Vida Itinerante



A viajem com os ciganos demorou uma semana. Megan nunca percebera que a floresta negra era tão grande até ter de a percorrer. Ela viajou na  caravana com a mulher que falara com eles no primeiro dia e o irmão desta. Chamavam-se Nadja e Raoul. Nadja era equilibrista, o que Meg não  percebeu ao certo o que significava até ver um dos espectáculos de treino do grupo. Aí, ela ficara fascinada, pensando que magia nenhuma igualava o  que Nadja era capaz de fazer com uma corda e um arco. Raoul era leitor de sinas. Ele lera a de Nina e Jean-Paul no dia antes de chegarem a Le Charlemaine (Nadja convencera o chefe da caravana, Hassan, a fazer um desvio do caminho e a deixar as crianças entregues. Eles tinham contado a  história quase toda, para grande frustração de Meg, que aprendera a não confiar facilmente nas pessoas. Nina e Jean-Paul tinham omitido toda a parte  da magia, e dito apenas que tinham sido raptados por pessoas más. Acrescentaram também que Meg não tinha para onde ir, visto ter perdido os pais  (Megan nunca dera detalhes exactos sobre esse acontecimento, nem sobre a sua família). Os saltimbancos tinham mostrado indignação ao escutar a  história, e antes que Megan se pudesse dar conta do que fizera, ela já tinha aceite o convite dos Romani para ficar com eles o tempo que quisesse.  Disseram que levariam as crianças até Le Charlemaine, mas que estas não deviam revelar o papel destes no que acontecera. As pessoas desconfiavam  naturalmente de gente como eles, disseram, e ninguém do grupo queria problemas.
Foi ao escutar aquilo que Megan entendeu que talvez não fosse tão má ideia permanecer com aquelas pessoas. Eles certamente eram sensatos nesse  ponto.
No dia seguinte, deixaram Nina e Jean-Paul na entrada da cidade. Nina abraçara Meg antes de se ir embora, mas ela sentira tensão no seu abraço. As  coisas entre elas não eram as mesmas depois daquilo que Nina a tinha visto fazer, e era tarde demais para remediar. Megan ficou a vê-los partir, sentada  nos degraus da caravana.
Saltou ao sentir uma mão nas suas costas.
Virou-se para ver Raoul a olhar para ela. Começou a recuar, mas o homem fez-lhe um gesto para ficar onde estava e gritou uma palavra em romani para  alguém atrás da caravana. Depois de alguns segundos apareceu Nadja. Raoul disse-lhe qualquer coisa em voz baixa, e ela acenou.
- Ele quer saber se pode ver a tua mão. - Traduziu Nadja. Meg pestanejou e olhou para Raoul. - Ele é dotado. Consegue saber o futuro de uma pessoa  através das linhas da palma.
Megan hesitou. Não sabia bem se queria que Raoul visse o seu futuro. Acabou por decidir que não faria mal se ela soubesse também, e estendeu o  braço. O homem tomou a sua mão na dele e examinou-a longamente.
- Ahn. - Disse, após alguns instantes, e começou a falar rapidamente. Nadja escutou-o com atenção, depois do que repetiu a Meg:
- Ele diz que tiveste muita dor na tua vida, mais do que uma criança, qualquer ser humano, deve sofrer. Diz também que - ela hesitou, escutando Raoul  antes de continuar, pouco à vontade - ...ele diz que tiraste vidas antes, e que voltarás a tirá-las, algumas para dar a vida a quem está morto. - O olhar que  ela lançou ao irmão indicou a Meg que ela o achava doido. A menina, essa, sentia-se desconfortável. Como é que Raoul adivinhara que ela já matara era  algo que não adivinhava.
- Ele também diz que tens poder. Que és a mais poderosa de entre os teus, e que te será difícil encontrar quem te iguale. Mas vais fazê-lo, e quando o  encontrares...- Ela tornou a olhar para Raoul, que ainda falava, apresado. - Saberás, porque ambos falam língua de serpente, e apesar de o sangue vir do  mesmo ele é diferente, descendentes da cobra não significa parentes. - Agora Nadja parecia confusa, enquanto que Raoul encarava a menina com  intensidade. - Creio que esta última parte é profética, por isso não a deves levar à letra. Língua de serpente, por exemplo, deve ser apenas uma metáfora  para...
- Não é. - Interrompeu Megan, sem saber porque o fez. - É para ser levado à letra. Eu consigo falar com cobras!
Esperou para ver a reacção. Nadja susteve a respiração e disse algo a Raoul, que acenou.
- Ele diz que já imaginava algo assim. - Murmurou ela. - Mas, e lamento se te ofendo, eu não acredito sem ver. Podes vir comigo?
Megan balançou a cabeça e seguiu-a em direcção a uma das caravanas. Ela reconheceu-a como sendo a de Ellias, o treinador de animais. Nadja  deixou-a subir os degraus primeiro, e Megan entrou num espaço apertado que cheirava a dejectos e a feno. Em jaulas ou caixotes com buracos  encontravam-se vários animais exóticos. Nadja trocou algumas frases com Ellias, e tirou um cesto de vime de um dos cantos.
- Encontramos esta menina na floresta, há uns dias atrás. - Sussurrou, obrigando Meg a aproximar o rosto do dela para ouvir. - É extremamente  venenosa, por isso espero mesmo que não estejas a mentir, criança.
- Eu não estou a mentir. - Respondeu Megan, calmamente. Ela sorriu, ao reconhecer o sibilar fraco que saía do cesto, formando palavras. - Mas antes  que o abra, eu posso dizer-lhe o que está aí dentro. Uma serpente imperial amarela e negra com um metro de comprimento. Ela chama-se Kazeila. -  Riu-se ao ver o espanto no rosto de Nadja. - Eu já a conheço. Somos amigas há algum tempo.
Sem pedir autorização, tirou o cesto das mãos da cigana e abriu-o, enfiando os dedos nele. Retirou a cobra do seu interior, ignorando quando Nadja  recuou, e acariciou-a.
Olá outra vez, Kazeila. - Murmurou. Se o que tivesse nas mãos fosse um gato e não uma cobra, juraria que esta ronronara.
Jovem messstrrrra. - Sibilou a serpente, enrolando-se em volta dos ombros da menina. Esta riu-se.
Mestra? Pára com isso.Somos amigas!
Como quissserrrr! - Foi a resposta.
- Acho que já provei o que disse, não é? - Meg quase desatou a rir ao ver a expressão de Nadja. Esta engoliu.
- Opões-te a que te coloque no programa do próximo espectáculo?

Pela primeira vez desde que se recordava, a vida era boa para Meg. Em poucas semanas tinha feito amizade com quase todos os membros do circo  itinerante de saltimbancos, e estes já a viam como se sempre tivesse feito parte deles. Raoul e Nadja tinham pendurado uma rede para ela na sua  caravana, avisando que as primeiras noites seriam desconfortáveis para quem não se encontrava habituado. Meg, que durante anos passara noites num  colchão duro e malcheiroso, riu-se de ambos e dormiu como um bebé, com Kazeila enrolada no seu colo. Ellias não conseguira separar a cobra dela,  para grande divertimento tanto desta como de Megan, e acabou por admitir que perdera o seu objecto de treinos para uma menina. Nadja traduzira  depois que este dissera que talvez fosse melhor assim, já que Meg e a cobra pareciam "Falar a mesma língua".
A propósito de línguas, Nadja começara também a ensinar à menina tanto Romani como Inglês, necessário tanto para falar com os outros do grupo  como com as pessoas das localidades por onde passavam. Meg mostrara ser uma aluna excepcional. A velocidade a que ela retinha conteúdos e absorvia  o que lhe ensinavam era tal que depois de uma semana já se embrenhava em grandes discussões em romani com Ellias, que descobrira um fascinado  por cobras tal como ela, sobre diferentes espécies e cuidados. Kazeila nunca abandonava os seus ombros, embora estivesse a crescer a um ritmo em  que Meg julgava que não tardaria a ficar pesada demais para a poder carregar. Os ciganos habituaram-se a ver a menina  passear com a serpente, e até  se riam do facto depois de algum medo inicial ter passado.
Meg pedira também a Nadja para a ensinar a ler, mas isso era algo que a cigana não sabia fazer. Recomendara-lhe Hassan, e assim, nas noites  seguintes Meg queimou pestanas a aprender o alfabeto e a conjugar frases na companhia do chefe cigano. A verdadeira razão porque Meg estava tão  desesperada por esse conhecimento em particular ninguém sabia. De noite, à luz de uma vela, a menina retirava livros da sua mala sem fundo e aprendia  Aritmancia, Encantamentos e Defesa Contra as Artes Negras. Esta última matéria interessava-lhe menos que as Artes Negras propriamente ditas, sobre  as quais os seus antigos captores possuíam também uma vasta colecção. Ao mesmo tempo descobria, através de ficheiros de família e registos que  enfiara na mala por pura curiosidade, quem ao certo tinham sido os Gerand. A partir de fragmentos de jornais antigos começava a fazer uma boa ideia  daquilo que era o mundo mágico antes e depois de ela nascer. Leu sobre Grindewald e Le Poisson, o mais famoso mago negro de França. Mas,  sobretudo, interessavam-lhe os jornais ingleses, provavelmente trazidos por Josiah, que falavam de um tal Lorde Voldemort, o mais terrível mago negro de  que havia memória, e cujas acções se temiam que afectassem o seu país também. Cruzando informação com os jornais franceses, descobriu que o  pandemónio realmente atingira França, sendo grave ao ponto de fazer os dois países criar esquadrões dedicados a localizar e prender potenciais  apoiantes do feiticeiro negro em ambos os territórios. Essas notícias interessaram-lhe, chegando mesmo a fazê-la franzir a testa ler que, depois de todo  o terror que espalhara e de todos os que assassinara, Voldemort fora derrotado por um reles rapazinho de um ano de idade. Meg sacudira a cabeça,  céptica, e tornara a mergulhar na leitura.
Com os Romani, ela viajou por quase toda a França e assistiu a todos os espectáculos, por vezes participando ela própria com Kazeila, que entretanto  atingira um comprimento e largura de aterrorizar qualquer um, sob o nome artístico de "Demoisselle Serpant". Esses momentos eram sempre divertidos  para ela, mas desconfiava que das duas, era a cobra quem gozava mais com as palmas e assobios.
Entretanto, o seu poder mágico ia crescendo. Não revelara a ninguém essa sua capacidade. Desconfiava que Raoul sabia, pelos sorrisos sabedores que  este lhe dirigia quando a via escapar até um canto escuro para praticar. Nadja talvez soubesse também, mas Meg tinha a impressão de que ela tinha  outras coisas em mente. Entre elas, estava treiná-la em combate físico. Hassan surgira com essa ideia depois de, apesar das muitas tentativas da  mulher, esta finalmente aceitar que Meg não possuía uma única costela de equilibrista. Megan empenhou-se nas aulas de combate com a mesma  concentração que aplicava em tudo aquilo que fazia. Nas suas práticas de magia muito raramente recorria à varinha, por muito que tal lhe pudesse  facilitar a aprendizagem. Na mente de Meg estavam presentes as imagens dos Gerand, tão indefesos depois de ela queimar as varinhas. Não, Megan  nunca seria assim tão fraca. Trabalharia por isso, se pretendia enfrentar feiticeiros.
Ela não sabia ao certo quando essa ideia se alojara na sua cabeça, mas ela não a abandonava. Um dia, ela partiria para vingar os pais. Os Gerand  tinham participado na sua morte, mas eles eram apenas quatro. Ela recordava sete pessoas. Estava determinada a encontrar os restantes três, e a  fazê-los pagar. Por muito que amasse a vida que levava, sabia que não podia ficar com os ciganos para sempre. Por vezes interrogava-se se eles não  saberiam disso também, pois haviam momentos em que a olhavam com uma expressão que a fazia pensar que temiam que ela desaparecesse a  qualquer momento.
A algum momento, Megan teria de voltar para o mundo que, apesar de ter aprendido a desprezar, pertencia.
E um dia, a motivação e oportunidade acabaram por chegar.

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