CAPÍTULO TREZE



TREZE

Em casa, minha mãe me acompanha até a sala e me bombardeia com perguntas. Ofereço os detalhes mais importantes, mas ela é insaciável. Quer saber todos os pormenores individuais, os presentes, as conversas. Tenho um flashback dos tempos da escola, quando voltava para casa exausta de um dia de pressões acadêmicas e sociais e ela me perguntando sobre o desempenho de Rony num debate, sobre o teste de Cho para líder de torcida, ou sobre o que tínhamos falado na aula de inglês. Quando eu não estava muito a fim de cooperar, ela resmungava sobre seu trabalho no consultório dentário, ou sobre uma grosseria dita num programa de TV, ou ainda sobre seu encontro com a minha professora da terceira série no supermercado. Minha mãe é um livro aberto e tagarela que espera que todo mundo seja exatamente igual a ela, especialmente sua filha única.

Ela termina o interrogatório sobre o chá-de-bebê e passa para – o que mais? - o casamento.

- E aí? Cho já escolheu o véu? - Ela ajeita uma pilha de revistas na mesa de centro, esperando uma resposta detalhada.

-Sim.

Ela chega mais perto de mim no sofá.

-Longo?

- Até mais ou menos a metade do vestido.

Ela bate palmas animada.

- Oh, vai ficar lindo nela.

Minha mãe é e sempre foi uma grande fã de Cho. Não fazia sentido na época da escola, já que Cho nunca valorizou os estudos e provocava um certo delírio pouco saudável nos meninos. Mesmo assim, minha mãe simplesmente amava Cho, talvez porque Cho a suprisse com detalhes da nossa vida que ela tanto desejava saber. Ultrapassando as rotineiras cordialidades com que tratávamos os pais das amigas Cho conversava com minha mãe como uma colega. Ela vinha depois da escola, encostava na bancada da cozinha e comia os biscoitos que minha mãe oferecia, enquanto falava sem parar. Cho contava a ela sobre os meninos de quem ela gostava e das vantagens e desvantagens de cada um. Ela dizia coisas como: "Os lábios dele são muito finos, garanto que não sabe beijar." Minha mãe ficava maravilhada e a provocava ainda mais. Cho continuava falando, enquanto eu saía da cozinha para começar meu dever de geometria. Agora me diga, o que está errado nesse quadro?

Lembro de uma vez, na sétima série, quando me recusei a participar do show anual de talentos, apesar de Cho ter incessantemente me infernizado para ser uma das suas dançarinas de apoio, numa versão nada convencional de "Material Girl".Apesar da própria timidez, Lila cedeu logo, mas eu me recusei. Não me importei que Cho precisasse de três meninas para sua coreografia, nem mesmo quando ela disse que eu estava arruinando suas chances de ganhar o primeiro prêmio. Eu geralmente deixava Cho me convencer, mas não daquela vez. Disse a ela para não gastar saliva, eu não tinha a menor intenção de algum dia colocar os pés num palco. Depois que Cho finalmente desistiu e convidou Marieta para ficar no meu lugar, minha mãe me passou o maior sermão porque achava que eu devia me envolver mais com esse tipo de atividades.

- Um boletim nota dez não é suficiente para você? - perguntei.

- Eu só quero que você se divirta, querida - ela respondeu.

Saí bruscamente da sala dizendo:

- Você quer que eu seja a Cho!

Ela me disse para deixar de ser ridícula, mas parte de mim acreditava naquilo. Agora eu me sinto da mesma maneira.

- Mãe, sem querer ofender você ou a segunda filha que você nunca teve, mas...

- Ah, não começa com esses absurdos! - ela ajeita o cabelo louro-acinzentado que há mais de vinte anos vem tingindo.

- Está bem - digo -, mas é sério, estou por aqui com o casamento da Cho. - Ponho minha mão dez centímetros acima da cabeça e depois a levanto ainda mais.

- Isso não é jeito de uma madrinha se comportar - ela contrai os lábios e aponta o dedo indicador na minha direção. - Dou de ombros.

Minha mãe ri, é a mãe boa-praça, que se recusa a levar a única filha a sério.

- Bem. Eu devia ter adivinhado que Cho daria um trabalhão como noiva. Tenho certeza de que ela quer que tudo fique perfeito...

- É, ela merece - digo sarcástica.

- Bem, ela realmente merece - minha mãe diz. - E você também... sua hora vai chegar.

-Ahã.

- É por isso que você não agüenta mais? - pergunta ela, com a convicção de uma mulher que assistiu a muitos talk shows sobre como lidar com sentimentos e cuidar de relacionamentos.

- Não exatamente - respondo.

- Então, por que exatamente? Ela está sendo um pé no você-sabe-onde? Que bobagem minha, o que estou perguntando? É claro que está! Essa é a Cho! - Outra risada contida e afetuosa.

-É.

- É o quê, queridinha? O que está passando pela sua cabeça?

- É, ela está sendo um pé no saco - digo, alcançando o controle remoto para devolver o som à TV.

- O que ela está fazendo? - Minha mãe persiste calmamente.

- Ela está sendo Cho - digo. - Tudo gira em torno dela.

Minha mãe me olha compreensiva.

- Eu sei, querida.

Então eu digo de repente que ela não merece Harry, que ele é bom demais para ela. Minha mãe olha para mim séria. Oh, merda, penso. Será que ela sabe? Rony e Gina são uma coisa, minha mãe é outra bem diferente. Nunca tive vontade de contar a ela que garotos do segundo grau eu achava bonitos, então este assunto está certamente fora de questão. Não consigo suportar a idéia de decepcioná-la. Tenho trinta anos, mas ainda sou do tipo que gosta de agradar aos pais. E minha mãe, uma mulher de sabedoria proverbial, nunca entenderia essa violação de amizade.

- Ela também está levando Harry à loucura. Estou certa disso - digo, tentando esconder.

- Por acaso Harry disse isso a você?

- Não, eu não discuti isso com Harry. - Tecnicamente essa afirmação é verdadeira. - Mas dá para perceber.

- Bem, seja paciente com ela. Você nunca vai se arrepender de ser uma boa amiga.

Penso nessa pérola da minha mãe. É difícil discordar disso. De fato, foi assim que vivi durante toda a minha vida. Evitando o arrependimento a todo custo. Sendo boa a todo custo. Boa aluna. Boa filha. Boa amiga. Entretanto, tive uma súbita epifania: o arrependimento é uma faca de dois gumes. Eu também posso me arrepender de me sacrificar, de sacrificar meus próprios desejos em nome de Cho, em nome da nossa amizade, em nome de ser uma boa pessoa. Por que eu deveria ser a mártir aqui? Fico me imaginando sozinha aos 35, sozinha aos quarenta. Ou pior, me comprometendo com uma versão do Harry sem graça, diluída. Harry com um queixo menos expressivo e vinte pontos a menos de Q.I. Eu seria obrigada a conviver com o "e se" para sempre.

- É mãe, eu sei. Faça como os outros e blábláblá. Vou ser uma boa amiga para a preciosa Cho.

Minha mãe olha para baixo, estica a saia. Eu a magoei. Digo a mim mesma que tentarei ser legal por mais uma semana. É o mínimo que posso fazer. Não tenho um irmão para me substituir e ficar dando uma de bonzinho quando estou fora. Sorrio e mudo de assunto.

- Onde o papai está?

- Ele foi à loja de ferramentas de novo.

- Para o quê, dessa vez? - pergunto, deixando-a se deliciar com a piadinha do "Papai não se cansa de lojas de ferramentas e de compra e venda de carros".

- Quem sabe? Quem algum dia soube? - Ela balança a cabeça, feliz novamente.

Estou quase dormindo, pensando em Harry, quando meu celular toca. Está perto da cama, a bateria totalmente carregada e a campainha bem alta, esperando o telefonema. O número dele acende a luz da tela. Levo o aparelho ao ouvido.

- Oi,Harry.

- Oi - diz ele, sua voz baixa. - Acordei você?

- Mais ou menos, mas tudo bem.

Ele não se desculpa, gosto disso.

- Meu Deus, estou com saudade de você - diz. - Quando você volta?

Ele sabe quando eu volto, sabe que a noiva dele está fazendo o mesmo itinerário. Mas não me importo que ele pergunte. Essa pergunta é para mim. Ele quer Hermione de volta ao seu fuso horário, não Cho.

- Amanhã de manhã. Chegamos às quatro.

- Vou passar na sua casa - diz ele.

- Ótimo - respondo.

Silêncio.

Pergunto onde ele está agora.

- No sofá.

Imagino Harry no meu apartamento, no meu sofá, apesar de saber que ele está num sofá-cama, que Cho planeja substituir por um modelo "mais sofisticado" logo que eles se casarem.

- Oh - digo. Não quero desligar, mas no meu estado sonolento não consigo pensar em mais nada para falar.

- Como foi o chá-de-bebê?

- Você ainda não soube?

- É. Cho telefonou.

Fico satisfeita que ele me diga que Cho ligou para ele, e imagino se ele acrescentou o detalhe de propósito.

- Só que eu estou perguntando a você como foi o chá-de-bebê – diz ele.

- Adorei encontrar Lila ... Mas foi terrível.

-Por quê?

- Os chás-de-bebê simplesmente são assim.

Então digo que gostaria que ele estivesse perto de mim. É o tipo de frase que eu geralmente não falo, a não ser que ele diga alguma coisa do tipo. Mas o escuro e a distância me deixam audaciosa.

- É mesmo? - pergunta ele no mesmo tom que uso quando quero mais. Os rapazes não são tão diferentes da gente, penso, e não importa quantas vezes eu pense, sempre parece uma revelação extraordinária.

- É, eu queria que você estivesse exatamente aqui comigo.

- Na sua cama, em casa, bem aí com os seus pais no quarto ao lado?

Rio.

- Eles são liberais.

- Então eu gostaria de estar aí.

- Embora eu tenha uma cama de solteiro - digo. - Não tem muito espaço.

- Uma cama pequena com você é uma grande idéia - a voz dele está baixa e sexy.

Sei que estamos pensando a mesma coisa. Posso ouvir a respiração dele. Não digo nada, apenas toco meu corpo e penso nele. Quero que ele faça o mesmo. Ele faz. Meu telefone esquenta o meu rosto e, como sempre acontece quando estou no celular, penso na radiação que posso estar recebendo. Só que hoje não me importo com um pouco de radiação.

***

No dia seguinte, Cho e eu rachamos um táxi do LaGuardia até em casa. Salto primeiro. Telefono a Harry no exato instante em que ponho os pés na calçada. Ele ainda está no escritório, trabalhando, esperando o meu telefonema. Estou pronta para quando você quiser, digo, satisfeita de já ter depilado as pernas em Indiana. Ele diz que não demora, que vai sair assim que ela telefonar para o escritório. Você sabe, ele comenta, soando meio envergonhado por suas táticas recém-adquiridas. Entendo. Por um segundo me sinto mal que a minha vida amorosa consista dessas estratégias desonestas e adúlteras, mas apenas por um segundo. Então digo a mim mesma que Harry e eu não estamos nesse campo. Que, nas palavras de Gina, a vida não é assim, tão preto no branco. Que às vezes os fins justificam os meios.

Nessa noite, depois de Harry e eu ficarmos juntos por algumas horas, percebo que nossas visitas começam a se desenrolar numa deliciosa mistura de conversas, toques, cochilos, e um simples existir juntos num silêncio caloroso e fácil. Como as férias perfeitas na praia, onde o não fazer nada acontece de uma forma tão feliz que quando você volta para casa e os amigos perguntam como foi a viagem você não consegue lembrar exatamente o que fez para preencher tantas horas. Esta é a sensação de estar com Harry.

Parei de contar quantas vezes a gente já fez amor, mas só agora, quando já estamos para lá de vinte. Imagino quantas vezes ele já esteve com Cho. Penso nisso agora. Alegar que ela não tem nada a ver com a gente não é verdade. Dizer que não é uma disputa é risível. Ela é meu parâmetro, tenho Cho como referência. Quando estamos na cama imagino, será que ela faz isso assim? Será que ela é melhor? A esta altura eles seguem um roteiro ou ela procura variar? (Meu voto, infelizmente, é "ela procurar variar". E ainda mais quando se tem um corpo nota dez, será que realmente importa se o sexo é o previsível papai-mamãe?).

Também penso nela depois, quando freqüentemente me sinto meio desconfortável com o meu corpo. Encolho a barriga, ajeito meus peitos quando ele está de costas para mim e nunca circulo nua pelo apartamento. Fico imaginando quantas vezes teríamos de ficar juntos até que eu desistisse do recurso da lingerie bonita em vez das suéteres cinza ou da parte de baixo do pijama da Gap que uso quando estou sozinha. Nós provavelmente não teremos tempo para que esse estágio se desenvolva. Pelo menos não antes do casamento. O tempo está se esgotando. Digo a mim mesma para não entrar em pânico, para saborear o presente.

Acontece que recentemente pude notar uma mudança. Agora eu me permito pensar no futuro. Parei de me sentir mal quando imagino Harry cancelando o casamento. Parei de achar que minha lealdade a Cho deve vir antes de qualquer coisa, principalmente daquilo que eu quero. Ainda não tenho certeza do que vai acontecer, que rumo esse caso vai tomar, mas o meu medo de quebrar as regras abrandou, assim como meu instinto de colocar Cho acima de mim mesma.

Esta noite Harry fala sobre trabalho. Muitas vezes ele me fala de negócios e, apesar do meu interesse na mecânica da coisa, gosto mesmo é do colorido que ele oferece sobre as principais peças do jogo na sua empresa, as pessoas que preenchem o seu dia-a-dia. Por exemplo, sei que ele gosta de trabalhar para Sirius Black, o chefe do grupo dele. Harry é o menino de ouro de Sirius e Sirius é um exemplo para Harry. Quando ele conta uma história sobre Sirius, imita o sotaque dele de um jeito que me convence que se algum dia eu vier conhecê-lo, o Sirius vai ser como se ele estivesse imitando Harry imitando ele próprio. Sirius não tem nem 1,65m (O que me intriga: os homens geralmente não dão detalhes da aparência de outros caras. Na maior parte das vezes apenas falam de sua sabedoria ou inteligência), mas, segundo Harry, isso não o atrapalha com as mulheres. A propósito, Harry relatou esse detalhe com bastante naturalidade, sem muita admiração, o que só confirma que ele não tem tendência a ser mulherengo. Os mulherengos ou se sentem impressionados ou competitivos em relação aos outros mulherengos.

Ele acaba de me contar uma história sobre Sirius e então pergunta:

- Já contei a você que o Sirius ficou noivo duas vezes?

- Não - respondo, pensando que ele sabe que não contou. Não é o tipo de coisa que você esquece que contou, especialmente dadas as nossas circunstâncias. De repente eu me sinto gelada e puxo as cobertas para cima de nós dois.

- É. Nas duas vezes foi ele quem terminou. Ele vive me dizendo coisas como "só acaba quando termina" e "ainda falta o último ato".

Imagino se Sirius sabe alguma coisa a meu respeito, ou se ele está apenas com o típico lero-lero de solteiro.

- Quando? - pergunto a Harry.

- Quando começa o último ato? - Harry se encolhe todo ao meu lado.

- É, mais ou menos isso... - Estamos pisando em campo minado e fico grata por ele não poder ver meus olhos. - Quando é que ele terminou os noivados?

- Não tenho certeza da primeira vez, mas na segunda foi momentos antes da cerimônia.

- Você está de brincadeira.

- Não. A noiva estava se vestindo quando ele foi até o quarto dela, bateu na porta e deu a notícia bem na frente da mãe dela, da avó e da bisavó de 95 anos.

- Ela ficou surpresa? - pergunto, e logo me dou conta de que é uma pergunta idiota. Ninguém espera que o noivo chegue de repente e cancele o casamento.

- Aparentemente. Mas ela não deve ter ficado assim tão surpresa... Ela devia saber que ele já tinha feito isso antes.

- Tinha alguma outra pessoa? - pergunto hesitante.

- Acho que não. Não.

- Então por que ele fez isso?

- Ele disse que não conseguia ver o relacionamento durando para sempre.

- Oh.

- O que você está pensando?

Ele deve saber o que estou pensando.

- Nada.

- Diz para mim.

- Nada.

- Diz.

Isso é um diálogo típico de início de relacionamento. Depois que um casal se estabelece, a pergunta se torna uma relíquia.

- Estou pensando que não acredito muito em cenas como a do dia do casamento de Julia Roberts em Noiva em Fuga - ou noivo.

- Você não acredita nisso?

Prossigo com cuidado:

- Eu só acho dispensável... é ruim, desnecessário - digo. - Se alguém vai cancelar, deve fazer isso antes do dia do casamento.

Minha mensagem não é exatamente sutil.

- Bem, eu concordo, mas você não acha melhor abandonar o barco do que cometer um erro? Você não acha que deve isso à outra pessoa, "você mesmo, a toda a instituição do casamento? Dizer alguma coisa. ainda que você só se dê conta disso tarde demais?

- Não estou de modo algum defendendo esse tipo de erro. Só estou dizendo que essa é uma conclusão a que se deve chegar antes do dia do casamento. É para isso que servem os noivados. E, na minha opinião. quando chega o dia do casamento, não tem mais volta. Engula e faça o melhor que puder. Dizer à noiva quando ela já está com o vestido é um golpe baixo.

Começo a imaginar Cho nesse cenário humilhante e minha compaixão por ela é inequívoca.

- Você acha? Mesmo que acabe tudo em divórcio? - pergunta ele.

- Mesmo assim. Pergunta àquela garota se ela prefere se divorciar ou ser largada de vestido, na frente de todo mundo.

Ele faz um "hum" sem se comprometer, então não consigo saber se ele concorda. Fico imaginando o que isso tudo vai significar para nós dois. Ou se ele nem mesmo está pensando na gente. Ele tem de estar. Sinto meus músculos tensos, meu pé se contrai de tão nervosa que estou. Lembro que ainda não estamos no Quatro de Julho. Não quero mais pensar sobre isso de jeito nenhum.

Estico meu corpo por cima de Harry e ligo o som. O Creedence Clearwater Revival está cantando "Lookin' Out My Back Door", Isso é que é música animada. Exatamente o que eu precisava para bloquear as imagens do casamento. Em vez disso, imagino uma viagem de carro com Harry. Estamos num conversível com a capota arriada, óculos escuros, dirigindo sem pressa um longo trecho de estrada, sem nenhum outro carro por perto.

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