Pelas costas



Pelas costas 


 -“Ana! Ana, apareça!”



-“Nós sabemos que você está aí!”


 Eram as vozes de Jules e Devon, que se alternavam para me chamar.


 Encolhida em um dos boxes, eu não respondia. Não estava chorando, o que era um progresso, mas estava sem a menor condição psicológica de encarar o mundo cruel que existia fora do banheiro da Murta.


 -“Você não vai responder?” – disse a fantasma, baixinho.


 Murta estivera do meu lado pelos dez últimos minutos, tentando me convencer a contar o que estava acontecendo. Até aquele momento, eu não tinha dito uma palavra sequer.


  -“Não, não vou.” – eu murmurei, ao que Murta revirou os olhos, impaciente.


 -“Ela está aqui!” – ela gritou, voando por cima do boxe e indicando o caminho aos meus amigos, que vieram correndo e pararam em frente à porta fechada.


 -“Anda, Ana, sai daí! Nós queremos conversar com você!” – pediu Devon, tentando abrir a porta, mas não conseguindo, já que eu a havia trancado.


 -“Ela não vai sair,” – eu ouvi Jules dizer a ele – “deixa que eu resolvo isso.”


 E com um Alorromorra, ela arrombou a porta.


 -“Será que dá para você falar com a gente agora?” – perguntou.


 -“Eu não vou falar com vocês nunca mais!” – explodi, levantando-me e saindo rumo a porta do banheiro. –“Foram vocês, não foram?”


 -“Nós o que?” – Jules parecia perplexa.


 -“Foram vocês que contaram àquela jornalista quem são meus pais!”


 -“Você só pode estar brincando!”


 -“Não, não estou. Além da McGonagall e dos meus pais adotivos, vocês dois eram os únicos que sabiam!”


 -“Ana, raciocina!” – Jules começou a gritar também – “Você viu alguma entrevista nossa naquela reportagem? Se nós tivéssemos contado, seríamos nós, e não a Tayford quem seria citado no jornal!”


 -“Você acha que foi ela?” – eu baixei o tom de voz – “Mas como ela pode ter descoberto?”


 -“Você se lembra daquele barulho de descarga que ouvimos aqui enquanto conversávamos?” – começou Devon – “Jules e eu achamos que pode não ter sido a Murta...”


 -“Aquela desgraçada! Eu vou matá-la!”


 -“Teria feito mais efeito matá-la antes que ela chamasse o jornal.” – comentou Devon.


 -“Vocês viram o que aquela jornalista escreveu? Ela fez parecer que era um crime o fato de eu conviver com outros bruxos! Como se eu fosse uma aberração, ou algo assim!” – eu protestei, sentindo as primeiras lágrimas brotarem em meus olhos.


 Jules se adiantou e me abraçou, dizendo que eu não deveria me preocupar com uma bobagem daquelas. Devon limitou-se a me encarar com um olhar preocupado, a alguns poucos passos de distância.


 -“Demonstrações explícitas na sala comunal da Sonserina...” – eu continuei – “Ninguém da nossa casa vai acreditar nisso, mas todos os outros vão... eles vão... me odiar!”


 -“Eles podem até lhe odiar no início, mas daqui a uma semana outra notícia vai tomar a atenção deles e ninguém mais vai se lembrar da sua história.” – disse Jules, tentando adicionar alguma convicção à sua voz, mas sem sucesso.


 Naquele momento, o sinal para a primeira aula tocou. Jules e Devon tentaram me convencer a ir com eles, mas eu não estava com o menor clima para aulas. Sentei-me em um canto do banheiro e fiquei ali, encolhida. No começo, Murta tentou iniciar uma conversa comigo, mas, ao ver que eu não respondia, desistiu.


 As horas foram passando, mas eu me sentia insensível ao tempo. Eu tinha a sensação de que o mundo ao meu redor era etéreo, com uma consistência parecida com a fumaça. Até as lembranças na penseira de Dumbledore se pareciam mais com a realidade do que as paredes de pedra cinza à minha frente.


 Minha vida estava acabada. De garota desconhecida e ignorada à garota mais conhecida e odiada de Hogwarts, não, de toda a comunidade bruxa, é mais provável. Grande progresso. Talvez eu devesse sair do banheiro escondida, correr até a sala da McGonagall e implorar para que ela me mande de volta pra casa. Lá, eu posso procurar uma escola trouxa e, com sorte, ainda conseguir uma matrícula para não perder o ano letivo.  Esquecerei o mundo bruxo completamente, como se nunca tivesse existido. Começar uma vida nova não parecia má idéia...


 Ou então eu poderia simplesmente me atirar do alto da torre de astronomia.


 


 Quando soou o toque para o almoço, Devon apareceu no banheiro.


 -“Hei, como você está?”


 Eu dei de ombros.


 -“Aposto que está com fome.” – ele se aproximou alguns passos – “Vão começar a servir o almoço no salão principal. Se você quiser, nós podemos esperar todo mundo sair.”


 -“Por que Jules não veio?”


 Devon suspirou e fez uma careta.


 -“Ela disse que você está sendo infantil se escondendo aqui. Ela acha que você devia enfrentar essa situação logo, porque mais cedo ou mais tarde, terá que fazê-lo.”


 -“É fácil pra ela falar, não é ela que é odiada só por ser filha de quem é.”


 -“As pessoas a odeiam por ser parente daquela Doleres Umbrigde, lembra?”


 -“Não é a mesma coisa!” – eu gritei, mas me arrependi na mesma hora, Devon não merecia meus gritos – “Desculpa, mas a Jules é só sobrinha dessa mulher, e até onde eu sei, ela nunca matou ninguém. Já eu, eu sou filha de Voldemort!”


 Devon balançou a cabeça, concordando.


 -“Você tem razão, mas Jules me obrigou a dizer aquilo. Você a conhece, ela não liga muito para sentimentos, só faz as coisas. Aposto minha vassoura que, se ela fosse a filha do bruxo das trevas, ela continuaria normalmente a vida, e apenas azararia todo mundo que tivesse algum problema com isso.”


 -“Ela já faz isso com quem se lembra que sobrenome dela começa com U.” – eu ri.


 Devon sorriu.


 -“Tá vendo? Pode ser que adotar a mesma tática também funcione pra você. Por que não tenta?”


 Ele tinha uma expressão de ânimo no olhar que me fez rir. Foi um riso meio engasgado, que fez um pouco de meleca voar do meu nariz entupido. Foi um riso bem nojento.


 -“Toma.” – ele me estendeu um pedaço de papel higiênico.


 -“Obrigada”.


 Ficamos sentados por mais alguns minutos, em silêncio. Essa é a grande diferença entre meus amigos, enquanto Jules fala tudo o que pensa o tempo todo, Devon sabe que às vezes o silêncio é uma alternativa mais adequada à algumas situações.


 -“Vamos lá?” – ele havia se levantado tão rápido que eu nem tive tempo de reparar no movimento. Agilidade de batedor, imagino.


 Meus olhos ainda estavam cheios de água quando eu segurei a mão que ele me estendia e deixei que me puxasse para cima.


  


O resto do dia não foi fácil. Passei o tempo todo assistindo aos alunos do primeiro e segundo ano me evitando ao máximo nos corredores, e admirando o belo trabalho que Jules e Devon faziam ao rebaterem os comentários sarcásticos e as azarações dos alunos mais velhos. Eu não tinha forças para fazer o que eles estavam fazendo. No final do dia, porém, acho que eles se abalaram um pouco quando o pessoal começou a chamá-los de meus Comensais da Morte, mas se esforçaram ao máximo para não demonstrar, como bons soldados que lutam contra um inimigo mais numeroso e com mais poder de fogo.


 Durante as aulas, eu recebia olhares de pena de todos os professores, enquanto meus colegas praticamente brigavam para ver quem ficaria com o lugar mais longe possível do meu. Nem mesmo meus colegas sonserinos, cujo apoio eu contava um pouco pelo menos por eles saberem que aquela história de demonstrações de artes das trevas era mentira, ficaram do meu lado. Todos eles aparentemente pensavam que aquelas demonstrações tinham ocorrido bem na hora em que eles não estavam nas masmorras, por isso nunca tinham visto. Nunca na vida fiquei com tanta raiva da minha própria casa.


   O lado bom de sentir raiva era que isso me distraia de chorar. E me lembrava da cena da penseira, do pequeno Tom Riddle e de toda a raiva que ele sentia. Raiva por ser uma pessoa diferente de todas à sua volta, por ser incompreendido e julgado com base em preconceitos. As pessoas pensavam que ele era louco, uma aberração. Assim como agora pensam que eu também sou.


 O sinal da última aula soou e eu acordei dos meus devaneios. Jules e Devon estavam arrumando suas coisas bem devagar, para deixar todo mundo sair da sala primeiro, algo que ninguém mais quis demorar em fazer. Assim, ficamos só nós três e o professor Bins que, por já estar morto, não liga muito para os acontecimentos dos vivos.


 O jantar só continuou o clima de velório do dia. Nós três comemos o mais rápido que podíamos só para poder voltar ao dormitório antes de todo mundo. Para ser sincera, eu não sei do que eu estava mais ansiosa para fugir, se dos comentários ofensivos dos colegas, dos olhares de pena dos professores ou das palavras de incentivo da Jules, que não parava de dizer coisas como “não ligue pra eles, são todos uns vermes sem cérebro”, o que além de ser uma redundância, porque vermes realmente não tem cérebro, é muito chato quando repetido cem vezes no mesmo dia.


 Não pude deixar de notar que McGonagall não estava na mesa dos professores. Pensando bem, era muito estranho não ter ouvido uma palavra sequer dela naquele dia inteiro. Quer dizer, todo o esquema da minha adoção – e do segredo em relação à minha identidade – tinha sido obra dela. Era de se esperar que, no mínimo, ela me defendesse em um discurso aos alunos, não? Ela tinha toda a autoridade para mandá-los parar, ou colocá-los em detenção por me xingarem e azararem em público.


 -“Ela não deve querer ser acusada de proteger a filha de você-sabe-quem.” – opinou Devon quando eu compartilhei a minha idéia.


 Eu não imaginava que nada poderia piorar mais o meu humor, mas aquilo conseguiu. Levantei da mesa com violência deixando metade do jantar no prato.


 -“Aonde você vai?” – gritou Jules.


 -“Para as masmorras. Não me sigam!”


 Acho que foi a primeira vez na vida que meus amigos realmente fizeram o que eu pedi.


             Com a escola inteira jantando no salão principal, os corredores estavam praticamente desertos. Foi um alívio poder andar um pouco sozinha e deixar meus pensamentos vagarem sem ter que pensar rápido em uma resposta para “Hei, Stevens, cadê sua cobra de estimação?”, ou então “Stevens, o que você vai fazer hoje? Entre torturar trouxas e perseguir mestiços, sobra espaço na sua agenda pra um ritual de magia negra?”.


             Só que, é claro, minha alegria não poderia durar muito. De repente, senti um calor subindo pelo meu rosto. Minha bochecha e minhas pálpebras incharam até quase taparem meus olhos. Quando coloquei as mãos no rosto percebi que ele estava todo inchado. Em uma parede havia um espelho. Corri até ele apenas para ver meu rosto completamente tomado por espinhas do tamanho de sapos de chocolate. Elas cresciam com uma velocidade impressionante, tapando meus olhos e nariz até que eu não pudesse mais ver nada e fosse obrigada a respirar pela boca. Só o que ouvi antes de desmaiar foram risadas.


  


=== * * * ===


 


 Nota da Autora:


 Não, eu não esqueci a fic. Eu sei que fico anos sem postar e depois apareço do nada com um capítulo, mas eu VOU terminar essa fic. Um dia.


 E se servir de consolo, o próximo capítulo já está pela metade, o que significa que ainda teremos pelo menos mais um capítulo inédito ainda esse ano. YEEEEY!


 


 Beijos,


 


Tarí. 

Compartilhe!

anúncio

Comentários (1)

Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.