A loucura de Sally



-Samantha Warren! Se você lambuzar um livro de mais de quatrocentos anos com chocolate, o seu castigo vai durar bem mais do que isso! - uma voz imperiosa veio da cozinha sobressaltando a garotinha de quase nove anos, que praticamente estava deitada sobre a mesa de carvalho, onde se encontrava um livro, na enorme sala de jantar. O livro muito antigo e muito grosso. Ultimamente a menina passava horas lendo e relendo... Ela poderia jurar que pelo tanto que já lera, já deveria ter terminado. Mas o livro simplesmente não acabava, e ela ainda nem saíra do século XVII. E sabia que até o seu tempo, a tempestuosa década de setenta do século XX, todas de sua família haviam escrito algo nele. Um feitiço, uma história, uma oração, um sonho... Ela adorava estes dois últimos! Ficava se perguntando se um dia chegaria a escrever no livro... Seria poderosa o suficiente para conjurar um feitiço poderoso?

Isso a excitava desde pequena. O fato de fazer as coisas levitarem até ela sem o menor esforço não a excitava mais. E o fato de às vezes escutar os pensamentos das pessoas já não era tão divertido, já que toda vez a sua mãe ralhava com ela. Apesar de seu pai dizer sempre:

- Se ela tem o poder, que o use! - e lá vinha mais uma briga entre o casal Grindelwald, apesar de que Sally Warren jamais ter adotado o nome do marido, e nem ter deixado ele registrar suas filhas com seu sobrenome. Era uma tradição de família... Dimitri não gostou nem um pouco, mas nada que o maior poder de uma Warren não resolvesse: o charme e a fascinação que elas exerciam sobre aqueles que escolhiam para serem seus maridos. Não que Sally tivesse feito uma boa escolha, como Stockard Warren, a irmã mais velha dela, gostava de alfinetar.

Não que fosse um mau marido ou um péssimo pai, não, quando estava com a família até parecia outro homem. Mas o problema era quando não estava com a esposa e as filhas. Os Grindelwald, desde a tentativa frustrada de golpe que seu patriarca havia dado na década de quarenta, continuavam uma família rica, mas rejeitados por todos da sociedade bruxa. Samantha e Samara, sua irmã mais nova um ano, sabiam disso.

Regra número um das Warren: nunca, jamais esconda nada das crianças. Não adiantaria muito, no momento em que pisassem na rua, saberiam, já que desde sua mais infortunada antepassada, Simone, ninguém as poupavam de comentários e acusações. Pelo menos as pedradas e as tentativas de assassinato já tinham diminuído bastante.

-Calma, tia Stock. A panela de chocolate está bem longe do livro e eu já terminei de raspar. - disse a menina, que tinha sido tirada de seus pensamentos.

-Então traga-a aqui, para limpar. - a menina deixou o livro em cima da mesa e pulou para o chão. Era muito pequenina, e tinha uma aparência frágil, que definitivamente não combinava com sua personalidade. Seu vestido era todo amarelo, e tinha florezinhas enganchadas nos cabelos negros presos em duas tranças. Muito negros para dizer a verdade e iam até os ombros. A menina não puxara muita coisa dos pais. A mãe tinha cabelos castanhos acobreados e os olhos azul-celeste tinham um brilho especial, um brilho que não combinava com as Warren. O pai era alto, tinha cabelos lisos e compridos, até o ombro. Castanho claro, tanto cabelos quanto olhos. Os olhos de uma cor violeta viva da menina eram algo especial e bonito de se ver. E estranhos ao mesmo tempo.

Caminhou descalça até a enorme cozinha. Quem visse O Solar das Fadas, e jamais tivesse entrado nele, diria que era um sobrado agradável e bonito. Outrora um castelo imperial, tinha sido enfeitiçado para se parecer com uma bonita casa de uns dois andares, amplas janelas e belas varandas. Ninguém jamais saberia dizer ao certo. Na verdade tinha três lances de escada do térreo até o sótão, sem falar no porão. E sempre havia dois ou três elfos-doméstico para lá e para cá. Ao todo eram trinta elfos, que trabalhavam na casa, na horta, jardim e pomar... E vigiavam a propriedade e cuidavam para que os gnomos ficassem no jardim e as salamandras nas lareiras. Todos os elementais eram bem vindos na propriedade, contanto que ficassem fora da casa. Já havia confusão demais naquele lar para gnomos perambularem para cima e para baixo!

A propriedade era a maior de uma área onde moravam algumas famílias bruxas. Ficava entre a estrada, que estava reformada agora, e o rio Ottery. O vilarejo de Ottery St. Catchpole havia crescido, e havia tentado comprar os terrenos ou desapropriá-los. Mas jamais elas deixariam que pessoas indignas morassem no Jardim, como elas chamavam.

Ao entrar na enorme cozinha, viu alguns elfos prepararem o jantar, enquanto outros limpavam um chão, que simplesmente estava mais do que limpo. Stockard Warren, apesar de mal ter chegado aos trinta anos, era a mais velha a morar na casa, já que Sonja, a tia que tinha criado ela e as duas irmãs, havia morrido no ano passado. Era muito bela, mas de uma seriedade e frieza que só derretiam na presença de suas sobrinhas.

Casou-se três vezes. A primeira delas com um belo francês, Jean-Luc Picard, aos dezessete anos, assim que terminou Hogwarts. Digníssimo herdeiro das industrias fabricantes de sapos de chocolate. Ele era um pouco mais velho que ela, mas eram felizes. Viveram na França durante dois anos, dois felizes anos. Mas como qualquer marido de uma Warren, morreu. Abaixo do amor incondicional que sentia pela esposa vinha o amor que tinha por cavalgar pela manhã. Caiu do cavalo, que cavalgava desde menino. Sofreu, gostava do rapaz, mas lamentara mais não ter tido um filho, na verdade, filha. Já que não nascia um Warren há três séculos na família. Por isso nenhuma delas mudavam o nome. Se o fizessem, o nome Warren já teria desaparecido.

Nos outros dois casamentos fora feliz mais um pouco... Todos ricos, não que fosse ambiciosa e precisasse de dinheiro. As Warren tinham várias heranças de maridos mortos... Com a lógica de uma Corvinal, decidiu não se casar mais. Voltou para a Inglaterra, para ficar ao lado das irmãs, cuidar das tias que estavam começando a envelhecer, e ajudar Sally com as meninas.

Sally ainda não havia ficado viúva, o que era muito estranho. Mas nos últimos três anos Dimitri começara a dar sinais de loucura, como dizia Morgan. Mas Stockard e Sally sabiam que não era loucura, talvez ele quisesse seguir o caminho do avô, trinta anos atrás... Havia uma nova tentativa de golpe, um bruxo que muitos não sabiam de onde tinha surgido estava tentando tomar o poder para si. Os bruxos estavam em guerra novamente, lutando para manterem sua liberdade. Até mesmo as Warren estavam ajudando, secretamente, é claro. A situação estava séria.

Assassinas, lacraias, sanguessugas, viúvas-negras eram os apelidos mais inofensivos que recebiam. Não que fosse verdade. Simplesmente todos os seus maridos morriam, era assim que tinha que ser. A maldição era muito forte. E simplesmente não conseguiam amar nenhum desses homens. Queriam bem a eles, é claro. Eram esposas carinhosas e mães amorosas, mas nunca houve uma delas que conseguisse amar. Bem, houve, mas estas não eram um assunto muito agradável, apenas as faziam se conformarem com sua condição e desejarem realmente jamais amarem.

- Samara, já está na hora de tomar banho, a qualquer momento sua mãe voltará. - "Eu espero", desejou baixinho. Uma menina menor que Samantha saiu de baixo da mesa, vestia um conjuntinho verde, tinha os cabelos loiros muito bagunçados e olhos azuis, da cor dos da mãe. No rosto, um sorriso maroto.

- Jura que a mamãe volta hoje? - perguntou a pequena loira mirando a tia que estava preparando algo num caldeirão pequeno e lustroso.

- É dia das bruxas, minha bruxinha. Ela disse que voltaria hoje. Sua tia Morgan e vovô foram buscá-la.

A menina deu pulinhos, passou pela irmã fazendo uma careta engraçada e subiu a escada.

-Papai também volta? - perguntou a menina, sentando em cima da mesa.

-Samantha, cadeiras foram feitas para se sentar, mesas não. Por que insiste no contrário? - a menina desceu e ficou de pé, mirando a porta que dava para o quintal da casa.

-Não respondeu a minha pergunta. Papai volta hoje? - a bruxa mais velha deu um suspiro de resignação.

-Não, fadinha. Ele não voltará hoje.

-Foi o que eu pensei... Ele não volta mais hoje, nem amanhã, nem nunca mais, não é, tia? - a menina não estava chorando, apenas triste. Agora mirava a tia, e esta olhava para a sobrinha.

- Não, Samantha. Ele não voltará mais. Mas isso não quer dizer que você tenha que deixar de amá-lo. Não tente pensar nas coisas ruins que ele fez, cultive apenas os momentos bons - deu um beijo na testa da pequenina, que deu um sorriso fraco e voltou para a sala. Ainda havia muito a ler.

Continuou a história de Simone Warren. Ela tinha tido uma menina, Anabela, que se casou duas vezes, dando continuidade à linhagem da família... Havia mais feitiços e orações, belas orações e lamentações... As Warren sempre as escreviam para ajudarem a se livrar dos maus pensamentos. A noite foi chegando.

E já era bem tarde quando ouviu um estalo. Sally Warren tinha aparatado em frente da menina, que estava sentada. Samantha pensou em correr até a mãe e abraçá-la, estava com saudades, quase um mês sem vê-la. Havia aprendido muitas coisas, havia muito para contá-la. Mas ficou parada olhando para a mãe e a única coisa que fez foi dar um grito alto e agudo, que chamou a atenção das outras duas Warren na casa e de alguns elfos. Stockard saiu da cozinha com a varinha em punho. E Samara desceu as escadas, parando congelada no final desta.

As roupas da bruxa estavam encharcadas de sangue, um sangue vivo e quente. Pingava um pouco do cabelo também. O sangue não era dela, se o fosse estaria morta, era muito sangue. A menina ficou parada, olhando aquela cena aterradora. A mãe olhou para ela com carinho. Alisou seus cabelos, melando-os com o sangue, e deu um beijo em sua testa. Depois sua expressão mudou, a menina observou o brilho dos olhos azuis da mãe se apagarem. Ela caminhou pela sala, desviou da irmã que olhava para ela com uma expressão confusa, colocou uma garrafa com um líquido escuro em cima da mesa de parede e deixou sua varinha cair no chão. A pequena Samara estava no primeiro degrau da escada em estado de choque, encostada na parede. Parou na filha caçula, deu um beijo em sua bochecha e subiu as escadas. Tirando a roupa, entrou no banheiro. Ligou o chuveiro e deixou a água passar pelo seu corpo.




Ottery St. Catchpole era uma cidadezinha típica do interior da Inglaterra. Suas ruas de pedras e casas antigas no centro retomavam a época Medieval. E dessa época também vinham seus mitos. Crenças de que bruxos habitaram a cidade no passado, e que agora moravam nas redondezas. O que é claro, não era verdade! No máximo havia algumas chácaras com famílias recatadas, como os Weasley, Lovegood e do outro lado da cidade os Diggory e os Fawcett, apenas isso. Agora já as mulheres que habitavam a antiga fazenda Jardim das Fadas, estas sim tinham um pacto com o próprio Demônio. Por conta deste pacto, seriam lindas e seus maridos seriam ricos e morreriam pouco depois do casamento. E o castelo medieval de outrora não existia mais. Apenas um sobrado, um simples sobrado.

Já era noite n'A Toca, os cinco filhos do casal Weasley já estavam deitados. Apenas Molly Weasley estava sentada apreensiva olhando para o relógio da família de vez em quando. Havia sete ponteiros, seis deles apontavam para casa. O outro apontava para Trabalho. Artur Weasley tinha ido trabalhar às três horas da madrugada e simplesmente ainda não voltara. A mulher fazia seu tricô, e de vez em quando segurava a barriga de uma gravidez mediana, ainda faltava um tempo para a criança nascer. Era um menino. Mas não pararia até ter uma filha, Artur é louco para ter uma menina.

Tudo bem que aquela era sua sexta gravidez, mas o bebê era muito inquieto para um de cinco meses. Ela e Artur tinham medo que fossem gêmeos de novo. Ela estava feliz, mas apreensiva, estava tudo tão difícil e perigoso. Stockard diminuíra o valor da prestação da propriedade, o que era um alívio, mas significava que teriam que devê-la por mais tempo. Não gostava disso, decididamente não. Mas foi o melhor jeito de se conseguir uma casa para morar.

Aquele garoto decididamente seria muito inquieto. Chutava a toda hora e bem forte. Olhou para o relógio. Um outro ponteiro estavam ao lado esperando o pequeno nascer para ser colocado no relógio. O bebê impaciente deu um chute bem forte, quando o ponteiro maior, o do pai, deu um giro de Trabalho até Casa.

Levantou-se com difículdade e caminhou até a cozinha.

- Moly, por que você ainda está acordada? - perguntou o marido dando um abraço na esposa, mas essa não deixou que ele a abraçasse por muito tempo.

- Como assim por que eu ainda estou acordada? Você saiu ontem de madrugada e só volta a essa hora, fiquei preocupada.

- Eu sei, meu amor - o rosto estava abatido e exausto, repousou a mão na barriga da esposa - Mas eu não quero lhe falar sobre isso agora, foi muito cansativo. Os garotos lhe deram muito trabalho?

- Só o de sempre. Não sei que idéia foi essa de pedir para Stockard me fazer companhia. Você sabe como aquelas meninas são... Mais inquietas que os nossos "anjinhos". Mas a casa está inteira! Acho que o Solar também.

- E você, como está? - disse se ajoelhando em frente a esposa, beijando sua barriga. "Decididamente Artur está estranho."

- Estou bem, apesar de seu filho não ter me deixado em paz o dia todo. Ele chuta bem forte. Sinto muito Artur, é um menino. Eu sei o quanto você queria que fosse uma menina. Deixei os meninos com Stock e fui ao doutor Van Helsing.

- Isso é maravilhoso, Molly. - disse beijando a esposa. Aterrador, mas maravilhoso.Dinheiro não seria problema se soubessem economizar, ganhava bem como auror. Molly ficou assustada, não queria outra gravidez tão rápido, os gêmeos só tinham dois anos e consumiam muito do tempo dela, sem falar dos outros três meninos. E o tempo não andava muito apropriado para o nascimento de uma criança.

Depois de um tempo abraçados, ela quis servir o jantar para ele, mas ele disse que estava sem fome. Conversaram pouco, não adiantaria. Artur só contaria o que houve no outro dia. Só esperava que nada de muito grave tivesse acontecido.

Depois do banho, ele passou pelos quartos dos filhos. Os mais velhos, Guilherme e Carlos, estavam dormindo profundamente, tinham nove e oito anos, respectivamente. Percy estava dormindo tranqüilamente no berço. O Weasley de quatro anos era o único que poderia se chamar de calmo. Dirigiu-se ao quarto dos gêmeos, mas só os olhou da porta. Queria entrar e dar um beijo neles, mas se os pequeninos de dois anos acordassem, Molly mataria ele. O auror do Ministério estava em frangalhos, mas precisava sentir a família, tocar nela era essencial para esquecer o que via no trabalho.

Ele e a esposa foram se deitar. Molly notou que o marido não dormiu. Ele parecia exausto, mas não pregou o olho, ficou a noite toda olhando para o teto com uma expressão indecifrável. A esposa perguntou se ele queria um chá, ele respondeu que não; puxou a esposa mais junto a ele, aninhou-a em seus braços. Ela acabou dormindo, o bebê ficava mais calmo com a mão do pai repousada na barriga, assim como ela.

E assim a madrugada passou. N'A Toca todos dormiam, menos Artur, com seus pensamentos no Jardim. O que será que estava acontecendo lá? Pobre Sally, pobres meninas. Agarrava-se a esposa com certa força. Amava-a muito, era a mulher mais bondosa e amável que conhecera. Os sentimentos que outrora havia nutrido pela irmã mais nova de sua amiga, a bondosa amiga Stockard, não existiam mais. Apenas uma piedade e um desespero de se imaginar naquela situação. Só adormeceu quando o Sol nasceu.

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