Moo Goo Gai Pan





Capítulo 5

Moo Goo Gai Pan



A maior parte do dia foi gasto assim: enquanto mexiam com ervas, óleos e essências, Winthrop procurava saber mais sobre Snape e Snape procurava esconder o máximo possível do seu patrão. Afinal, era o melhor para todos. Quanto ao trabalho, bem, Snape faria aquilo de olhos fechados, dormindo, e debaixo d'água.


Snape procurou não pensar no que tinha acontecido pela manhã, mas os acontecimentos não lhe saíam da cabeça. Quanto mais ele pensava, mais apreensivo se tornava. Aquele homem, Eddie, provavelmente não pensaria duas vezes em cumprir a ameaça e voltar a importunar Martha quando Snape não estivesse por perto. Ele ficava imaginando se não teria piorado ainda mais as coisas entre os dois com sua interferência.


Normalmente ele jamais interferiria numa coisa desse tipo. Mas ao ver o homem esbofeteando a moça, seu sangue tinha subido. Deixar-se levar por impulsos era uma reação perigosa para um espião, e Snape sabia que deveria tomar cuidado. Por outro lado, de algum modo ele sentiu que Martha estava totalmente sozinha e desprotegida, e o instinto de proteger o mais fraco tinha sido mais forte.


Também normalmente ele jamais pensaria duas vezes sobre a moça. Ela não era exatamente interessante, e não devia ser muito inteligente para se deixar ser abusada desse jeito. Por outro lado, ele não conseguia parar de pensar nela. Ocasionalmente, ele olhava para a porta do laboratório, onde podia espiá-la atendendo algum cliente ou organizando os pedidos. Martha uma vez o pegou olhando, e sorriu para ele. Ele sentiu algo mexer no seu estômago, mas não saberia dizer exatamente o quê.


Como todos os três estavam trabalhando juntos, o Sr. Winthrop mandou trazer comida por um serviço chamado tele-entrega. Um trouxa de motocicleta entregou uma sacolinha com diversas caixinhas quadradas brancas. O Sr. Winthrop depositou uma das caixinhas na frente de Snape e anunciou:


- Moo Goo Gai Pan.


- Perdão?


- Comida chinesa - esclareceu Martha. Ela abriu sua caixinha, pegou duas varetas compridas e passou a cutucar o conteúdo da caixinha. - Nunca comeu comida chinesa?


- Ao que me lembre, não.


- Nem com hashi, suponho?


- Também não recordo.


Não era a coisa certa a se dizer, ao que tudo indicava, porque Winthrop olhou para Martha, Martha olhou para o patrão e os dois o encararam como se estivessem verificando se ele falava sério. Ao que tudo indica Snape foi convincente, porque Martha explicou, solícita:


- Não é difícil, uma vez que se pega o jeito. Claro, se você preferir garfo e faca, eu posso arranjar. Faça assim: pegue um dos palitinhos com esses dedos, coloque o dedo médio no meio e use-o para apanhar a comida. Assim.


Realmente, não era difícil. O mínimo de destreza manual era necessária. Martha o ajudou a pegar a posição correta das varetas - chamadas hashi - e ele não pôde evitar notar as mãos delicadas, de dedos longos como os seus. A proximidade também o fez detectar um suave aroma de lavanda. Loção, não perfume.


Ele aprendeu que Moo Goo Gai Pan era frango cozido com molhos orientais e pimentão, carregado no aipo. Não de todo mau.


No final do dia, o Sr. Winthrop quis saber:


- E então, Sev? Acha que gostará de trabalhar aqui?


Snape tampou um dos frascos com um xampu antiqueda e disse:


- Esse é o trabalho ao qual tenho me dedicado há mais de 20 anos. Mas eu é quem preciso lhe indagar, Dean: tem certeza que quer que eu trabalhe para você? Digo, você mal me conhece.


- Hum, vamos dizer que você tem um astral bom, Sev. Sem contar que você certamente conhece suas ervas.


- Talvez eu devesse lhe dizer que minha situação é temporária, e eu posso ser chamado de volta a qualquer momento. Eu entenderei se você preferir os serviços de uma pessoa que pretenda ficar mais tempo.


- Lamento ouvir isso. Eu certamente estava vendo algo mais duradouro. Ah, eu devia saber que uma pessoa como você não esquentaria muito tempo por aqui...


Martha entrou no laboratório nesse momento, e deixou os livros de contabilidade caírem. Ela parecia ainda mais pálida do que de costume:


- Sev vai embora?


O Sr. Winthrop respondeu:


- Era o que ele me dizia, Martha.


- Sim, senhorita - concordou Snape. - Minha situação aqui é temporária. Não sei até quando poderei ficar.


Se é que Snape poderia dar um nome à reação de Martha, foi de susto. Ou pior ainda: pavor. A moça se abaixou para pegar os papéis caídos e as mãos dela tremiam. "Ela deve estar achando que eu a deixarei desprotegida daquele homem", pensou ele.


O Sr. Winthrop disse:


- Bom, hoje realmente conseguimos adiantar muita coisa. Amanhã só vou passar aqui pela tarde, Sev. Acha que pode dar conta do laboratório sozinho?


- Sem problema.


- Ótimo - disse o dono da loja. - Então vocês dois podem ir descansar. Amanhã de manhã, quero os dois bem cedo aqui.


Snape observou Martha se dirigindo ao cabide de casacos na parte de trás e tomou uma decisão:


- Sr. Winthrop... Er... Dean, eu sei que não tenho direito ainda a receber, mas... respeitosamente, gostaria de solicitar um adiantamento de salário.


- Eu estou meio desprevenido, Sev - ele disse. - De quanto você precisa?


- O suficiente para me locomover usando transporte coletivo.


- Ah, não tem problema. Tome - Ele lhe passou uma nota de 5 libras, depois pensou bem e adicionou mais duas libras. - Depois fale comigo para a gente ir à comissão municipal de transporte, que você tem direito a receber desconto.


- Farei isso - Sua formação sonserina fez com que ele engasgasse, era difícil dizer o que deveria ser dito. - Eu... fico muito agradecido, Dean.


- Tudo bem, Sev. Não vamos nos estressar por umas poucas libras.


- Até amanhã, então.


- Descanse bem.


Snape deixou a loja, mas ficou parado do outro lado da rua. Minutos depois, Martha saiu, ajeitando a pequena bolsa que levava no ombro. Snape se aproximou, e ela sorriu ao vê-lo:


- Oi, Sev. Pensei que você estivesse a caminho de casa.


- Srta. Scott, se me permite a ousadia, eu gostaria de acompanhá-la até em casa.


Ela ficou nervosa:


- Sev, eu não sei -


- Tudo que quero é acompanhá-la para que chegue em segurança até sua casa. As ameaças daquele... jovem devem ser levadas a sério.


- Eddie? - Ela procurou disfarçar o nervosismo com um sorriso. - Oh, ele esquece rápido. Não esquenta.


- Seja como for, eu me sentiria melhor se a visse chegar em casa com meus próprios olhos. Eu insisto.


Martha o observou, enrubescendo:


- Então tá bom. Não é longe, mas eu tenho que pegar o metrô.


Snape empalideceu. A experiência do dia anterior ainda não tinha sido esquecida, quando suas vestes ficaram presas na temível "catraca" e foi necessária a ajuda de um oficial do metrô para que ele se soltasse. Mas agora suas capas estavam na lavanderia e ele tinha apenas um casaco emprestado de Brian, que provavelmente não se enroscaria na catraca.


- Então podemos ir.


Eles caminharam um pouco pela rua, indo rumo à estação mais próxima do metrô subterrâneo. Martha disse:


- Eu ainda não tive chance de lhe agradecer pelo que fez por mim hoje. Você até mentiu por mim. Muito obrigada.


- Não precisa me agradecer.


- Nem todo mundo teria feito o que você fez - ela disse, encabulada. - E eu lhe peço desculpas de novo. Eddie pode ser muito desagradável.


- Srta. Scott, eu creio...


- Martha. Por favor, me chame de Martha.


- Se é o que prefere... Martha.


Eles iam andando no escurecer, alheios ao movimento de outras pessoas. Aliás, nem era tanto: o bairro era em sua maioria residencial, e ainda não estavam no horário de pico.


- Você parece ser um farmacêutico muito bom. Dean está impressionado.


Snape disse:


- Tenho alguma experiência. Além do mais, é o que eu gosto de fazer.


- Que bom. Pena que esteja indo embora.


- Eu ainda não sei se ficarei muito tempo. Só achei que o Sr. Winthrop deveria saber que eu estou apenas de passagem.


- Vai ser uma pena quando você se for. Eu ficava sozinha na loja, agora ao menos terei alguém junto comigo.


Ela sorriu para ele de novo, e Snape cada vez mais gostava de vê-la sorrir. Ele não sabia dizer por que, mas toda vez que Martha sorria, o estômago dele ficava um tanto... perturbado. Seria efeito do Moo Goo Gai Pan?


- Para não mencionar o problema de segurança.


Ela riu-se suavemente, um gorjeio agradável e Snape a encarou com mais insistência. Havia algo naquela moça, algo indefinível. Ele teria que observar mais sobre isso.


- Sev, eu posso perguntar uma coisa?


- Se eu puder responder - Ele disse sinceramente.


- Você tem alguma esposa ou namorada esperando lá no lugar de onde você veio?
- Não.


- Ah. Desculpe, eu não queria me intrometer. Mas é que... você parece ser muito sozinho.


- É um bom meio de se evitar más companhias. - Imediatamente ele se deu conta do que havia dito - Oh, perdão, eu não quis...


- Tudo bem, não tem problema. Eu sei que Eddie não é boa companhia. Mas... eu não queria ficar sozinha.


- Você não tem família?


- Meus pais morreram quando eu era muito pequena. Uma tia me criou, mas ela também morreu há alguns anos.


- Você parece ter se virado bem.


Ela deu um sorriso que não era nada alegre:


- Só não tem sorte com namorados, não é mesmo?


- Olhe, eu não quero julgá-la. Apenas quero protegê-la.


Aquilo pareceu espantar a moça. Ela o encarou, como se estivesse duvidando do que ele tinha acabado de dizer.


- Olhe, Sev. A gente acabou de se conhecer, mas eu acho bom você saber. Eu sou meio... problemática.


- Problemática?


- É - Ela enrubesceu. - Eu sou diferente.


Snape a olhou com atenção.


- Você não parece diferente, Martha. Que quer dizer com isso?


A moça parecia um tanto constrangida ou desconfortável:


- Não, não é uma coisa que apareça. Eu sou... esquisita. Sabe, eu sinto coisas.


- Como assim?


- Às vezes, eu sinto algumas coisas e eu sei das coisas, só isso.


Snape sentiu um arrepio:


- Como se pudesse prever, é isso?


- É isso mesmo.


- E as coisas que você prevê acontecem?


- Nem sempre eu vejo as coisas que ainda não aconteceram. É assim: por exemplo, quando eu perguntei se você tinha uma namorada, eu já sabia que não. Eu tinha sentido sua solidão.


- Ah. Entendo.


Martha olhou para ele:


- Só isso?


- Desculpe, não entendi.


- Geralmente, quando eu falo isso as pessoas me olham de maneira estranha. Só porque eu sou diferente.


- Posso garantir que isso acontece com muitas pessoas - disse Snape, tentando esconder suas reais emoções. - É um dom, só isso. Não tem do que se envergonhar.


- Então não acha que eu sou maluca?


- Não.


- Posso dizer mais uma coisa?


Snape não gostou muito daquilo, mas permitiu:


- Com certeza.


- Você carrega algum segredo, né? Algo que não quer que ninguém saiba.


Ele respondeu, tentando não se comprometer:


- Ora, acho que todos nós temos os nossos segredos. Nesse ponto, acho que não sou diferente de ninguém, nem mesmo de um... ah, cidadão dessa cidade, que é diferente da minha.


- Acho que tem razão. Mas eu sinto que você carrega algo grande dentro de você, uma espécie de peso ou... escuridão. Eu... queria poder ajudar.


Snape procurou contornar o assunto:


- Eu agradeço seu interesse, mas acho que ter problemas não é privilégio meu, Martha. Você já falou com alguém sobre esse seu dom?
- Não, na verdade toda vez que eu falo sobre isso, as pessoas me olham estranho - Ela abaixou a cabeça. - Eu... aprendi a não falar sobre isso. Mas você parece que não se importa.


- Como sou estrangeiro, e não conheço direito seus costumes, eu também posso ser considerado meio estranho. Então, não é privilégio seu. É importante que todos saibam reconhecer e respeitar as diferenças.


Martha olhou para ele, satisfeita com o que ouvira.


- Você deve ser um cara bem legal, Sev. Aposto como o povo lá de onde você vem te adora.


Ele pensou nos alunos de Hogwarts, nos seus colegas professores, até nos comensais da morte. Deu de ombros e respondeu, sinceramente:


- Você não pode sequer começar a imaginar.


Ela dobrou a rua e apontou:


- Estamos chegando à estação.


Já não era sem tempo, pensou Snape.




Compartilhe!

anúncio

Comentários (0)

Não há comentários. Seja o primeiro!
Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.