PRÓLOGO



PRÓLOGO

Glenroe Forest, Escócia, 1735.
Os ingleses chegaram à tardinha, quando o céu se adensava de nuvens pesadas e as velas e os candeeiros começavam a brilhar nos chalés da aldeia. Naquele silêncio, o estrépido das patas dos cavalos, transmitido pela vibração do solo gelado, ecoou pela floresta como o surdo ribombar de um trovão, fazendo com que os pequenos animais, assustados, corressem em busca de abrigo.
Gina Weasley acomodou o irmãozinho de colo no quadril e foi até a janela.
"Papai e seus homens estão voltando da caçada mais cedo", pensou. E ficou conjeturando por que não irrompiam gritos de boas-vindas nem explosões de riso das casas situadas no sopé da colina.
Esperou, o nariz achatado contra a vidraça, pelos primeiros sinas da chegada, o soar da trompa, os latidos dos cães, embora estivesse ainda ressentida. Uma vez mais não lhe haviam dado permissão para acompanhar os caçadores.
Rony fora com eles, e tinha apenas catorze anos e não era tão destro no arco e flecha quanto ela. Sua boca cerrou-se de desdém, enquanto continuava a perscrutar a paisagem deserta, iluminada pela luz que morria. Seu irmão iria vangloriar-se dessa preferência durante dias. E ela seria, no fim, à custa de importunação, levada a ouvir suas gabolices.
Mas quando o pequeno Malcolm começou a choramingar, sua irritação se dissipou. Embalou-o automaticamente, os olhos fixos na trilha íngreme que corria entre os cercados e os chalés, murmurando:
- Fique quieto. Papai não vai gostar de encontrar você chorando.
Súbito, uma angústia inexplicável a fez aconchegá-lo contra o peito e olhar nervosamente por cima do ombro. As velas ardiam nos candelabros de prata e um aroma bom de ensopado de carneiro evolava-se do caldeirão suspenso sobre o fogo da cozinha. O assoalho e os móveis brilhavam, as arcas recendiam a lavanda dos pequenos sachês que sua mãe confeccionara.
Tudo parecia normal, porém um peso estranho oprimia-lhe o coração. Num impulso, enrolou Malcolm num xale e saiu para o jardim. As sombras alongavam-se, sinuosas, mas não se ouvia nenhum outro som, além do ruído seco das patas dos cavalos escalando a trilha da colina.
"Vão aparecer a qualquer momento", pensou e, sem saber por que, um calafrio percorreu-lhe a espinha. Quando ouviu o primeiro grito, vindo de um dos chalés, deu um passo para trás.
No mesmo instante, Molly, o lindo rosto pálido e tenso, desceu correndo os degraus de pedra. Mas não ficou parada aos pés da escada, como era seu hábito, para dar boas-vindas ao marido.
- Entre, Gina. Depressa!
- Mas mamãe...
- Vamos menina. Pelo amor de Deus! - Ela agarrou a filha pelo braço e conduziu-a quase à força pela alameda de cascalho.
- E papai?
- Não é seu pai!
Antes de entrar, Gina viu os primeiros cavaleiros assomarem ao alto da colina. Não vestiam o manto axadrezado dos Weasley, mas os casacos vermelhos dos dragões ingleses. Tremeu de medo. Embora tivesse apenas oito anos, já conhecia as terríveis histórias que circulavam na aldeia acerca desses soldados.
- O que eles querem, mamãe? Não fizemos nada!
- Não é necessário fazer, mas apenas existir!
Molly fechou a porta, num gesto de desafio, mesmo consciente de que isso não iria deter os intrusos. Apesar de pequena e esguia, não costumava se desesperar nas situações difíceis. Sabia o que era preciso fazer, e fazia-o calma e competentemente.
- Gina.
- Sim, mamãe?
- Vá para o quarto das crianças e leve Malcolm com você. Não saia de lá enquanto eu não mandar.
- Está bem, mamãe.
Nesse instante, o vale ressoou com outro grito, seguido de um choro selvagem. Pela janela, as duas viram a fumaça grossa desprender-se do teto de colmo de um dos chalés e chamas saltarem pelas janelas e aberturas.
- Quero ficar aqui embaixo com você. - disse Gina com voz trêmula.
- Não, querida.
- Papai não gostaria que eu a deixasse sozinha.
Lá fora, ordens de comando elevaram-se no ar, esporas e sabres entrechocaram-se. Os imensos olhos verdes de Molly espelharam preocupação.
- Vá, agora! E faça o que eu lhe disse.
Gina voou escadas acima. Não havia ainda vencido o primeiro lance, quando ouviu alguém bater com força na porta da frente. Parou e voltou-se. Um grupo de dragões estava parado no hall de entrada. Um deles avançou alguns passos e inclinou-se profundamente diante de sua mãe, que permanecia empertigada e altiva no meio da sala. Mesmo daquela distância, ela percebeu a ironia do gesto.
- Pegue Malcolm. - disse baixinho a Gwen, sua irmazinhã de cinco anos que a aguardava no topo da escada. - Vá para o quarto das crianças e feche a porta.
- Mas Gina...
- Depressa! E não deixe o bebê chorar.
Depois disso, agachou-se junto ao corrimão e ficou à espreita.
- Molly Weasley? - ouviu o dragão perguntar secamente.
- Sou lady Weasley.
Molly estava disposta a arriscar a vida para proteger seu lar, seus filhos. Mas recusava-se a adotar uma atitude hipócrita de submissão.
- Que direito tem o senhor de invadir minha casa? - disse, um olhar de desdém brilhando nos olhos verdes e orgulhosos.
- Com o direito de um oficial do rei!
- Quem é o senhor?
- Capitão Standish, a seu serviço. - Ele tirou lentamente as luvas, esperando ver o medo estampar-se no rosto dela. - Onde está seu marido... lady Weasley?
- O senhor destas terras está caçando em companhia de seus homens.
Standish não proferiu palavra alguma. Olhou durante alguns segundos a orgulhosa criatura que tinha diante de si e depois fez sinal a três de seus homens para que iniciassem a busca.
Molly não nutria esperança de que qualquer sentimento de compaixão conseguisse abrandar o coração daquele homem. Resolveu, portanto, conservar intactos seu orgulho e sua dignidade, revidando ironia com ironia.
- Como vê, chegou em má hora. Há apenas mulheres e crianças em Glenroe. Ou foi talvez por isso que tenha se atrevido a vir até aqui?
Sem pensar duas vezes, Standish levantou a mão e esbofeteou-a duramente, primeiro numa face depois na outra.
- Aprenda a respeitar um oficial de sua majestade, escocesa!
Gina desceu as escadas com a velocidade de uma bala e atirou-se sobre ele, martelando-lhe o peito com os punhos cerrados.
- Meu pai o matará por isto!
O homem empurrou-a para um lado com brutalidade.
- Pirralha do inferno!
Molly colocou-se diante da filha, protegendo-a com seu próprio corpo.
- Os homens do rei George costuma bater em crianças? São essas as leis inglesas?
A respiração de Standish acelerou-se. Não podia permitir que seus homens o vissem em desvantagem diante de uma mulher e uma criança, especialmente quando ambas pertenciam à ralé escocesa! Mas tinha ordens apenas para interrogar e dar buscas nas casas dos suspeitos. Embora descontente com seus súditos escoceses, a rainha Carolina não gostaria que acontecesse um incidente isolado na Alta Escócia.
- Leve essa pirralha para cima e tranque-a num dos quartos. - ordenou em tom áspero a um de seus dragões.
Sem uma palavra, o soldado agarrou Gina pela cintura, tomando cuidado para evitar seus pontapés e seus punhos.
- A senhora cria gatos selvagens, milady. - observou Standish, voltando-se para Molly.
- Minha filha não está acostumada a ver um homem usar de violência com sua mãe ou outra mulher qualquer.
O capitão fitou aquela bela mulher, só e sem protetores, com ar pensativo. Não reconquistaria a estima de seus homens punindo uma criança. Mas a mãe... Um sorriso cruel contraiu-lhe os lábios, quando disse:
- Seu marido é acusado de estar envolvido na morte do capitão Portenous.
Molly surpreendeu-se.
- O capitão não foi sentenciado à morte pela corte inglesa por ter atirado sobre uma multidão indefesa?
- O capitão atirou num grupo de desordeiros, não em homens indefesos. De qualquer modo, a sentença que o condenava à morte foi suspensa.
Standish colocou a mão no punho da espada. Ele tinha fama de cruel mesmo entre seus pares. Achava que medo e intimidação ajudavam a conservar seus homens na linha. Por que isso não iria funcionar com uma vagabunda escocesa?
- Suspensa? Por quê?
- Portenous foi encontrado morto em sua cela. Queremos descobrir seus assassinos.
- Não sinto pena desse desaventurado. - disse Molly. - Mas posso lhe garantir que não temos nada a ver com sua morte.
- Pois temos prova mais do que evidentes que seu marido assassinou, ou mandou assassinar o capitão.
- Isso é falso! - exclamou Molly revoltada.
- Milady, como sua esposa, não terá direito à proteção da rainha, - continuou Standish, imperturbável - a menos que coopere com a justiça.
- A rainha, melhor do que ninguém, deve saber de que lado se acha a justiça. Eu não tenho nada a declarar!
- É uma pena.
O capitão sorriu com fingida simpatia e deu um passo para a frente.
- Nesse caso, vou lhe mostrar o que acontece às mulheres desprotegidas.
No andar superior, Gina bateu na porta com os punhos até suas mãos sangrarem. Depois, pôs-se a andar de um lado para outro do quarto, agitada. Do lusco-fusco que reinava fora, chegavam longos e lamentosos gritos femininos. Mas ela pensava unicamente em sua mãe, sozinha e desprotegida no meio dos odiados soldados ingleses.
Quando, afinal, a chave voltou a girar na fechadura, saiu a correr do quarto, precipitou-se para as escadas e atravessou a sala. Sua mãe estava caída junto à lareira. Suas feições finas apresentavam uma palidez intensa, o vestido rasgado permitia distinguir as manchas arroxeadas que se espalhavam pelo corpo inteiro.
Caiu de joelhos a seus pés.
- Mamãe!
Ela chorava. Já a vira chorar antes, mas não assim, com lágrimas silenciosas e desesperançadas. Tirou uma manta da arca e cobriu-a. Enquanto os dragões se afastavam a galope, sustentou-a com um braço, abrigando com o outro Gwen e o pequeno Malcolm. Tinha apenas uma vaga compreensão do que havia ocorrido, mas isso foi suficiente para fazê-la odiar os ingleses pelo resto da vida.


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