CAPÍTULO TRÊS



TRÊS

Quando acordo na manhã seguinte, aquela garota despreocupada tomando um milk-shake já foi embora, corroída pela culpa e por trinta anos de obediência. Não consigo mais racionalizar o que fiz. Cometi um ato deplorável contra uma amiga, violei um preceito fundamental da fraternidade. Não há justifIcativa.
Então, Plano B: vou fingir que nada aconteceu. Minha transgressão foi tão grande que não tenho escolha, a não ser desejar que toda a coisa desapareça. E, continuando com os negócios de sempre, abraçando minha rotina das manhãs de segunda-feira, é isso que pretendo fazer.

Tomo um banho, seco o cabelo, visto o meu terninho preto mais confortável com sapatos de salto baixo, pego o metrô até Grand Central, compro um café e o jornal na minha banca de sempre, depois subo dois lances de escadas rolantes e pego um elevador até o meu escritório no prédio da MetLife. Cada parte da minha rotina me leva um passo mais longe de Harry e do Incidente.

Chego ao escritório às 8h30, cedo demais para os padrões dos escritórios de advocacia. Os corredores estão silenciosos. Nem mesmo as secretárias chegaram. Estou passando para a seção de notícias locais do jornal, bebericando meu café, quando noto a luz vermelha de mensagens piscando no meu telefone - geralmente um sinal de que há mais trabalho à minha espera. Algum daqueles sócios imbecis do escritório deve ter me telefonado durante o único fim de semana da história recente em que deixei de checar minhas mensagens. Aposto todas as minhas fichas em Lee, o homem que domina minha vida e o advogado mais imbecil de todos os que povoam estes seis andares de escritórios. Digito minha senha, espero ...

"Você tem uma nova mensagem de um telefone externo. Recebida hoje, às 7h42...", a gravação me informa.

Odeio essa mulher automatizada. Com bastante freqüência ela é portadora de más notícias e faz isso com uma voz alegre. Eles deveriam ajustar essas gravações nos escritórios de advocacia, adotar uma voz mais sóbria: "Ô-ô" - com a música ameaçadora do filme Tubarão ao fundo - "você tem quatro mensagens novas ...".

O que é desta vez?, penso enquanto aperto o play.

- Oi, Hermione... Sou eu... Harry... Quis telefonar para você ontem para conversar sobre sábado à noite, mas ... simplesmente não deu. Acho que a gente deveria conversar sobre isso, você não acha? Telefona para mim quando puder. Devo estar por aqui o dia todo.

Meu coração sucumbe. Por que ele não adota a boa e velha técnica de evitar e ignorar o assunto, nunca mais falar nisso? Essa era a minha tática de jogo. Não é de se estranhar que eu odeie meu trabalho. Sou uma advogada da área de litígios, detesto confrontação. Pego uma caneta e fico batendo na beirada da mesa. Ouço minha mãe me dizer para parar com isso. Largo a caneta e fico olhando para a luz piscando. A mulher exige que uma decisão seja tomada a respeito desta mensagem - posso ouvir outra vez, armazenar ou apagar.

Sobre o que ele quer conversar? O que há para ser dito? Coloco a mensagem para tocar mais uma vez, na expectativa de que as respostas me ocorram com o som da voz dele, com sua cadência, mas Harry não deixa transparecer nada. Ouço vezes e mais vezes até que a voz dele começa a soar distorcida, exatamente como uma palavra soa na sua boca quando você a repete o bastante. Ovo, ovo, ovo, ovo. Essa costumava ser a minha favorita. Eu a repetia várias vezes, até parecer que eu estava dizendo a palavra errada para a substância amarela que eu logo comeria no café da manhã.

Ouço Harry uma última vez antes de apagá-la. A voz dele definitivamente soa diferente. Isso faz sentido porque, de certa maneira, ele está diferente. Nós dois estamos. Porque mesmo que eu tente esquecer o que aconteceu, mesmo que Harry não mencione mais o Incidente depois de um telefonema rápido e sem jeito, nós estaremos para sempre na Lista um do outro - aquela lista que todo mundo tem, seja registrada num caderno espiral secreto ou guardada num canto da memória. Seja curta ou longa. Seja organizada por desempenho, importância ou data. Seja completa com primeiro nome, nome do meio e sobrenome ou meras descrições, como na lista de Cho: "Delta Sig com músculos deltóides de matar ...".

Harry está para sempre na minha Lista. De repente, sem querer, penso em nós dois juntos na cama. Durante aqueles momentos passageiros, ele foi apenas Harry - destacado de Cho. Algo que há muito tempo ele não era. Algo que ele não era desde o dia em que apresentei os dois.

Conheci Harry durante o meu primeiro ano no curso de Direito na Universidade de Nova York. Diferente da maioria dos alunos que vai direto para o curso de Direito quando não consegue pensar em nada melhor para fazer com históricos escolares brilhantes, Harry Potter era mais velho, com experiência de vida de verdade. Ele havia trabalhado como analista de mercado na Goldman Sachs, o que superava em muito os meus estágios de 9h às 17h durante o verão e os trabalhos de escritório, preenchendo formulários e atendendo telefonemas. Harry era seguro, relaxado e tão bonito que era difícil parar de olhar para ele. Eu estava certa de que se transformaria no Cedrico Digorry e no Miguel Cornner do curso de Direito. Como era de se esperar, estávamos apenas na nossa primeira semana de aula quando começou um zunzunzum a respeito dele: as mulheres especulavam sobre seu estado civil, notando que seu dedo anular esquerdo não tinha nenhum adorno ou, por outro lado, preocupando-se que ele fosse bem vestido e bonito demais para ser heterossexual.

Mas descartei Harry de cara, convencendo a mim mesma de que sua aparente perfeição era entediante. Uma postura que foi até melhor para mim, porque também sabia que ele não era para o meu bico. (Odeio essa expressão e a presunção de que as pessoas escolhem seus parceiros baseadas tão fortemente na aparência, mas é difícil negar esse princípio quando você dá uma olhada em volta - num casal, os dois parceiros geralmente se caracterizam por um poder de atração semelhante e, quando isso não acontece, salta aos olhos.) Além do mais, eu não estava tomando um empréstimo de trinta mil dólares por ano só para arranjar um namorado.

E, para falar a verdade, provavelmente teria mesmo passado três anos sem falar com ele, se por acaso não tivéssemos acabado sentando perto um do outro na aula de Responsabilidade Civil, uma aula com lugares marcados, ministrada pelo sardônico professor Snape. Apesar de muitos professores na Universidade de Nova York usarem o método socrático, apenas Snape o utilizava como uma ferramenta para humilhar e torturar seus alunos. Harry e eu nos unimos pelo ódio que sentíamos por nosso cruel professor. Enquanto eu tinha um medo irracional de Snape, a reação do Harry era mais de repugnância.

- Que babaca - resmungava ele depois da aula, geralmente depois de Snape ter levado algum colega às lágrimas. - Eu adoraria tirar esse sorrisinho afetado da cara pedante dele.

Aos poucos, nossas lamentações se transformaram em conversas mais demoradas na sala dos alunos ou durante passeios pelo parque. Começamos a estudar juntos uma hora antes da aula para nos prepararmos para o inevitável - o dia em que Snape se dirigiria a nós. Eu tinha pavor de que chegasse a minha vez, porque sabia que seria um massacre, mas no íntimo não via a hora de Harry ser chamado. Snape ia atrás dos fracos e daqueles que se intimidavam e Harry não se encaixava em nenhuma dessas duas categorias. Tinha certeza de que ele não se renderia sem lutar.

Ainda me lembro muito bem. Snape de pé, atrás do pódio, examinando o mapa da turma - um esquema com nossos rostos recortados do livro do primeiro ano -, praticamente salivando ao escolher sua presa. Ele espiou por sobre os óculos pequenos e arredondados (do tipo que quase poderia ser chamado de pincenê), na direção dos alunos em geral, e disse:

- Senhor Pootter.

Snape tinha pronunciado errado o nome de Harry.

- É "Potter" - Harry disse, sem hesitar.

Perdi o fôlego; ninguém corrigia Snape. Agora Harry ia se dar mal.

- Bem, perdão, senhor Pootter - Snape disse, com uma pequena reverência fingida. - Palsgraf versus companhia ferroviária de Long Island.

Calmo, Harry não se mexeu na cadeira e manteve o livro fechado, enquanto o resto da classe nervosamente folheava o material em busca do caso que havíamos sido instruídos a ler na noite anterior.

O caso envolvia um acidente ferroviário. Enquanto corria para entrar num trem, um funcionário da ferrovia derrubou um pacote de dinamite que estava na mão de um passageiro, causando ferimentos em outro passageiro, a senhora Palsgraf. O juiz Cardozo, como na maior parte das decisões precedentes, sustentou que a senhora Palsgraf não era uma "vítima previsível" e, como tal, não poderia ser indenizada pela companhia ferroviária. Talvez os funcionários da companhia pudessem ter previsto o dano para a pessoa que portava o pacote, a Corte explicou, mas não o dano para a senhora Palsgraf.

- O senhor acha que a vítima tem direito a ser indenizada? - perguntou Snape para Harry.
Harry não disse nada. Por uma fração de segundo fiquei em pânico imaginando que ele tivesse paralisado, como outros antes dele. Diga não; pensei, mandando para ele ondas cerebrais intensas. Siga a mesma linha das sentenças anteriores. Mas quando olhei para sua expressão e para o modo como seus braços estavam cruzados sobre o peito, percebi que estava apenas sem pressa, num contraste marcante com o modo como a maioria dos estudantes de primeiro ano oferecia respostas rápidas e nervosas sem pensar, como se o tempo de reação pudesse compensar a dificuldade de compreensão.

- Na minha opinião? - indagou Harry.

- Estou me dirigindo ao senhor, senhor Potter. Portanto, sim, estou pedindo sua opinião.

- Eu diria que sim, a vítima deveria ser indenizada. Concordo com o voto divergente do juiz Andrew.

- Ohhhh, é mesmo? - a voz de Snape era alta e nasalada.

- Sim. É mesmo.

Fiquei surpresa com a resposta dele, já que havia me dito um pouco antes da aula que não sabia que as pessoas já fumavam crack em 1928, porque o juiz Andrew certamente estava drogado quando deu seu voto divergente. Fiquei ainda mais surpresa pelo descarado "é mesmo" atrelado ao final da resposta, como se para atingir Snape.

O peito magricela de Snape se expandiu visivelmente.

- Então você acha que a segurança deveria ter previsto que um inofensivo pacote medindo quarenta centímetros de comprimento, embrulhado em jornal, continha explosivos e causaria danos à vítima?

- Era certamente uma possibilidade.

- Será que ela deveria ter previsto que o pacote causaria dano a qualquer pessoa no mundo? - perguntou Snape, com um crescente sarcasmo.

- Eu não disse "qualquer pessoa no mundo". Eu disse "à vítima". Na minha opinião, a senhora Palsgraf estava em zona de perigo.

Snape aproximou-se da nossa fileira todo empertigado e jogou seu jornal sobre o livro fechado de Harry.

- O senhor se importaria de me devolver o meu jornal?

- Preferiria não fazer isso - disse Harry.

O estado de choque que se instalou na sala era quase palpável. O resto de nós teria simplesmente cooperado e devolvido o jornal, mero objeto de cena no interrogatório de Snape.

- O senhor preferiria não devolver? - disse Snape erguendo a cabeça.

- Correto. Poderia haver dinamite embrulhada dentro dele.

Metade da sala engoliu em seco, a outra metade teve de fazer força para não rir. Obviamente, Snape tinha alguma carta escondida na manga, alguma forma de reverter os fatos contra Harry. Mas Harry não mordeu a isca. Snape estava visivelmente frustrado.

- Bem, vamos supor que o senhor de fato tenha escolhido me devolver o jornal e que o pacote de fato contenha uma banana de dinamite e que de fato cause algum ferimento ao senhor. E então, senhor Potter?

- Então eu processaria o senhor e provavelmente ganharia.

- E essa indenização seria consistente com a fundamentação do juiz Cardozo, que seguia a mesma linha das sentenças anteriores?

- Não, não seria.

- É mesmo? E por que não?

- Porque eu processaria o senhor por delito intencional, e Cardozo falava de negligência, não é? - Harry levantou a voz para ficar no mesmo tom de Snape.

Acho que parei de respirar quando Snape juntou as palmas das mãos e aproximou-as com cuidado contra o peito, como se estivesse rezando.

- Sou eu quem faz as perguntas nesta sala. Se o senhor não se importa, senhor Potter.

Harry deu de ombros, como se dissesse que Snape podia fazer como
bem entendesse, que para ele não fazia diferença.

- Bem, vamos supor que acidentalmente eu tenha deixado cair o jornal sobre a sua mesa e o senhor tenha me devolvido e se machucado. Será que o juiz Cardozo lhe concederia indenização total?

- É claro.

- E por quê?

Harry suspirou para mostrar que o exercício era maçante e aí disse rápida e claramente:

- Porque era inteiramente previsível que a dinamite pudesse me causar ferimentos. Sua ação de deixar cair o jornal sobre meu espaço pessoal violou meu interesse protegido por lei. Sua negligência ocasionou um risco aparente aos olhos da vigilância comum.

Consultei as partes destacadas no meu livro. Harry estava citando literalmente a opinião do juiz Cardozo, sem nem ao menos dar uma olhada no livro. A classe inteira estava maravilhada - ninguém tinha se saído tão bem, ainda mais com Snape tão perto.

- E se a senhorita Myers processasse – Snape perguntou, apontando para uma trêmula Julie Myers do outro lado da sala, sua vítima do dia anterior -, será que ela teria direito à indenização?

- De acordo com o que sustenta Cardozo ou com o voto divergente de Andrew?

- Do juiz Andrew. Já que é a opinião com a qual o senhor compartilha.

- Sim. É dever de todos evitar atos que coloquem em risco a vida de outras pessoas além do aceitável- disse Harry, numa outra citação completa do voto divergente.

O interrogatório prosseguiu dessa maneira por quase uma hora, Harry distinguindo nuanças em pequenos detalhes dos fatos modificados pelo professor, nunca hesitando, sempre respondendo de forma conclusiva.

Por incrível que pareça, quando já havia se passado uma hora completa, Snape disse:

- Muito bem, senhor Potter.

Era a primeira vez que isso acontecia.

Saí da sala exultante. Harry havia triunfado por todos nós. A história se espalhou por todas as turmas de primeiro ano, rendendo a ele mais pontos com as garotas, que há muito tempo já tinham decidido que ele estava totalmente disponível.

Contei a história para Cho também. Ela havia se mudado para Nova York na mesma época que eu, só que sob circunstâncias completamente diferentes. Eu estava lá para me tornar advogada; ela veio sem trabalho, sem plano e sem dinheiro suficiente. Deixei que ela dormisse num futon no meu dormitório até ela encontrar algumas garotas para dividir um apartamento - três aeromoças da American Airlines em busca de alguém para espremer um quarto corpo no já tão dividido conjugado delas. Cho pediu dinheiro emprestado aos pais para pagar o aluguel enquanto procurava um trabalho e finalmente se estabeleceu como garçonete no Monkey Bar. Pela primeira vez na história da nossa amizade eu estava mais feliz com a minha vida em comparação com a dela. Eu era tão pobre quanto ela, mas pelo menos tinha um plano. As perspectivas de Cho não eram tão boas, já que a sua média final na Universidade de Indiana não era das melhores.

- Você é tão sortuda - Cho resmungava enquanto eu tentava estudar.

Não, sorte é o que você tem, pensava eu. Sorte é comprar um bilhete de loteria e ficar rica. Nada na minha vida tem a ver com sorte - tudo é uma questão de trabalho duro, uma luta ladeira acima. Mas, é claro, eu nunca disse isso. Disse apenas que as coisas logo, logo iriam mudar para ela.

E como era de se esperar, mudaram. Mais ou menos duas semanas depois, um homem entrou no Monkey Bar, pediu um whiskey sour e começou a bater papo com Cho. Quando acabou o seu drinque, já tinha prometido a ela um trabalho numa das melhores empresas de Relações Públicas de Nova York. Ele lhe disse para aparecer para uma entrevista, mas que ele (duas piscadelas) tomaria providências para que ela conseguisse o cargo. Cho pegou o cartão dele, me pediu para revisar o currículo dela, foi para a entrevista e recebeu uma oferta na hora. O salário inicial era de 70 mil dólares. Mais uma verba de representação. Praticamente o que eu conseguiria ganhar se me desse bem e arranjasse um trabalho num escritório de Nova York.

Então, enquanto eu suava a camisa e acumulava dívidas, Cho começava sua glamourosa carreira como RP. Planejava festas, promovia as últimas tendências da moda da estação, ganhava um monte de coisas de graça e saía com uma série de homens bonitos. Em sete meses, deixou as aeromoças comendo poeira e foi morar com uma colega de trabalho chamada Pansy, uma garota esnobe e bem relacionada de Greenwich.

Cho tentou me incluir em sua vida acelerada, embora eu raramente tivesse tempo de comparecer aos eventos, festas ou encontros às cegas que ela armava para mim com caras que jurava ser "totalmente gatos", mas que eu sabia que eram apenas as sobras dela.

O que me traz de volta ao Harry. Falei muito bem dele para Cho e Pansy, disse a elas como ele era incrível- inteligente, bonito, engraçado. Em retrospecto, não sei bem por que fiz isso. Talvez porque fosse verdade. Mas talvez porque tivesse um pouco de ciúme da vida glamourosa que elas levavam e quisesse apimentar um pouco a minha. Harry era o que havia de melhor no meu arsenal.

- Então por que você não gosta dele? - perguntava Cho.

- Ele não faz o meu tipo - dizia eu. - Somos apenas amigos.

O que era verdade. Claro, houve momentos em que senti um lampejo de interesse ou o coração disparar um pouco quando sentava perto dele. Mas me mantive alerta para não me apaixonar, sempre me lembrando que caras como Harry saíam apenas com garotas como Cho.
Foi só no semestre seguinte que os dois se conheceram. Um grupo da faculdade, incluindo Harry, planejou uma saída de última hora numa quinta-feira à noite. Há muitas semanas Cho vinha me pedindo para conhecer Harry, então telefonei a ela e disse que era para ela estar no Red Lion às 20h. Ela apareceu, mas Harry não. Pude perceber que Cho encarou a saída como um esforço em vão, reclamando que o Red Lion não tinha nada a ver com ela, que ela já tinha passado da época desses bares encardidos, cheios de jovens universitários (lugares que ela freqüentava até alguns meses antes), que a banda que estava tocando era uma droga e será que nós poderíamos, por favor, ir para algum lugar mais agradável, onde as pessoas valorizassem uma aparência bem-cuidada?

Naquele exato momento, Harry apareceu caminhando bar adentro com um casaco preto de couro e uma bela suéter bege de cashmere. Ele veio em minha direção e me deu um beijo no rosto, coisa com a qual eu ainda não estava acostumada - o pessoal do Meio-Oeste não cumprimenta desse jeito. Apresentei-o a Cho e ela apertou o botão do charme, dando risadinhas, brincando com o cabelo e balançando a cabeça enfática todas as vezes que ele dizia alguma coisa. Harry foi agradável com ela, mas não pareceu interessado demais e, num dado momento, enquanto ela despejava uma lista de nomes de pessoas da Goldman - Você conhece esse ou aquele cara? -, Harry de fato pareceu estar fazendo força para não bocejar. Ele foi embora antes da gente, dando tchau para o grupo e dizendo para Cho que tinha sido legal conhecê-la.

No caminho de volta para o meu quarto perguntei o que ela tinha achado dele.

- Ele é bonitinho - disse, oferecendo o mínimo de aprovação. Sua resposta indiferente me irritou. Ela não podia elogiá-lo porque ele não havia ficado deslumbrado por ela o suficiente. Cho esperava ser a pessoa a ser conquistada. E era isso que eu tinha passado a esperar também.

No dia seguinte, quando Harry e eu tomamos um café, imaginei que ele fosse mencionar Cho. Tinha certeza de que era isso o que ele faria, mas não fez. Uma pequena - está bem, uma grande - parte de mim gostou de contar a Cho que o nome dela não tinha sido mencionado. Pela primeira vez alguém não se desdobrava para estar com ela.

Eu deveria ter adivinhado.

Uma semana depois, do nada, Harry me perguntou qual era a da minha amiga.

- Que amiga? - perguntei me fazendo de boba.

- Você sabe, aquela morena do Red Lion?

- Oh, Cho - respondi. Depois fui direto ao assunto. - Você quer o telefone dela?

- Se ela for solteira.

Dei as notícias para ela naquela noite. Ela sorriu fazendo charme.

- Ele é bem bonitinho. Vou sair com ele.

Harry levou mais duas semanas para telefonar a ela. Se ele esperou de propósito, a estratégia fez maravilhas. Ela estava num frenesi quando ele a levou ao Union Square Café. O encontro obviamente transcorreu bem, porque no dia seguinte eles foram tomar um brunch no Village. Logo depois disso, Cho e Harry estavam ambos fora do mercado.

No começo o romance deles foi turbulento. Eu sempre soube que Cho adorava brigar com os namorados - não tinha graça, a não ser que envolvesse muito drama -, mas eu via Harry como uma criatura racional e calma, superior a esse tipo de coisa. Talvez ele tivesse sido assim com outras garotas, mas Cho o havia sugado para o seu mundo de caos e altas emoções. Ela achava um número de telefone num dos seus cadernos de faculdade (ela era uma bisbilhoteira assumida), fazia a pesquisa, chegava até uma antiga namorada e,se recusava a falar com ele. Um dia ele foi para a aula de Responsabilidade Civil com uma expressão meio acanhada, com um corte na testa, bem acima do olho esquerdo. Cho tinha lançado um cabide de arame nele num acesso de ciúme.

O contrário também acontecia. Nós saíamos juntos e Cho ficava de papo com um outro cara no bar. Eu observava enquanto Harry dava umas olhadas furtivas na direção deles, até que não conseguia mais suportar. Ia até lá para buscá-Ia, parecendo furioso, mas sem perder a compostura, e eu a escutava justificando seus flertes por conta de ligações sem muita importância com o cara:

- O que eu quero dizer é que estava apenas conversando sobre os nossos irmãos, e como eles eram da mesma porra de fraternidade estudantil. Meus Deus, Harry! Você não precisa reagir dessa forma!

Mas finalmente o relacionamento deles se estabilizou, as brigas se tornaram menos intensas e menos freqüentes e ela se mudou para o apartamento dele. Então, no inverno passado, Harry a pediu em casamento. Eles marcaram a data para um fim de semana em setembro e ela me escolheu como madrinha.

Eu o conheci antes, agora digo para mim mesma. Não é mais inexpugnável do que a defesa no caso Rony, mas eu me agarro nisso por uns momentos. Imagino minha jurada compreensiva se inclinando para frente enquanto absorve essa informação. Ela até mesmo levanta a questão durante as deliberações.

- Se não fosse pela Hermione, Harry e Cho nunca teriam se encontrado. Portanto, de certa forma, Hermione merece um tempo com ele.

Os outros jurados olham para ela incrédulos, e a Terninho Chanel fala para ela não ser ridícula. Que isso não tem nada a ver com nada.

- De fato, pode até ser que funcione ao contrário - retruca Terninho Chanel - Hermione teve sua chance de estar com Harry, mas essa oportunidade já passou há muito tempo. E agora ela é a madrinha. A madrinha! Trata-se da traição máxima!

Trabalho até tarde naquela noite, adiando retornar a ligação de Harry. Considero até mesmo esperar até amanhã de manhã, até o meio da semana, ou nem telefonar. Só que quanto mais eu esperar, mais estranho será quando inevitavelmente me encontrar com ele. Então eu me forço a sentar e ligar. Torço para que caia na secretária eletrônica. São 22h30. Com o mínimo de sorte ele já vai ter ido embora, vai estar em casa ao lado da Cho.

- Harry Potter - responde ele, o tom é todo profissional Harry está de volta à Goldman Sachs, tendo sabiamente optado. por trilhar o caminho dos bancos em vez do caminho dos escritórios de advocacia. O trabalho é mais interessante e o dinheiro é melhor.

- Mione! - Ele parece genuinamente feliz que eu tenha telefonado, embora um pouco nervoso, a voz meio alta demais. - Obrigado por ter ligado. Estava começando a achar que você não ia telefonar.

- Eu ia. É só que ... estava muito ocupada ... um dia louco. - Gaguejo. Minha boca está completamente seca.

- É, aqui também está uma loucura. Segunda-feira típica - diz ele, soando um pouco mais relaxado.

- É...

Há uma pausa incômoda - bem, pelo menos eu acho incômoda. Será que ele espera que eu mencione o Incidente?

- Então? Como é que você está se sentindo? - a voz dele está mais baixa.

- Como estou me sentindo? - meu rosto está pegando fogo, estou
suando, não consigo afastar a idéia de vomitar o sushi que comi no jantar.

- Quer dizer, o que você acha do que aconteceu sábado? - a voz dele fica ainda mais baixa, quase um sussurro. Talvez ele esteja apenas sendo discreto, certificando-se de que ninguém no escritório o escuta, mas o tom é de intimidade.

- Não sei o que você está me perguntando ...

- Você está se sentindo culpada?

- É claro que estou me sentindo culpada. Você não?

Olho pela janela para as luzes de Manhattan, na direção do seu escritório no Centro.
- Bem, é, eu me sinto - ele diz com sinceridade. - Obviamente não deveria ter acontecido. Não há dúvidas a esse respeito. Foi errado ... e eu não quero que você pense que, você sabe, que isso é uma coisa que faço sempre. Eu nunca tinha traído a Cho antes. Nunca ... você acredita, não?

Digo a ele que é claro que sim. Quero acreditar nele.

Outro silêncio.

- Pois é, para mim essa foi a primeira vez - diz ele. Mais silêncio. Imagino Harry com os pés em cima da mesa, o colarinho desabotoado, a gravata jogada sobre o ombro. Ele fica bem de terno. Quer dizer, ele fica bem com qualquer coisa. E sem nada também.

- Ahã - digo. Estou segurando o telefone com tanta força que os meus dedos doem. Troco de mão e enxugo a mão suada na saia.

- Eu me sinto muito mal que você seja amiga tão antiga da Cho, e essa coisa que aconteceu entre nós dois ... deixa você numa posição pavorosa - ele pigarreia e continua. - Mas, ao mesmo tempo, não sei...

- O que você não sabe? - pergunto, contra minha decisão sensata de que é melhor colocar um ponto final na conversa, desligar o telefone, usar meu instinto e fugir.

- Não sei. Eu só... bem, de alguma maneira ... bem, falando objetivamente, sei que o que fiz foi muito errado. Mas simplesmente não me sinto culpado. Isso não é horrível? ... Você acha que sou pior por causa disso?

Não tenho a menor idéia de como responder a essa pergunta. "Sim" parece cruel e crítico; "não" pode dar bandeira. Encontro um meio-termo seguro.

- Não tenho como julgar ninguém, tenho? Eu estava lá... eu também fiz.

- Eu sei, Hermione. Mas a culpa foi minha.

Penso no elevador, a sensação do cabelo dele entre os meus dedos.

- Nós dois estávamos errados ... Nós dois estávamos bêbados. Devem ter sido aquelas doses ... simplesmente me pegaram de jeito e eu não tinha comido muito naquele dia - fui falando na esperança de que a conversa acabasse.
Harry me interrompe.

- Eu não estava tão bêbado assim - diz ele com todas as letras, quase desafiador.
Você não estava tão bêbado?

Como se tivesse lido meus pensamentos, ele continuou.

- Quer dizer, é verdade, tomei alguns drinques, estava mais desinibido, mas sabia o que estava fazendo e, de certa forma, acho que quis que aquilo acontecesse ... Bem, suponho que essa seja uma declaração um tanto óbvia ... Mas o que eu quero dizer é que conscientemente eu quis que aquilo acontecesse. Não que tivesse sido premeditado. Mas já tinha passado pela minha cabeça várias vezes antes ...

Várias vezes antes? Quando? Na faculdade? Antes ou depois de você conhecer Cho?

De repente, lembro de uma ocasião pré-Cho quando Harry e eu estávamos estudando para as nossas provas de Responsabilidade Civil na biblioteca. Era tarde e nós estávamos meio grogues, quase delirantes por falta de sono e excesso de cafeína. Harry começou a imitar Snape, citando certas frases preferidas dele, e eu ri tanto que cheguei a chorar. Quando finalmente me recompus, ele se inclinou sobre a mesa estreita e enxugou uma lágrima do meu rosto com seu polegar. Exatamente como numa cena de filme, com a diferença que nos filmes as lágrimas geralmente são de tristeza. Ficamos olhando fixamente um para o outro.

Fui a primeira a desviar o olhar, voltando para o livro, as palavras pulando por toda a página. Não pude, por mais que me esforçasse, me concentrar em negligência ou causa imediata, apenas na sensação de seu dedo em meu rosto. Mais tarde, Harry se ofereceu para me acompanhar de volta ao meu dormitório. Educadamente disse que não precisava, que estaria bem sozinha. Naquela noite, quando começava a dormir, decidi que tinha apenas imaginado sua intenção, que Harry nunca me consideraria mais do que uma amiga. Ele estava apenas sendo gentil.

Ainda assim, às vezes imagino o que teria acontecido se eu não tivesse ficado tão na defensiva. Se eu tivesse dito sim à oferta dele naquela noite. Neste momento estou pensando intensamente nisso.

Harry continua falando.
- É claro que estou bem consciente de que isso nunca mais vai poder acontecer - diz ele com convicção. - Certo? - Essa última palavra é sincera, ele está quase sem defesas.

- Certo. Nunca mais, em tempo algum - digo e na mesma hora me arrependendo da minha juvenil escolha de palavras. - Foi um erro.

- Mas não me arrependo. Eu deveria, mas simplesmente não me arrependo - diz ele.

Isso é tão estranho, penso, mas não digo nada. Apenas fico parada, esperando que ele fale novamente.

- Enfim, Hermione, sinto muito por ter colocado você nesta posição. Mas achei que deveria saber como me sinto - Harry conclui e depois ri nervosamente.

Digo tudo bem, agora eu sei, e acho que devemos seguir em frente e deixar isso para trás e todas essas coisas que achei que Harry tinha ligado para dizer. Nós nos despedimos, então desligo o telefone e fico olhando pela janela, atordoada. A ligação que deveria representar um ponto-final apenas trouxe mais desassossego. E uma minúscula inquietação dentro de mim, uma inquietação que decido sufocar.
Levanto, apago a luz do escritório e desço até o metrô, tentando tirar Harry da cabeça. Mas enquanto espero na plataforma, volto a me lembrar do nosso beijo no elevador. A sensação do cabelo dele. E a forma como ele dormiu na minha cama, coberto só em parte por meus lençóis. Essas são as imagens das quais eu me lembro mais. São como fotografias de ex-namorados: você quer desesperadamente jogar fora, mas não tem coragem de se livrar delas. Então, em vez de jogar fora, guarda numa caixa de sapato velha, no fundo do armário, e decide que não há mal nenhum em guardá-las. Só para o caso de querer abrir a caixa e lembrar alguma coisa dos bons tempos.

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