CAPÍTULO DOIS



DOIS

Acordo com meu telefone tocando e por um segundo sinto-me desorientada em meu próprio apartamento. Então ouço a voz estridente de Cho na minha secretaria eletrônica, insistindo que eu atenda, atenda, por favor, atenda. De repente, meu crime entra em foco. Sento rápido demais e meu apartamento gira. As costas de Harry estão voltadas para mim, bem delineadas e com sardas esparsas. Dou uma cutucada nele com força.

Ele se vira e olha para mim.

— Ai, meu Deus! Que horas são?

Meu radio-relógio nos informa que são 7h15. Faz duas horas que tenho trinta anos. Correção — uma hora, nasci no fuso horário da região central do país.
Harry sai rápido da cama catando suas roupas, que estão espalhadas pelo quarto. A secretária eletrônica emite dois bipes, interrompendo Cho. Ela telefona de novo e fica o tempo todo falando sobre Harry não ter voltado para casa. Mais uma vez, minha máquina a interrompe no meio de uma frase. Ela telefona uma terceira vez, gemendo:

— Acorda, vai, me telefona! Preciso de você!

Quando começo a me levantar, percebo que estou nua. Sento de novo e me cubro com um travesseiro.

— Oh, meu Deus. O que a gente faz? — minha voz está rouca e trêmula. — Será que eu devo atender? Dizer a ela que você dormiu aqui?

— Que diabos, não! Não atenda.. deixa eu pensar por uns segundos.
Ele se senta, só de cueca, e esfrega o maxilar, agora coberto pelo sombreado de inicio de barba.

Um pavor doentio e capaz de me deixar sóbria se apodera de mim. Começo a chorar. O que nunca ajuda em nada.

— Olha só, Hermione, não chora— diz Harry. — Tudo vai acabar bem.

Ele veste o jeans e depois a camisa, puxa o zíper, enfia a camisa para dentro da calça e abotoa com eficiência, como se fosse uma manhã como outra qualquer. Em seguida verifica as mensagens no celular.

— Merda, 12 chamadas não atendidas — diz ele, sem parecer muito preocupado. Apenas seus olhos revelam uma certa ansiedade.

Depois de se vestir, Harry senta de novo na beira da cama e apóia a testa sobre as mãos. Percebo que ele está respirando forte pelo nariz. O ar para dentro e para fora. Então ele olha para mim, recomposto.

—Certo. É isso que vai acontecer. Mione, olha para mim.

Obedeço às suas instruções, ainda agarrada ao travesseiro.

— Tudo vai ficar bem. Escuta só — explica Harry, como se estivesse conversando com um cliente numa sala de reuniões.

— Estou ouvindo. —digo.

— Vou dizer a ela que fiquei na rua até mais ou menos cinco horas e depois fui tomar café com Draco. Pronto, ela não vai desconfiar de nada.

— O que eu falo para ela? — quero saber. Mentir nunca foi o meu forte.

— Diga apenas que você saiu da festa e veio para casa... Diga que você não consegue se lembrar com certeza se eu ainda estava lá quando você saiu, mas que você acha que eu ainda estava lá com o Draco. E não deixe de dizer que você "acha"... não seja tão taxativa. E isso é tudo o que você sabe, certo? - ele aponta para o meu telefone. - Liga de volta para ela, agora ... vou ligar para o Draco assim que sair daqui. Entendeu?

Balanço afirmativamente a cabeça, meus olhos se enchendo de lágrimas novamente, enquanto ele se levanta.

— E fique calma — diz ele, sem maldade, mas com firmeza. E logo ele já está na porta, uma das mãos na maçaneta, a outra percorrendo o cabelo escuro, longo o suficiente para ser sexy.

— E se ela já tiver falado com o Draco? — pergunto quando Harry já está no meio do corredor. Depois digo para mim mesma: — Estamos muito ferrados. —
Ele se vira e olha pra mim do corredor. Por um segundo acho que está bravo, que vai gritar comigo para que eu me controle. Que isso não é uma questão de vida ou morte. Mas o tom dele é delicado.

— Mione, nós não estamos ferrados. Já resolvi tudo. Você apenas fala o que eu disse para você falar... E ... Hermione?

— O quê?

— Sinto muito.

— É — respondo — Eu também.

Será que estamos falando um com outro ... ou com Cho?

Logo que Harry vai embora, vou para o telefone, ainda me sentido tonta. Demoro alguns minutos, mas finalmente crio coragem para ligar para Cho.
Ela está histérica.

— O filho-da-mãe não veio para casa ontem à noite! É melhor que ele esteja deitado na cama de um hospital!... Você acha que ele me traiu? — Começo a dizer que não, que provavelmente ele apenas saiu com Draco, mas penso melhor. Isso não pareceria óbvio demais? Será que eu diria isso se não soubesse de nada? Não consigo pensar. Minha cabeça está estourando e meu coração batendo forte. De tempos em tempos o quarto volta a girar.

— Tenho certeza de que ele não estava traindo você.

Ela assoa o nariz.

— Por que você tem tanta certeza?

— Porque ele não faria isso com você, Cho.

Não consigo acreditar nas minhas palavras, na facilidade com que elas saem.

— Bem, então onde é que ele está, porra? Os bares fecham lá pelas quatro, cinco horas. Porra são 7h30.

— Eu não sei ... mas tenho certeza de que existe uma explicação lógica. — O que de fato existe.

Ela me pergunta a que horas eu fui embora, se ele ainda estava lá e com quem estava - exatamente as perguntas para as quais Harry me havia preparado. Respondo com cuidado, como fora instruída. Sugiro que ela telefone a Draco.

— Já telefonei — diz ela. — E aquele imbecil não atendeu o maldito celular.

Sim. Nós temos uma chance.

Ouço um clique de uma ligação na espera e Cho desaparece, depois volta, dizendo que é o Harry e que ela vai me telefonar assim que puder.

Levanto e ando cambaleante até o banheiro. Olho no espelho. Minha pela está toda manchada, avermelhada. Meus olhos estão com rodelas de rímel e lápis de maquiagem e ardem porque dormi com as lentes de contato. Tiro as lentes rapidamente, segundos antes de ter ânsias de vômito sobre a privada. Não vomito por causa da bebida desde os tempos de faculdade, e mesmo assim isso só aconteceu uma vez. Porque aprendo com os meus erros. A maior parte das pessoas na faculdade diz: "Nunca mais vou fazer isso". Então fazem de novo no fim de semana seguinte. Mas eu mantenho a palavra. É assim que sou. Vou aprender com essa também. Deixa só eu me safar dessa.

Tomo um banho, fico livre do cheiro de fumaça no cabelo e na pele e deixo o telefone sobre a pia, esperando Cho me ligar dizendo que está tudo bem. Mas as horas passam e ela não liga. Por volta do meio-dia começam as ligações pelo aniversário. Meus pais fazem sua serenata anual e o tradicional "adivinha onde eu estava trinta anos atrás, nesta data?". Consigo disfarçar e brincar com eles, mas não é fácil.

Lá pelas três horas estou sem notícias da Cho e ainda enjoada. Bebo de uma só vez um copo d'água enorme, tomo dois antiácidos e considero a possibilidade de pedir ovos fritos e bacon, remédio em que Cho acredita piamente quando está de ressaca. Mas sei que nada vai aplacar a dor de esperar, imaginando o que estará acontecendo, sem saber se Harry se ferrou, ou se nós dois nos ferramos.

Será que alguém nos viu juntos no 7B? No táxi? Na rua? Alguém além de José, cujo trabalho é não saber? O que estará acontecendo no Upper West Side, no apartamento deles? Será que deu a louca e ele resolveu confessar? Será que ela está fazendo as malas? Será que estão fazendo amor o dia todo para aplacar a consciência pesada dele? Será que ainda estão brigando, dando voltas e mais voltas em torno de acusações e negações?

O medo deve suplantar todas as emoções - seja uma vergonha sufocante ou um arrependimento -, porque, por mais maluco que possa parecer, acho que não estou culpada por ter traído minha melhor amiga. Nem mesmo quando encontro no chão o preservativo que usamos. A única culpa real que reconheço é a de não me sentir culpada. Mas vou me arrepender mais tarde, logo que souber que não corro perigo. Oh, por favor, meu Deus, nunca fiz nada assim. Por favor, permita que eu me safe dessa. Estou disposta a sacrificar toda a minha felicidade futura. Qualquer chance de encontrar um marido.

Penso em todos os acordos que tentei negociar com Ele quando ainda estava na escola, crescendo. Por favor, não permita que eu tire menos de B nesta prova de matemática. Por favor, faço qualquer coisa - até preparar sopa para os pobres todos os sábados em vez de apenas uma vez por mês. Bons tempos aqueles. E pensar que um C algum dia simbolizou tudo o que poderia dar errado no meu mundo tão organizado. Como é que pude, mesmo que de forma passageira, ter optado pelo caminho do mal? Como pude cometer um erro tão enorme, com tanto potencial para alterar minha vida, e tão completamente imperdoável?

Chega finalmente o momento em que não consigo mais suportar. Ligo para o celular da Cho, mas cai direto na caixa-postal. Em seguida ligo para a casa deles, na esperança de que ela atenda. Em vez disso, Harry atende. Eu me retraio toda.

— Oi, Harry. Aqui é a Hermione — digo, tentando soar natural.

Você sabe, a madrinha do seu casamento que está prestes a acontecer, a mulher com quem você foi para a cama na noite passada.

— Oi, Mione — ele diz casualmente. — E aí? Você se divertiu ontem à noite?

Por um segundo acho que ele está falando de nós dois e fico horrorizada com o desprendimento dele. Mas logo ouço Cho ao fundo, clamando pelo telefone, e percebo que ele está apenas se referindo à festa.

— Ah, claro, foi ótimo, uma festa e tanto — mordo meu lábio.
Cho já arrancou o telefone da mão dele. O tom dela é bem alegre, está completamente refeita.

- Puxa, me desculpa, esqueci de ligar de volta para você. Sabe como é, por um tempo a situação esteve dramática por aqui.

— Mas você está bem agora? Está tudo bem com você ... e com Harry? — Tenho dificuldade em dizer o nome dele. Como se de alguma forma fosse dar bandeira.

— Hum, é, espera só um minutinho.

Percebo que ela fechou a porta, ela sempre vai para o quarto quando fala ao telefone. Fico imaginando a cama deles com dossel, a cama da Charles P. Rogers que ajudei Cho a escolher. Logo, logo será o leito nupcial dos dois.

— Ah, é, agora eu estou bem. Ele estava com o Draco, foi só isso. Eles ficaram fora até tarde e acabaram indo tomar café da manhã. Mas é claro, você sabe, ainda estou fazendo o gênero furiosa. Disse que é totalmente patético, um cara de 34 anos, noivo, ficar fora a noite inteira. Patético, você não acha?

— É, acho que sim. Mas sem maiores conseqüências — engulo em seco e penso, sim, aquilo não teria maiores conseqüências. — Bem, fico satisfeita que vocês tenham se entendido.

— É, estou numa boa, eu acho. Mas ainda assim ... ele deveria ter telefonado. Não aceito esse tipo de merda, entende?

— Sei — digo e depois corajosamente acrescento — eu disse que ele não estava traindo você.

— Eu sei... mas ainda assim fico imaginando Harry com alguma stripper desmiolada ou coisa parecida. É a minha imaginação fértil.

Foi isso que a noite passada representou? Sei que não sou uma desmiolada, mas terá sido uma escolha consciente da parte dele ir para a cama com alguém antes do casamento? Não, certamente não. Certamente ele não escolheria a madrinha da noiva.

— Enfim, e você, o que achou da festa? Sou uma amiga tão horrível... fico bêbada e saio cedo. E, oh, merda! Hoje é que é o dia mesmo do seu aniversário. Feliz aniversário! Meu Deus, eu sou a pior de todas, Mione!

É, você é a amiga má.

— Ah, foi ótimo. A festa foi tão divertida. Muito obrigada por ter planejado tudo ... fiquei completamente surpresa ... realmente incrível...

Ouço a porta do quarto deles se abrindo e Harry diz alguma coisa sobre estarem atrasados.

— É, na verdade preciso correr, Mione. Nós vamos ao cinema. Você quer vir?

— Hum, não, obrigada.

— Tudo bem. Mas o jantar de hoje à noite está de pé, certo? No Rain, às oito horas.

Tinha esquecido completamente dos planos de encontrar Harry, Cho e Gina para um pequeno jantar de aniversário. Não há a menor chance de eu conseguir encarar Harry ou Cho hoje à noite - e com certeza não os dois ao mesmo tempo. Digo a ela que não sei se vou, que estou realmente de ressaca. Apesar de ter parado de beber às duas, acrescento, antes de me lembrar que mentirosos costumam oferecer detalhes sem muita importância.

Cho não nota.

- Talvez você se sinta melhor mais tarde ... ligo para você depois do cinema.

Desligo o telefone achando que foi fácil demais. Mas em vez de me sentir aliviada, acabo ficando com uma vaga insatisfação, uma tristeza, desejando que fosse eu quem estivesse indo ao cinema. Não com Harry, é claro. Apenas alguém. Com que rapidez eu dou as costas ao meu acordo com Deus! Quero um marido novamente. Ou pelo menos um namorado.

Sento no sofá com as mãos cruzadas sobre o colo, meditando sobre o que fiz com Cho, esperando a culpa chegar. Não chega. Foi porque tive o álcool como desculpa? Estava bêbada, fora do meu perfeito juízo. Penso na minha aula de Direito Penal no primeiro ano da faculdade. Intoxicação, assim como infância, insanidade, coação e indução, é uma desculpa legal, uma defesa onde o réu não é imputável por ter se engajado numa conduta que de outro modo seria um crime.

Merda. Aquilo foi apenas intoxicação involuntária. Bem, foi Cho quem me fez beber aquelas doses todas. Só que pressão do grupo não constitui intoxicação involuntária. Ainda assim, é um atenuante que o júri pode levar em conta.
Claro, responsabilize a vítima. O que há de errado comigo?

Talvez eu simplesmente seja uma pessoa má. Talvez a única razão para que eu tenha sido boa até agora tenha menos a ver com a minha firmeza de caráter e mais a ver com o medo de ser pega em flagrante. Obedeço às regras porque tenho aversão ao risco. Nunca roubei supermercados quando era adolescente em parte porque sabia que era errado, mas principalmente porque sabia que seria a primeira pessoa a se dar mal. Nunca colei em nenhuma prova pela mesma razão. Até hoje sou assim, não levo pra casa nada do escritório porque de alguma forma acredito que as câmeras de vigilância vão me pegar em flagrante. Então, se é isso que me motiva a ser boa, será que realmente mereço crédito? Será que sou mesmo uma pessoa boa? Ou apenas uma pessimista covarde?

Tudo bem. Talvez eu seja mesmo uma pessoa má. Não há outra explicação plausível para a minha falta de culpa. Será que fiz isso com a Cho de propósito? Será que a noite passada foi motivada por ciúme? Será que me ressinto de sua vida perfeita, da facilidade com que ela consegue as coisas? Ou talvez, de forma subconsciente, em meu estado de embriaguez, estivesse acertando as contas das coisas erradas que fez comigo no passado. Cho não tem sido sempre uma amiga perfeita. Longe disso. Começo a apresentar o caso ao júri, lembrando-me de Rony no tempo do primário. Estou me dando conta de uma coisa... Senhoras e senhores do júri, considerem a história de Rony Weasley ...

Cho Chang e eu crescemos como melhores amigas, ligadas pela geografia, uma força maior do que todas as outras quando se está no primário. Nós nos mudamos para a mesma rua sem saída em Naperville, Indiana, no verão de 1976, bem a tempo de assistir ao desfile do bicentenário da cidade. Marchamos lado a lado, batendo os mesmos tambores vermelhos, brancos e azuis que o pai dela comprou para a gente. Ainda me lembro da Cho se inclinando para o meu lado e dizendo: "Vamos fazer de conta que somos irmãs." A idéia me deixou arrepiada ... uma irmã!

E naquele exato momento foi o que ela se tornou para mim. Dormíamos uma na casa da outra todas as sextas e sábados durante o ano e na maior parte dos dias da semana durante o verão. Fomos capazes de captar as nuanças das famílias uma da outra, detalhes que você só conhece quando é vizinha de porta de uma amiga. Sabia, por exemplo, que a mãe de Cho dobrava as toalhas em três, com todo o capricho, enquanto via TV, que o pai dela tinha assinatura da Playboy, que gulodices eram permitidas no café da manhã e que as palavras "merda" e "porra" não tinham nada de mais.
Tenho certeza de que ela também observou muita coisa na minha casa, embora seja difícil dizer o que faz da sua vida uma vida única. Dividíamos tudo roupas, brinquedos, quintais, até mesmo nosso amor por Andy Gibb, o Bee Gees, e por unicórnios.

Na 5a série descobrimos os meninos. O que me leva ao Rony, minha primeira paixão de verdade. Cho, assim como todas as outras meninas da sala, gostava de Cedrico Diggory. Eu até entendia os encantos de Cedrico. Gostava do cabelo louro que ele tinha e que me lembrava Bo Duke de Os gatões. Gostava também do modo como a calça Wrangler dele modelava sua bunda, do pente preto encaixado com capricho no bolso traseiro esquerdo. E também de sua liderança no beisebol- o modo como ele casualmente e sem esforço nenhum golpeava a bola para longe do alcance de todos em direção ao alto, quase na vertical.

Mas eu adorava Rony. Adorava seu cabelo ruivo e o modo como suas bochechas ficavam cor-de-rosa durante o recreio, fazendo-o parecer uma pintura de Renoir. Adorava o modo como girava o lápis número dois entre os lábios carnudos, deixando mordidinhas simétricas perto da borracha sempre que estava bastante concentrado. Adorava o modo como ficava animado e feliz quando brincava com as meninas (ele era o único menino que jogava com a gente - os outros meninos preferiam beisebol e futebol). Adorava o modo como era sempre gentil com o garoto menos popular da sala, Neville, um sujeito terrivelmente gago que tinha o cabelo cortado em forma de cuia.

Cho ficava intrigada, se não irritada, com a minha dissidência, assim como também a nossa boa amiga Lila, que se mudou para a nossa rua dois anos depois da gente (esse atraso e o fato de ela já ter uma irmã significavam que ela nunca poderia efetivamente se igualar e alcançar a condição de melhor amiga). Cho e Lila gostavam de Rony, mas não daquele jeito, e insistiam em dizer que Cedrico era muito mais bonito e muito mais legal... dois atributos que podem meter você em encrenca quando você escolhe um garoto ou um homem - uma percepção que tive mesmo aos dez anos de idade.

Todos nós tínhamos certeza de que Cho levaria o grande prêmio Cedrico. Não apenas porque ela era mais destemida do que as outras meninas, dirigindo-se a Cedrico toda empertigada na lanchonete ou no quintal, mas também porque ela era a menina mais bonita da sala. Com as maçãs do rosto salientes, os olhos amendoados harmônicos, e um nariz delicado, Cho tinha um rosto que agradava a todas as idades, embora na 5a série ninguém soubesse dizer ainda exatamente o que faz uma pessoa ser bonita. Não acho que aos dez anos eu chegasse a compreender o significado de maçã do rosto e estrutura óssea, mas sabia que Cho era bonita e sentia inveja da aparência dela. Lila também, e sempre que tinha uma chance dizia isso abertamente a Cho, o que me parecia totalmente desnecessário. Cho já sabia que era bonita e, em minha opinião, não precisava que essa informação fosse reforçada todos os dias.

Então, naquele ano, no Halloween, Lila, Cho e eu nos reunimos no quarto de Lila para improvisarmos nossas fantasias de ciganas - Cho havia insistido que seria uma excelente desculpa para usarmos bastante maquiagem. Enquanto ela apreciava seus brincos que imitavam brilhantes, recém-adquiridos, olhou-se no espelho e disse:

— Sabe de uma coisa, Mione? Acho que você está certa.

— Certa sobre o quê? — perguntei, sentindo uma onda de satisfação, imaginando a que discussão anterior ela estava se referindo.

Cho colocou um dos brincos e olhou para mim. Nunca vou esquecer aquele sorrisinho debochado no rosto dela, apenas uma leve insinuação de um sorriso de escárnio.

— Você está certa sobre o Rony. Acho que também vou gostar dele.

— O que você quer dizer com "vou gostar dele"?

— Estou cansada de Cedrico. Agora eu gosto do Rony. Gosto das covinhas dele.

— Ele só tem uma covinha — rebati.

— Bem, então eu gosto da covi-nha dele.

Olhei para Lila em busca de apoio, de palavras que explicassem que uma pessoa não podia simplesmente decidir gostar de outra pessoa. Mas é claro que ela não disse nada, apenas continuou passando seu batom cor de rubi, fazendo biquinho para um espelho de mão.

— Não acredito em você, Cho!

— Qual é o seu problema? — perguntou ela. — A Lila não ficou chateada comigo quando eu gostava do Cedrico. Nós dividimos o Cedrico com toda a nossa série durante meses. Não é, Lila?

— Mais tempo do que isso. Comecei a gostar dele no verão. Lembra? Na piscina? —concordou Lila, sempre incapaz de enxergar todo o quadro.

Olhei na direção dela, que abaixou o olhar com remorso. Aquilo era diferente. Aquilo era Cedrico. Ele já havia caído em domínio público. Mas Rony era exclusivamente meu.

Naquela noite eu não disse mais nada, mas o passeio pela vizinhança em busca de doces estava arruinado. No dia seguinte, na escola, Cho mandou um bilhete para Rony, perguntando a ele se gostava de mim, dela ou de nenhuma das duas - com quadradinhos ao lado de cada opção e instruções para que ele assinalasse uma delas. Ele deve ter assinalado o nome de Cho , porque na hora do recreio eles já tinham se tornado um casal. O que significa dizer que eles anunciaram que "estavam namorando", mas nunca passavam nenhum tempo de verdade juntos, a não ser que você conte alguns telefonemas à noite, freqüentemente combinados com antecedência e com direito a Lila dando risadinhas ao lado dela. Eu me recusei a participar ou discutir seu novo romance.

Na minha cabeça, não fazia diferença que Cho e Rony nunca tivessem se beijado, ou que fosse apenas a 5a série, ou que eles tivessem "terminado" duas semanas depois, quando Cho perdeu o interesse e decidiu que voltaria a gostar de Cedrico Diggory. Ou, como minha mãe disse para me consolar, que a imitação era a mais sincera forma de lisonja. Só o que contava era que Cho tinha roubado Rony de mim. Talvez ela tenha feito isso porque realmente tenha mudado de idéia a respeito dele; foi isso que disse a mim mesma para poder parar de odiá-Ia. Mas o mais provável é que Cho tenha ficado com Rony apenas para me mostrar que era capaz de fazê-lo.


Então, senhoras e senhores do júri, Cho Chang merecia isso. Aqui se faz,
aqui se paga. Talvez esse seja o seu castigo merecido.

Fico imaginando as expressões dos jurados. Eles não estão convencidos. Os representantes masculinos do júri parecem perplexos, como se não entendessem nada do que está sendo dito. Não é sempre a garota bonita que fica com o garoto? É esse precisamente o modo como o mundo deveria funcionar. Uma mulher mais velha, num vestido discreto, aperta os lábios. Ela está enojada pela simples comparação - um noivo comparado a uma paixão da 5a série! Pelo amor de Deus! Uma mulher impecável, quase bonita, vestindo um terninho Chanel amarelo-canário, já identificou Cho como aliada. Não há nada que eu possa dizer para mudar a opinião dela ou atenuar minha ofensa.

A única jurada que parece sensibilizada pela história de Rony é uma garota meio gordinha, de cabelos bem curtos, cor de café aguado. Ela se apóia com desleixo na borda da bancada e de vez em quando empurra os óculos para cima do nariz adunco. Essa garota está a meu favor, inspirei seu senso de justiça. Ela está secretamente satisfeita com o que fiz. Talvez porque ela também tenha uma amiga como Cho, uma amiga que sempre consegue tudo o que quer.

Penso nos tempos do segundo grau, quando Cho seguiu conquistando todos os garotos que quis. Posso vê-la beijando Miguel Cornner perto do nosso armário no corredor e recordar a inveja que brotava em mim quando eu, sem namorado, era forçada a testemunhar a desavergonhada demonstração pública de afeto dos dois. Miguel tinha sido transferido para a nossa escola vindo de Columbus, Ohio, no outono do nosso terceiro ano, e imediatamente se tornou um sucesso em todos os lugares, menos na sala de aula. Apesar de não ser muito brilhante, ele era a estrela do nosso time de futebol, o armador titular do nosso time de basquete e, é claro, nosso principal arremessador do time de beisebol na primavera. E, com aquele jeito bonitão de namorado da Barbie, as meninas o adoravam. Cedrico Diggory, parte dois. Só que, infelizmente, ele tinha uma namorada chamada Cassandra, lá em Columbus, com quem alegava ser "110% comprometido" (uma expressão do jargão esportivo que sempre me incomodou por sua óbvia impossibilidade matemática). Ou pelo menos costumava ser, antes de Cho entrar na história, depois de assistirmos a um jogo em que Miguel não permitiu nenhuma rebatida válida contra o Central e ela decidir que ele tinha de ser dela.

No dia seguinte ela o convidou para assistir ao musical Os miseráveis. É de se esperar que um atleta que pratica três modalidades de esporte como o Miguel não seja muito chegado a musicais, mas ele concordou em acompanhá-la, e com bastante entusiasmo. Depois o espetáculo, na sala de estar de Cho, Miguel carimbou um baita chupão no pescoço dela. Na manhã seguinte, uma certa Cassandra de Columbus, Ohio, levou um tremendo pé na bunda.

Eu me lembro de conversar com Lila sobre a vida privilegiada que Cho levava. Discutíamos Cho com muita freqüência, o que me levava a imaginar o quanto elas fofocavam a meu respeito. Lila argumentava que não era apenas o visual ou o corpo perfeito dela, era também a sua segurança, o seu charme. Sobre o charme eu não sei, mas, olhando em retrospecto, concordo com Lila quanto à segurança. Era como se Cho tivesse a perspectiva de uma mulher de trinta anos, só que ainda no segundo grau. Tinha a compreensão de que nada daquilo importava, de que só se vive a vida uma vez e de que vale a pena ir à luta. Ela nunca se intimidava, nunca ficava insegura. Incorporava aquilo que todo mundo diz quando recorda os anos de ginásio: "Se eu soubesse disso naquela época."

Mas se há uma coisa que posso dizer sobre Cho e seus namoros é isto: ela nunca nos dispensou por um cara. Sempre colocava as amigas em primeiro lugar - o que é incrível para uma menina no segundo grau. Às vezes ela chegava mesmo a dispensar o namorado, porém mais freqüentemente apenas nos incluía nos programas. Formávamos uma fila de quatro no teatro. O namorado da vez, depois Cho, Lila e eu. E Cho sempre sussurrava seus comentários em nossa direção. Ela era impetuosa e independente, ao contrário da maioria das meninas da escola, que permitiam que seus sentimentos por um rapaz as engolisse. Naquela época eu achava que ela simplesmente não os amava o suficiente. Talvez Cho quisesse apenas manter o controle, e, sendo a pessoa que amava menos, era isso o que conseguia. Não sei se ela realmente se importava menos ou apenas fingia, mas sei que mantinha cada um deles à sua mercê, mesmo depois de dispensá-los. Veja Miguel, por exemplo. Ele está morando em Iowa com a esposa, três filhos, dois labradores e ainda manda e-mails para Cho no aniversário dela. Isso sim é que é poder.

Até hoje Cho fala com nostalgia sobre os bons tempos do ginásio. Eu me encolho todas as vezes que ela diz isso. É claro, tenho algumas boas lembranças daqueles dias e desfrutei uma popularidade razoável - um bom benefício adicional por ser a melhor amiga de Cho. Adorava ir aos jogos de futebol com Lila, pintar nossos rostos de laranja e azul, ficar enrolada em cobertores nas arquibancadas e dar tchau para Cho enquanto ela animava a torcida lá no campo. Adorava nossas idas aos sábados à noite até a sorveteria Colonial, onde sempre pedíamos a mesma coisa - um sundae de baunilha com calda de caramelo e chocolate, uma torta de caramelo, chocolate e amendoim e um brownie de chocolate duplo - e depois dividíamos tudo entre nós três. E eu adorava o meu primeiro namorado, Brandon Beamer, que me chamou para sair durante nosso último ano. Brandon também gostava de respeitar regras, uma versão católica de mim. Ele não bebia ou usava drogas e ficava culpado só de conversar sobre sexo.

Cho, que perdeu a virgindade quando estava no segundo ano, com um espanhol que fazia intercâmbio e se chamava Carlos, ficava sempre me instruindo a corromper Brandon. "Segure o pênis dele assim e eu garanto, não tem erro." Só que eu estava perfeitamente feliz com as nossas longas sessões de agarramentos na caminhonete da família dele e nunca tive de me preocupar com sexo seguro e com dirigir embriagada. Portanto, se as minhas lembranças não eram glamourosas, pelo menos eu me divertia razoavelmente.

Tive meus momentos ruins também: os dias em que o cabelo ficava horroroso, as espinhas, as infernais fotos de turma, nunca usava as roupas certas, ficava sem par para dançar nas festas, não conseguia me livrar do excesso de gordurinhas dos tempos de bebê, era cortada dos times, perdia eleições para tesoureiro da classe.Além de uma avassaladora angústia que ia e vinha à minha revelia (ou, mais precisamente, uma vez por mês), aparentemente fora do meu controle. Coisas típicas da adolescência, realmente. Clichês, porque isso acontece com qualquer um. Qualquer um menos Cho, isto é, ela que pairou por esses tumultuados quatro anos de escola sem sofrer rejeições, intocada pela maldição da feiúra adolescente. É claro que Cho adorava a escola, e a escola adorava Cho.

Muitas garotas com essa visão de seus anos de adolescência costumam se dar mal mais tarde na vida. Elas aparecem nas reuniões de dez anos de formatura dez quilos mais gordas, divorciadas e saudosas de seus longínquos dias de glória. Mas a maré dos dias de glória ainda não acabou para Cho. Ela não sofreu nenhuma grande derrota ou decepção. De fato, a vida só fica cada vez mais doce com ela. Como minha mãe disse um dia, não muito ao estilo dela, o mundo come na mão de Cho. Essa costumava ser - e ainda é - a melhor definição. Cho sempre consegue o que quer. E isso inclui Harry, o noivo dos sonhos.

Deixo uma mensagem no celular dela, que vai estar desligado durante o filme. Digo que estou cansada demais para sair para jantar. Só de conseguir me livrar do programa já me sinto menos enjoada. De fato, de repente, estou morrendo de fome. Procuro meus cardápios e telefono para pedir um hambúrguer com queijo eheddar e batata frita. Acho que não vou conseguir perder dois quilos até o feriado do Memorial Day. Enquanto espero pela minha entrega, lembro de quando Cho e eu brincamos com a agenda todos aqueles anos atrás, imaginando o futuro e o que os trinta anos trariam.

E aqui estou eu, sem o meu marido boa-pinta, sem a babá responsável e sem os dois filhos. Em vez disso, meu aniversário mais importante está manchado para sempre por um escândalo ... Mas, afinal, não faz sentido ficar me martirizando por isso. Aperto o botão de rediscagem do telefone e acrescento ao meu pedido um milk-shake de chocolate grande. Posso ver minha garota no canto da bancada dos jurados piscando para mim. Ela acha que o milk-shake é uma excelente idéia. Afinal de contas, não é verdade que todos têm direito a alguns momentos de fraqueza no dia do seu aniversário?

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