Discernimento



“Minha visão estava turva, e parecia que alguém passara um filtro vermelho pelos meus olhos.

Tudo estava mais colorido por mais que eu não distinguisse claramente um objeto de outro.

Eram cores vibrantes, escuras, indistintas e desagradáveis. Formavam rastros nuvens, formas estranhas, e às vezes prendiam minha atenção. Foi quando eu o vi. Um monstro vermelho sangue, dentes a mostra e olhos verdes como esmeralda. Um lobo. Seu pelo se eriçava, e ele fitava uma cor em especial, que ainda não havia me chamado a atenção. Ela formava um rastro fino de cor prateada e azul celeste. Quando meu olhar tocou naquela cor, tão vibrante, tão familiar e reconfortante, eu senti-me desesperadamente atraído por aquela entidade. E a criatura também. Não me importei, e comecei a correr ao seu lado. Minhas passadas pareceram três vezes o tamanho de minhas pernas e atravessei a sala em um salto objetivo.

Desci as escadas e arrebentei a porta. O lobo estava junto a mim. Ignorei-o.

Quando eu vi-a, ela estava nos fitando apavorada, varinha e riste. Uma lágrima caiu de seu rosto. Pavor? Compreensão? Só o que eu lembro daquele momento foi que seus braços penderam em mais pura aceitação. A aura que a circundava também era prateada, quase branca. Incrível de se olhar..

Seu cabelo era dourado, e caia sobre seus ombros. Ela tinha o corpo esguio e era a mulher mais bela que eu já vira na minha vida. Me parecia que eu sabia seu nome, mas ele nunca me chegava à boca. Quando eu tentei chamá-la pelo nome, um rosnado do lobo abafou minha voz.

Senti profundo desespero, e a súbita necessidade de me por entre a mulher e o lobo.

Num impulso, talvez bobo, corri até ela para protegê-la. Estendi o braço à minha frente, mas fui tardo. Aquela mão imensa com quatro garras atingiu seu rosto, que se torceu em uma careta de dor antes de desfigurar-se.

Seu corpo caiu inerte, sem vida. O sangue se transformou em uma poça em menos de um minuto.

Me virei. Não pude ver seu rosto. Não queria. Uma lágrima imensa caiu de meu rosto – uma gota grande demais.

Eu não fora capaz de salvar aquela pessoa fascinante, e isso me destruía. E agora minha mão estava suja de sangue.

Por que raios?

Olhei para minhas mãos. Eram na verdade duas patas, com garras imensas.

Foi um choque de realidade. O nome da mulher era Fleur...

E eu era o monstro.”


E eu abri meus olhos. Minhas pernas se torciam uma sobre a outra e meu tronco se inclinava em ângulos impossíveis. Minha pele na madeira fria e o vendo vindo de uma fresta na parede eram apenas algumas de minhas percepções.

Meu coração palpitava, e eu estava encharcado de suor, um suor frio, de puro pânico.

Abri meus olhos, e enquanto dolorosamente repassava meu sonho, comecei a ofegar.

Mas fui tomado momentaneamente por outro pensamento. Quem me despira?

Hati?

Não. Por sorte ele continuava morto. Por algum motivo, ri da cena e esfreguei a mão o rosto para me despertar totalmente. Senti algo frio e pegajoso, e gritei.

Sangue. MERDA, até que parte das minhas lembranças o real se misturava com o imaginário? Não queria esperar nem mais um segundo para riscar a linha tênue que afirmaria minha sanidade. Saí correndo porta a fora daquela casa – a porta estava em pedaços, derrubada, estilhaçada – e cheguei àquela rua fria. Estava ali. Uma poça de sangue que confirmava o meu sonho. Fleur, morta.

Mas, o corpo? Onde?

-AAAH! – Gritou uma mulher que passava pela rua, apontando para o pelado sujo de sangue. A razão congelou meu coração e corri. Fui para aquele quarto de madeira podre, só agora notando a luz ofuscante do sol, que entrava por uma janela.

Fui para o único quarto que eu não havia explorado. Era um closet, repleto daquelas mantas que Hati usava e calças furiosamente negra.s E acredite, “furiosamente” é a melhor palavra para incrementar a descrição daquela vestimenta. Vesti com folga – Hati era trezentas vezes maior e mais largo que eu –, e saí do closet (N/A: O Bill em el armário tiene ganas de salir (8)).

Procurei minha varinha por toda a parte, e a achei atrás de alguns escombros de parede, pegando-a. Olhei para os lados cautelosamente, e encontrei a faca de prata e o pergaminho que dizia “Faça uma última boa ação, acabe com o pesadelo”, e os enfiei no bolso também.

Me preparei para aparatar e prendi a respiração.

Se policiais ou aurores viessem até aqui, viriam Hati.

Eu não sei por que eu não queria que eles tirassem o corpo de Hati dali. Talvez fosse algum tipo de fixação, mas eu fui decidido.

Com imensa dificuldade ergui o corpo daquele brutamonte. Pus nos meus ombros, me curvando quase completamente, e girei.

Baque.

Apareci no refúgio dos rochedos, e me joguei no canto mais escuro possível.

Às vezes nos momentos mais críticos de nossa vida, nos agarramos à um pequeno fio de sanidade com todas as nossas forças, mas aquilo acaba se tornando uma ilusão tão grande ou maior do que a que tentamos dissipar.

De qualquer maneira, foi o que eu fiz.

Às vezes olhava para o corpo de Hati, na esperança de se mover, ou de me atacar de repente. Ou de me dar a mão e irmos de encontro a Greyback, agora tanto fazia. Fleur estava morta. Eu matara Fleur!

Recusara-me a chorar até agora. É claro que isso era devido a meu estado de choque.

Levantei a manta até a barriga, e passei a mão sobre ela. Ali estavam, quatro cicatrizes finas e arroxeadas. Agora eu era um lobisomem. Minha vida havia acabado oficialmente.

Mas eu tinha um último desejo. Dois.

Falar com minha família, e recuperar o corpo de Fleur.

Me levantei, ainda absorto em pensamentos, e aparatei.


A Toca cheirava a calmaria, como se nada tivesse acontecido no último dia. Os gnomos estavam lá, a macieira estava lá, e as janelas já estavam abertas, vivas.

Sorrateiramente, entrei pela porta da cozinha. Não tinha ninguém lá.

Subi as escadas silenciosamente, e entrei no meu quarto.

Desabei.

Por que minha mente insistia em me pregar peças? Por que eu continuava com as minhas ilusões, e vendo só o que eu queria ver? Essa era a pior tortura possível, de certeza!

Fleur não estava deitada na minha cama, dormindo calmamente. Não podia, ela estava morta. Eu arranhara seu rosto, eu partira seu pescoço! Noite passada ainda chorara sua morte!

-Bill? Bill! Bill, Bill, Bill, Bill! – Gritou Fleur.

-Cale a boca. Você não é real!

-Bill!

-Saia do meu quarto, você não existe. Saia da minha cabeça!

Eu senti seus braços me envolvendo, e seu choro inconsistente. Seu cheiro inconfundível, e seus lábios nos meus. Suas mãos nas minhas costas e sua respiração ansiosa.

Ela era real.

Sem hesitar, tirei a manta que cobria meu corpo, peguei Fleur no colo e a joguei na cama. Me deitei por cima dela, beijando-a carinhosamente. Agora via seu rosto, e aquele momento não podia ser mais concreto, mais verdadeiro.

Senti seu suor, suas arfadas desesperadas, e suas unhas nas minhas costas. Senti nossos rostos ocasionalmente se encontrando, e seus lábios em minha orelha, sussurrando que me amava, e que tudo ficaria bem.

Eu não me importava se tudo fosse ficar bem, ou se o mundo acabasse naquele instante. Eu me senti o homem mais feliz do mundo, e era isso que me importava, mesmo que o sentimento houvesse durado um segundo.

Quando finalmente me joguei ao seu lado, cansado, passei a mão pelo seu corpo.

Nenhum ferimento, nada.

-Onde você esteve? – Perguntou Fleur.

-Eu tive uma série de complicações com Hati. – Disse. Ela arregalou os olhos e eu a beijei, a acalmado. – E você, onde esteve? Quando eu saí, não lhe encontrei. Pensei que estivesse... – Minha voz morreu.

-Pensei o mesme de você. – Disse, mas não mostrou nenhum sentimento. Como se ela já houvesse esgotado todo seu estoque de tristeza. – Havia um feitiço muito forrte naquela casa. Eu tentei entrrar, não consegui. Quatrro horras, Bill, até que eu finalment vim até A Toca alerrtar seus pais. Eles estõn no ministerrio agora.

-Acho que você fez bem, apesar de tudo. – Disse, suspirando.

-Nenhuma pista sobre Victoire?

-Não. Ainda não sei onde ela está.

-Você está ferride?

-Não. – Menti.

-Parra onde vamos agorra?

Sabia que andar às cegas não era uma boa opção, mas era a única que tínhamos. Mas eu já me ferira demais, e por mais que a idéia de ter matado Fleur tivesse sido criada em minha mente, sabia que era uma possibilidade dadas as circunstâncias.

Eu não queria dar as buscas por Victoire como infundadas, ou como inúteis. Mas novamente, que opção eu tinha? O que eu podia fazer?

Podia pelo menos assegurar a segurança daqueles que restavam.

E isso significava mantê-los o mais longe de mim possível.

-Fleur. Você não vai comigo.

-Todos os seus esforrços já se mostrraram infundados quando o assunte é me manterr longe de você.

-Pelo amor de Deus, Fleur, deixe de ser uma criança mimada uma vez na vida e me escute! – Disse. Sabia que de todas as besteiras que eu já havia falado, aquela era a mais falsa e dura. Mas necessária. Fleur baixou os olhos e me ouviu. –Não é mais uma questão de eu temer ou não por sua companhia, mas sim de querer ou não sua companhia. Você se tornou um empecilho, alguém com que tenho que me preocupar quando tenho coisas mais importantes a tratar! Eu não consigo cuidar de mim, de você e de Victoire ao mesmo tempo, é demais para mim.

Ela me encarou por um bom tempo, e assentiu. Ninguém nunca entendeu o quanto aquelas palavras torceram meu coração. Esmagaram-no, estilhaçaram-no. Só consigo imaginar o efeito que surtiu em Fleur. Era pareceu prestes a desabar, parecia querer morrer.

-Fleur, olha pra mim.

Ela levantou aqueles olhos marejados, e repletos de dor.

-Me prometa, que você vai pra casa de sua mãe. Me prometa que você vai ficar lá até o dia em que eu voltar com a nossa filha.

-S-sim.

Esperei do fundo do coração que ela soubesse que eu estava mentindo sobre não querer sua companhia. Tudo o que eu queria na vida era ter ela ao meu lado, mas aquilo já era impossível. Era pressão emocional demais para mim.

Me vesti de novo, e olhei para trás. Ela ficou deitada, virada de costas para mim.

-Então adeus.

-Adeus. – Foi sua resposta.

Fechei a porta atrás de mim, e me encostei na parede, respirando fundo várias vezes.

Lágrimas, lágrimas, lágrimas! De onde elas surgiam? Quando você menos espera elas já estão em seu queixo, molhando o chão, suas roupas.

Solucei, e subi mais um lance de escadas. Abri a porta do quarto de Ron, e ele se acordou alarmado, abrindo a boca várias vezes antes de conseguir falar:

-Bill?

-Sim, olha só, eu preciso pedir algumas coisas para você.

-Claro, Fleur sabe que você está aqui? Espere até mamãe chegar, estávamos todos tão preocupados!

-Sim, Fleur sabe, e não, mamãe não vai saber que eu estive aqui.

-Por que?

-Olhe só. Eu preciso de duas mudas de roupas suas.

-C-claro. – Ele se inclinou para dentro de seu guarda roupa e me deu o que eu pedi.

-E quero que você garanta que Fleur vá para a França. Quero que você aparate com ela até a casa dos pais dela, e só parta quando tiver certeza que ela fique por lá.

-Claro, eu faço isso. – Disse Ron, confuso.

-Obrigado, maninho. – Disse, sorrindo. – A gente se vê.

-Você vai ficar bem? – Perguntou, e de repente ele pareceu tão frágil, tão quebradiço. Sua voz soou chorosa e entrecortada, e eu o abracei forte.

-Claro que vou. – Sussurrei. – Pode levar um tempo, mas você vai me ver de novo.

-Me deixa ir com você. Você pode pedir pro Percy fazer tudo aquilo pela Fleur.

-Não, Ron.

-Pelo amor de Deus, Bill. Eu já passei por tantas aventuras quanto você. Eu quero te ajudar.

Me afastei dele, e dei um tapinha carinhoso em seu rosto. – Muito obrigado, Ron. Agradeço mesmo pela sua coragem, mas isso é algo que eu prefiro fazer sozinho. Preciso fazer sozinho.

-Mande notícias, pelo menos.

-Vou fazer isso. – Respondi. Sem mesmo sair do quarto, girei meu corpo e aparatei. Mas desta vez minha passagem pelo refúgio dos rochedos foi bem mais rápido. Peguei o corpo de Hati e aparatei para o Chalé das Conchas, ingressando na época mais obscura de minha vida.

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