Seqüestro forjado



Mia fechou os olhos, como se, ao fazê-lo, fosse mais fácil acreditar. Precisava crer que o plano era minucioso, e as chances de dar certo eram altas. Tinha de rememorar cada instante das discussões protagonizadas pelo grupo na Rua da Fiação durante a última semana, e precisava mais ainda se fazer acreditar em cada um dos argumentos que pareciam ter convencido tão bem aos seus amigos.

A hospedagem na casa de Snape não era exatamente agradável, e o anfitrião era um dos que menos contribuía para torná-la melhor. Não era, afinal, como se estivessem de férias, já que o local lembrava a sala de um velório que já durava tempo demais.

Com Pó-de-Flu, tia Gina dera um jeito de reutilizar a lareira velha de Snape para transmitir aos de Hogwarts o recado de que estavam bem e planejar os detalhes do plano, que contaria também com a ajuda dos outros membros da OdRR, cada um com seu papel específico. Apesar de ter levado uma bronca preocupada da senhora Weasley via Rede-de-Flu, Mia não conseguia afastar da mente a idéia de que nada importava naquele momento, a não ser que ela e Lúthien seriam as mais expostas durante a empreitada que planejavam.

Ansiosa, viu aquele mês passar mais depressa do que gostaria. Por vezes tentou conversar com Lúthien, mas a loirinha, pelo contrário, parecia empolgada com a idéia de servir de isca para um maluco como Lorde Voldemort.

- Ainda bem que temos estoque desta tal de Poção Polissuco – disse ela certa vez, quando Mia tentou conversar sobre suas angústias e se deparou com uma brusca mudança de assunto, típico comportamento da amiga. – Snape me disse que ela demora três meses para ficar pronta, acredita?

Já Daniel e Hermes pareciam ignorar deliberadamente seus receios a cada vez que ela tentava tocar no assunto, ambos frustrados por não conseguirem cumprir a promessa de que tentariam persuadir os adultos a mudarem de idéia, mandando assim os meninos no lugar das meninas.

- Transformações que necessitam de mudança de sexo são muito complexas e perigosas – disse Snape numa das reuniões, sentado à poltrona vermelha puída e balançando os pés deliberadamente, como se estivesse despreocupado. – Mas se vocês não se importam de se tornar meninas para sempre, ou algo no meio termo, quem sabe?

Nem é preciso dizer que ambos torceram o nariz e mudaram de idéia rapidamente, convencidos de que a Poção Polissuco que transformaria Mia e Lúthien em camponesas de Glastonbury era a melhor saída.

O último ritual celta realizado no místico vilarejo antes da lua cheia estava marcado para a noite seguinte, que representava também a última chance para Voldemort e Belatriz completarem seu séqüito de mulheres necessárias para a transferência das almas.

O plano determinava que viajariam diretamente a Glastonbury, o famoso vilarejo de Somerset, onde se hospedariam numa pousada barata. Mia e Lúthien estavam incumbidas de fazer contato com as mulheres do vilarejo e demonstrar interesse em participar da reunião daquela noite, alegando ser praticantes estrangeiras da bruxaria natural em visita ao famoso povoado. Desta maneira, aproveitariam o primeiro contato para pegar os fios de cabelos das mulheres nas quais pretendiam se transformar. Conforme o plano, o restante, ou seja, manter essas mulheres longe do caminho, era tarefa de Draco.

Naquela manhã de preparativos, foi Harry quem interrompeu os devaneios de Mia ao bater com os nós dos dedos na porta entreaberta do quarto onde ela organizava sua mochila.

- Mia... posso entrar? – perguntou ele. Com um aceno de cabeça, ela fez que sim, ao passo que ele se sentou ao seu lado na cama improvisada, sobre a qual estavam dispostas uma muda de roupa e dois frascos com Poção Polissuco.

- Ruins, Harry – desabafou ela, suspirando. – Não estou confiante e ponto final. Já tentei me convencer de que planejamos tudo, mas no fim das contas, ainda acho que é muito arriscado.

- Você é cautelosa, exatamente como sua mãe – recordou Harry com um sorriso no canto dos lábios. – Mas saiba que, certas vezes, é preciso simplesmente acreditar e deixar o instinto agir como guia. Era assim que eu costumava fazer quando tinha a sua idade. Várias vezes meti os pés pelas mãos, mas em outras acertei, porque fiz exatamente o que achava melhor para aquela ocasião. Ainda há tempo de desistir, Mia, mas eu sei que você, como eu, aceita aquilo que vem porque sabe que é parte do seu destino. Do nosso destino.

- Você acredita que vamos conseguir derrotar Voldemort e derrubar seu governo de tirania? – perguntou ela, apreensiva.

- Não sei... mas acredito que devo, ao menos, tentar mais uma vez – finalizou o bruxo, levantando-se em seguida. – Vim apenas avisar que os demais já estão prontos, esperando por você na sala.

- Ok, vamos – disse ela, fechando o zíper da mala e acompanhando Harry até o aposento empoeirado e mal iluminado.

A pequena pousada bruxa de Glasbonbury iria recebê-los por meio da Rede-de-Flu. A ligação ilegal que tia Gina fizera para avisar Hogwarts da estadia do grupo na Rua da Fiação seria religada novamente para que pudessem viajar até Glastonbury. Snape estava certo de que a pousada era confiável e que não seriam delatados, já que pertencia à família de Madame Rosmerta, antiga dona do bar Três Vassouras, em Hogsmead. Ela também fora banida do mundo bruxo com a ascensão do Lorde das Trevas e, no mundo trouxa, acabou se casando com o dono da principal pousada de Glastonbury. Ele sabia do passado da esposa e não tinha problemas em hospedar visitantes bruxos interessados nas manifestações culturais de seu pequeno vilarejo, do qual tinha muito orgulho. Ao menos fora esta a desculpa da mulher para hospedar o grupo.

Como nunca tinha viajado com Pó-de-Flu antes, Mia se sentiu ligeiramente apreensiva. Assim que aterrissou de cara no chão cheio de fuligem da pousada, decidiu que aquela seria outra maneira de viajar no mundo bruxo que procuraria evitar. Já chegava a pensar se haveria um meio de transporte que não rodopiasse, agitasse ou estrunchasse um bruxo durante o seu trajeto.

Foram recebidos calorosamente por Madame Rosmerta, uma senhora robusta, os cabelos coloridos de preto presos por um rabo de cavalo meio irregular. Via-se que havia sido muito bela na juventude, mas as marcas inevitáveis do tempo zombavam desta beleza, como se a anunciar que a idade chegava para todos. Foi ela quem passou as orientações sobre a reunião de mulheres voltadas aos rituais celtas na cidade, bem como o contato da líder destas mulheres. Após um breve banho para retirar a fuligem da lareira, as duas amigas vestiram roupas leves e primaveris e se prepararam para deixar a pousada e iniciar o plano que deixava Mia tão apreensiva.

Antes de sair, porém, Daniel segurou o pulso da ruiva, fazendo com que ela se voltasse para ele com um farfalhar dos cabelos. Alguns fios caíram sobre seus olhos. Próximos demais. Mia bem que tentou ver se alguém os observava, mas Daniel não lhe deu tempo: colou seus lábios nos dela num impulso urgente, aterrador, ao mesmo tempo em que segurava seus ombros com demasiada força, como se quisesse mantê-la para sempre ali, em seus braços. Ela correspondeu ao beijo com sofreguidão, urgência, medo, carinho, ternura, uma mistura de sentimentos que, mais tarde, sequer poderia explicar se lhe perguntassem. Apenas poderia dizer que seu coração bateu tão rápido que dava a impressão de querer escapar do peito. Por um momento, achou que desistiria de tudo para se deixar ficar ali, nos braços daquele por quem nutria sentimentos que não poderiam ser representados por palavras. O que ele Daniel disse a seguir foi o que lhe deu a força que precisava para continuar:

- Eu confio em você. Amo você.

Simples. Claro. Sem ressalvas e do fundo do coração. Os olhos verdes de Daniel brilharam num lampejo enquanto ela se virava para o sol do lado de fora, Lúthien ao seu lado. Não olhou para trás. Achou que, se o fizesse, poderia perder a coragem. Apenas ouviu Hermes gritar:

- Eu também confio em você, Mia!

Ela estremeceu, mas se manteve tão firme quanto podia. Ao seu lado, Lúthien sorria como se caminhassem num inocente passeio, dando saltinhos enquanto andava. Foi pouco antes de chegar ao local indicado, uma construção simples e afastada do centro do vilarejo, que ela falou:

- Vocês se beijaram.

Ao mesmo tempo em que se sentia constrangida com a sinceridade da loira, gostava daquele jeito aberto e simples de Lúthien. Sabia que ela levava a vida de uma maneira muito menos preocupada que Mia, que media cada palavra e cada ato antes de tomar certas atitudes. Talvez Harry estivesse certo: precisava soltar as amarras e seguir um pouco seu instinto. Mas achava que este estava enferrujado dentro de si por falta de uso.

Entreabriu os lábios para responder à amiga, porém, viu-se diante da porta de entrada do chalé de Emengard. O medo voltou ao seu coração e ela emudeceu. Imaginava que a líder das mulheres fosse bem mais velha e ficou surpresa quando, sem que sequer houvesse batido na porta, uma jovem com pouco mais de 20 anos abriu-a com um sorriso bondoso no rosto. Tinha os cabelos loiros escuros como os de Lúthien esvoaçando sobre seus ombros largos, os olhos de um azul claro como o céu numa tarde ensolarada, e que penetravam as visitantes como se desvendassem suas almas.

- Em que posso ajudá-las? – disse num inglês carregado de sotaque, que fez Mia deduzir que a jovem poderia ser alemã.

- Eu e minha amiga somos alemãs – disse Lúthien, carregando a pronúncia de uma forma que imaginava ser a ideal, mas que soava completamente falsa aos ouvidos de Mia. – Estamos em Glastonbury para acompanhar os rituais celtas, já que praticamos a magia natural em nosso país. Nos sentiremos honradas se, com sua permissão, pudéssemos participar do ritual de hoje.

- O gamo aceita todas as jovens que querem participar – disse Emengard, com o mesmo sorriso farto com que as recebera. – Não querem tomar uma xícara de chá enquanto isso? Estão hospedadas na pousada de Madame Rosmerta?

E assim ambas aceitaram entrar e degustaram, na companhia de Emengard, um delicioso chá de folhas de roseira. O estômago de Mia resmungava a cada gole e, por mais que tentasse disfarçar, não conseguia se comportar da maneira natural de Lúthien, que conversava animadamente. Foi a loirinha quem pegou os fios de cabelo da líder das mulheres e também de uma de suas aprendizes, uma jovem morena de cabelos cacheados e ventre a mostra que passou pela mesa para servir o chá.

- Então é isso? Vou ter que sumir com a líder das mulheres? Que maravilha – reclamava Draco quando Lúthien e Mia retornaram para a pousada e se reuniram para rever os últimos detalhes do plano.

Draco só não resmungou e praguejou mais porque Gina se retirou com ele do aposento, já que precisavam discutir como garantiriam que Emengard e a jovem aprendiz permaneceriam de fora do ritual sem causar qualquer suspeita entre o séqüito de mulheres.

Mia não queria se preocupar com aquilo, já que sua parte no plano já era o suficiente para manter seu cérebro bastante ocupado. Limitou-se a observar Snape enquanto ele adicionava os cabelos nos dois frascos de Poção Polissuco. Imediatamente, o líquido acinzentado da direita, que correspondia aos cabelos de Emengard, adquiriu um tom rosa suave, e a da esquerda, correspondente a sua aprendiz, ficou com uma cor escarlate berrante.

- Que bonita! Quero esta! – disse Lúthien, precipitando-se, obviamente, para a mais colorida. Para Mia sobrou o peso de ser, mais uma vez, a líder.

Snape advertiu-as de que deveriam ingerir a poção o mínimo de tempo possível antes de seguir para a clareira onde seria realizado o ritual, para garantir assim que o efeito durasse o suficiente, embora ele tenha se negado a dizer quanto tempo costumava durar.

Draco e Gina retornaram ao entardecer com as duas jovens adormecidas por conta de um feitiço Morpheus. Desta forma, podiam garantir que dormissem até o momento em que o ritual tivesse acabado. Além das moças, o casal trouxe da rua a notícia de que aquela seria a noite de Beltane.

- O que é isso? – perguntou Lúthien, curiosa.

- É o ritual que acontece no auge da primavera e simboliza o casamento sagrado do Deus com a Deusa. Durante o ritual, uma jovem virgem é escolhida para representar a feminilidade, enquanto um jovem rapaz representa o novo gamo. Ele deve caçar o gamo-rei e fertilizar a terra com seu sangue. Sua recompensa é a virgindade da representante da Deusa – respondeu Gina, enquanto Mia sentia um arrepio percorrer-lhe as costas. Gina continuou, o tom de voz preocupado – Não contávamos com isso.

Foi como se a memória de Mia se acendesse como uma lâmpada, percorrendo de forma rápida um passado muito distante. Viu a si mesma numa caverna sob a luz da lua, enquanto tambores soavam e um gamo novo corria, caçando com ansiedade para se tornar o novo gamo rei. Estava nua, com o corpo pintado com estranhos símbolos e coberto de algo que se parecia muito com sangue. No entanto, não sentia nojo, apenas uma apreensão que começava no baixo ventre e percorria todo o seu corpo, um arrepio de medo e deleite. Seus olhos se arregalaram quando o jovem gamo entrou, carregando consigo a marca de sua conquista e exigindo seu prêmio: o corpo que representava a Deusa. O seu corpo.

- Não podemos fazer isto! – disse de repente, como se acordasse de um transe. – Não podemos interferir no Casamento Sagrado!

- É o único jeito de deter Voldemort – suspirou Gina, parecendo derrotada. – Os deuses terão que nos perdoar.

- E quem será a representante da Deusa no ritual? – perguntou Mia, como se já soubesse a resposta. Porém, surpreendeu-se com as palavras de Draco:

- Será Liene, a aprendiz de Emengard – disse Draco, enquanto mostrava o corpo adormecido coberto de pinturas antigas que repousava sobre a cama do quarto. - Ou melhor, neste caso será Lúthien.

E pela primeira vez Mia percebeu que o rosto de Lúthien havia perdido um pouco de seu aspecto eternamente distraído para assumir uma expressão preocupada, quase de medo.





N/A: Eu sei, eu sei: você demorou de novo, Mia! Mas acho que este capítulo valeu a espera. Como eu previa, o número de capítulos até o final aumentou um tiquinho por conta de algumas idéias novas que tive. Não me entendam mal: Priori Encantatem já tem um desfecho pronto, mas para que eu chegue até ele, meu cérebro tem uma mania maluca de criar subterfúgios que adicionam ainda mais suspense a esta história e, provavelmente, deixam os leitores malucos. Mas o fim está próximo... não percam!

Beijos!

Mia

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