharam na direção dela, preocupados. Dino segurou seu rosto, também preocupado.


- Tudo bem?


- Doeu. – Ela reclamou, levantando-se e praticamente correndo até o banheiro. Tinha certeza de que ali estaria um belo roxo lhe esperando, mas ao chegar à frente do espelho, apenas o que sentia era a dor causada pelo machucado e uma pele lisa e perfeita onde ele deveria estar. A porta do banheiro bateu e Dino adentrou, correndo até o espelho.


- Tudo bem?


- Nada de marcas... - Sussurrou, fechando os olhos ao encostar-se na pia. Seus batimentos cardíacos estavam aumentando em uma velocidade que parecia incontrolável. Ao abrir os olhos, soube do que se tratava.


As mãos de Dino avançavam até sua cabeça, enquanto o corpo dele se aproximava do seu, num específico interesse médico. Ele prestava atenção dobrada no lugar onde deveria estar um belo machucado, mexendo demoradamente perto do corpo de Susan. Os batimentos estavam aumentando mais ainda. Ela só via uma solução.


Seus braços passaram por entre os dele, chegando assim, em seu pescoço com uma rapidez surpreendente. Ela deu um pulinho, tão rápido quanto, e se colocou sentada na pia com as pernas envolvendo devagar o corpo dele. Dino estava estático, as mãos desceram devagar até que não estivessem em contato com a pele e nem com o corpo dela. Porém, o seu estava preso.


- Susan... – Ele alertou.


- O que? – Ela perguntou, avançando até os lábios dele. – Se não quiser fazer nada, nem precisa se mexer... Eu faço tudo sozinha...


Sua boca avançou até que ela conseguisse tocar os lábios dele. Macios... Quentes... Tão desejados por ela durante tanto tempo, agora estavam ao alcance. Dino não estava se mexendo, mas seus lábios correspondiam na mesma intensidade que os dela. Susan sentiu-se segura para deixar que suas mãos escorregassem pelo peito dele, chegando sorrateiras até o zíper dos jeans escuros.


A porta do banheiro se abriu com um estalo quando Susan saiu de dentro, levando Dino pela mão. Seus cabelos já não estavam presos e as roupas do rapaz estavam amassadas, mas mesmo assim, ela importava a energia existente em seu quadro para o lugar.


Ela virou-se para o rapaz, para beijar-lhe o rosto antes que estivessem à vista dos garçons, mas ao fazê-lo deu-se de frente com uma bandeja de taças de cristal recém limpas. Dino não estava atrás dela, ele havia parado para que um garçom desavisado passasse com uma bandeja crivada de taças brilhantes. O barulho de cristal quebrando foi tão agudo que, além de tudo, os ouvidos de Susan doeram. Seu rosto havia colidido diretamente com as taças, provocando assim, como se imaginaria diversos cortes e machucados.


Ela havia caído deitada de costas no chão, coberta pelas taças quebradas.


- Susan! – Gritou Dino, afastando o garçom e correndo até ela.


- Tudo bem! – Ela exclamou, num sussurro, levantando-se do chão. O sangue estava espalhado pelo seu rosto e a dor que lhe atingia era ainda maior do que a dor do machucado em sua cabeça pela batida. O sangue cobria-lhe parte dos cabelos.


Um dos garçons trazia um pedaço de tecido mal cheiroso molhado, para que pudessem limpar o sangue e afastar os pedaços de vidro, que aparentemente, haviam entrado nos cortes. Porém, a surpresa tomou conta de seus rostos quando Dino limpou os prováveis machucados do sangue vermelho escuro.


- O que foi? – Susan quis saber.


- Você não está machucada...


- Como não? – Ela levantou-se do chão, buscando um dos grandes espelhos da galeria que ficavam muito próximos à parede leste. – Eu acabei de quebrar taças com o meu rosto!


Ela parou-se em frente ao espelho, de onde conseguia enxergar perfeitamente a parede que expunha sua fotografia emoldurada. Ela não se deteve olhando a obra de Basílio, já que ganhara toda sua noite a observá-la. Mas deteve-se a analisar seu rosto. A pele continuava tão lisa e perfeita como quando ela se olhara no espelho do banheiro feminino.


- Estranho. – Sussurrou para si mesma, erguendo os olhos para a fotografia.


Seu corpo explodiu em choques quando ela conseguiu assimilar o que havia visto. Continuou parada no mesmo lugar, mas seu coração parecia ter saído de seu peito e sua alma estava inquieta. Sua fotografia não era mais a mesma. Havia coisas diferentes. Coisas extremamente diferentes daquelas nas quais Basílio havia trabalhado.


- Tudo bem com vo...


- Fique aí! – Ela gritou, antes que Dino pudesse conseguir enxergar sua fotografia. – Você pode conseguir mais toalhas com os garçons, por favor? Eu vou... – Ela parou para pensar um pouco. – Eu vou ficar aqui esperando.


Dino apertou as sobrancelhas. Será que ele cairia tão fácil no plano dela?


- Tudo bem. – Ele disse, afastando em direção aos fundos da galeria.


Susan ouviu os passos se afastarem e mal teve tempo de tirar os sapatos e amarrá-los na cintura do vestido, para que pudesse correr. O retrato não podia ser visto por mais ninguém. Deveria ser tirado dali. E graças a algum descuido, ela conseguiu tirá-lo da parede, sem que nenhum alarme disparasse. As câmeras de seguranças estavam desligadas e os guardas não estavam parados na porta de saída da galeria.


- Grande descuido. – Sussurrou, enquanto virava a esquina, rumando para sua casa.


O quadro estava coberto com um grande pedaço da cortina que o entroncado dono puxara. Ela havia rasgado um bom pedaço para que pudesse cobrir o quadro. Um pedido como o que ela fizera não deveria de jeito nenhum ser atendido, mas se os deuses a atenderam foi porque havia um plano especifico para ela.


Não pode deixar de agradecer. Mesmo que o tal plano envolvesse a sinistra condição de obedecer ao pedido dela. Por mais incrível que pudesse parecer, o machucado em sua testa e os cortes em seu rosto não apareceram em seu corpo porque seu pedido havia sido acatado. Daquele momento em diante, sua aparência continuaria como estava.


Ela não conseguia se sentir culpada, mesmo que quem viesse a sofrer com a velhice e a falta de beleza por qualquer motivo, fosse sua fotografia emoldurada. Agora roubada de uma galeria.

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