Espelhos



Parte 5. Espelhos


O relógio enchia o quarto com seu barulho ritmado interrompendo o silêncio do início da noite. A luz azulada da lua passava direto pelas cortinas finas e pintava o papel de parede branco de cinza. O cômodo tinha janelas amplas que davam para um parque. Através do vidro, era possível distinguir o céu talhado de estrelas. Mas não a lua, embora sua luminosidade se derramasse no quarto projetando sombras alongadas dos móveis no piso de madeira. Os móveis estavam posicionados de modo estranho para dar espaço à imensa banheira.


Ginevra tinha o corpo moído de cansaço após mais um dia de treinos solitários. Ouvia os sons vagos da rua que deixara há poucos instantes. Ao contrário da maioria das ruas comerciais praticamente desertas àquela hora, naquele reconhecido bairro boêmio era possível avistar muitas pessoas, reunidas nas calçadas, junto aos portões das casas, ou iluminadas pelas luzes das janelas, aproveitando a noite que queriam interminável. As tavernas, muito mais limpas que as dos bairros operários, abrigavam músicos e poetas. Era o ponto de encontro dos jovens burgueses.


Ginny saíra de casa no início da tarde. Conseguira autorização do inspetor de material de um teatro para treinar todos os dias antes da chegada das bailarinas para o último espetáculo da noite. “O sofrimento é fundamental. A conquista de algo após sofrer muito é mil vezes mais recompensador que se você tivesse muita facilidade para executá-lo”, repetiu mentalmente, como se tentasse se convencer da veracidade da sentença. Não avisou a ninguém quando voltou, já um pouco tarde para uma menina da sua idade. Todos pareciam tão tranqüilos, tão felizes dentro de seu mundo de confraternizações, tão esquecidos de que ela não estava em casa, que Ginny achou que seria um pecado interromper suas atividades por um momento que lhe parecia tão pessoal. E nem ela queria isso.


O teatro era pequeno, distante dos bairros que tradicionalmente abrigavam os maiores espetáculos artísticos. Ao chegar naquele dia para treinar, Ginny ouviu a história. Boatos como aquele não eram incomuns em óperas e teatros, o que realmente chamara sua atenção era o fato de tanta gente estar dando importância. Dizia-se que a sala de ensaio das bailarinas estava sendo visitada todas as noites por uma assombração, que chegava logo após o desaparecimento dos primeiros raios de sol. A história já estava deixando as bailarinas mais jovens temerosas de ficarem sozinhas na sala. Ginny apenas disse que nunca percebera nada de estranho e assegurou, em tom de deboche, que se visse algum fantasma avisaria imediatamente. Ao sair da sala naquele dia, entretanto, não pôde evitar ficar parada junto à moldura da porta da sala por alguns instantes, com a impressão de que não estava vazia. Tinha apagado as luzes, apenas as luzes da rua que entravam pelas janelas impediam a sala de ficar completamente escura. Seus olhos humanos jamais poderiam perceber a silhueta escondido na sombra do piano de calda.


Ginevra jogou o vestido de lado. Sentia o perfume suave das flores do jardim lá fora. Algumas velas haviam sido acesas em torno da banheira cheia de água que trouxera do banheiro. Assim evitava andar pela casa após o banho com o risco de pegar um resfriado. Ficar doente era tudo que ela menos precisava a essa altura dos acontecimentos.


Deixou a mão tocar a superfície égua, seu rosto cansado se refletindo, contorcido pelas pequenas ondas que corriam em direção às bordas da banheira. Virou-se repentinamente, assustada com a visão de um vulto atrás de seu reflexo na água. Ginny ensaiou um gesto de fuga, mas não saiu do lugar. Os olhos emoldurados pelos longos cílios perscrutaram a imagem, que ficava cada vez mais nítida à medida que a água parava de se movimentar, como se o conhecesse de algum lugar. Não era a primeira vez que procurava atrás de si alguém que lhe aparecia num reflexo.


Talvez fosse efeito do cansaço. Vinha treinando duramente nos últimos dias. Essa era a justificativa que dava a si mesma. Sabia que não era verdade. Sentia uma conhecida presença no quarto. A mesma presença que a visitava com freqüência nas últimas noites, aproveitando-se de seu cansaço excessivo para surgir atrás de seu reflexo no espelho sem que ela pudesse percebê-lo de pé na sala, envolto em sua aura sobrenatural de fantasma assassino. Às vezes ele até mesmo se atrevia a se aproximar, ela sentia isso muito bem, sem ousar estender os dedos para sua pele, mas apenas para captar o calor que emanava de seu estreito corpo de menina, suado do exercício.


Ginevra deixou de lado as últimas peças de roupa e passou uma perna por cima da borda da banheira. Firmou o pé no fundo e içou o resto do corpo, mergulhando até o nariz na água morna perfumada, os olhos fechados. Passou a mão molhada pelo rosto delicado antes de inclinar a cabeça para trás, de modo que os cabelos flutuassem na superfície da água como um véu vermelho. Sorriu levemente ao murmurar para o “garoto do espelho” que não queria que ele a espiasse no banho. Chamava-o assim como uma forma de dissipar o medo, fingindo que tudo era apenas uma brincadeira quando quase poderia jurar que havia realmente alguém observando cada um de seus gestos.


O vulto tinha se esgueirado pelo telhado cinzento até chegar à janela do quarto, cuidando para manter-se escondido das luzes da rua sob a sombra de uma árvore frondosa. Guiara-se pela fragrância dela, aquele inconfundível perfume nínfico que tinha o efeito de um narcótico sobre sua consciência. Não conseguia tirar os olhos dela, daqueles gestos bruscos, daquela expressão decidida, dos cabelos flamejantes que lhe caíam molhados sobre os olhos aveludados, dos pequenos pés que se erguiam para fora da água em movimentos leves, como se brincassem com o ar ao redor. Tinha toda a aparência de uma pintura fantástica, com a luz das velas descrevendo sombras tremulantes em seu rosto pálido de boneca. Havia em tudo o que aquela menina executava um lirismo requintado e uma graciosidade incomparáveis, parecia estar sempre dançando, carregada por uma melodia que poderia ser na verdade o simples turbilhão de vida que a cercava. "Quando danças, queria que fosses como a onda do mar, para que nunca fizesse outra coisa", murmurou, lembrando das palavras de Shakespeare.


Desde aquela noite que a vira nos fundos de um teatro, frustrada com alguma discussão que envolvia seu papel no espetáculo, não houve um só dia nem hora que Ginevra não aparecesse em seus pensamentos, fazendo-o procurar no mundo mundano de sua existência qualquer coisa que se parecesse minimamente com ela, na ânsia de sanar a vontade tocá-la, de tomá-la para si, sentir seu pulso magnífico sob a pele clara como mármore, sorver o perfume dos cabelos flamejantes, fios de cobre se soltando de fitas de seda azul clara, vislumbrar as meias de renda, as saias múltiplas de tule esvoaçando em meio à dança, provar o hálito quente e úmido de sua boca rosada. O tempo perdera a medida e não era capaz de precisar quantas noites já passara naquela observação silenciosa de seu esforço cheio de suspiros de cansaço no teatro e dos rituais silenciosos no quarto, seus banhos à luz de velas. O prazer de vê-la era tão grande que se sentia compensado pelas infinitas horas de espera até que a noite enfim caísse, quando podia ouvir sua voz harmônica solfejando a melodia de um adágio, observar seus movimentos que ultrapassavam qualquer técnica, vislumbrar as luzes celestiais que emanavam de sua alma, como uma criança que sempre volta à vitrine de uma loja para admirar um brinquedo desejado que tem consciência de que nunca poderá ter.


Noite após noite, lá estava Ginevra, numa determinação infinita enquanto esperava por sua chance de “brilhar num palco de verdade”, como dizia. Falava muito com ele, talvez imaginando um “amigo invisível”. Não esperava por respostas. Era sempre objetiva no que dizia. Tom não se lembrava dela assim tão séria. Ou não se lembrava de Virginia assim tão séria. Ah, se pudesse explicar toda aquela medonha familiaridade... Por que o fascínio se desprendia do passado para ressurgir assim vigoroso, renascido das cinzas?


De uma coisa, porém, Tom Riddle tinha plena consciência, a cada noite que deixava seu caixão e não sentia uma vontade desesperada de matar, mas de voar até o teatro acompanhar os passos de Ginevra. Estava ficando louco. Algo dentro dele estava convencido de que Ginevra era sua segunda chance. Ele não acreditava em divindades. Não acreditava em eternidade da alma. E talvez por ser tão descrente tivesse sentido tão profundamente a perda de Virginia, várias décadas atrás. Não acreditava em céu ou inferno, para ele os fatos eram apenas a realidade palpável da luta pela sobrevivência, do sangue, da sede, da saciedade. Ou pelo menos era o que julgava antes de se deparar com aquela criança. A sucessão de perdas e as inquietações nostálgicas pareciam tê-lo feito perder o rumo dentro daqueles olhos castanhos. Era isso. Estava apaixonado por um sonho perdido.




“Mulher maluca...”, murmurou Calr Godwin, impaciente, enquanto observava a longa fila de meninas, em sua segunda semana de busca pelos teatros de Londres, investigando cada companhia que empregava jovens adolescentes, seguindo a pista dada por Katherine Boufleurs. Aparentemente o vampiro que ela achava estar por trás dos assassinatos em East End era o mesmo autor dos tantos outros que estampavam as páginas dos jornais ao menos uma vez por semana. Uma praga desconhecida se abatia sobre a mais fina aristocracia londrina, carregando, misteriosamente e numa só noite, homens e mulheres de variadas idades, sempre após grandes bailes de gala ou seções na Ópera de Londres. O vampiro provavelmente não se importava muito em ser discreto, o número de mortes já era suficiente para que inspetores do governo passassem a investigar, o que não ajudava muito o seu trabalho.


Calr era um homem estudado, que aprendera tudo sobre vampiros com religiosos do Leste Europeu, como parte do seu treinamento de exorcista, e escolhera o tema para se aprofundar. Fixara residência em Londres a fim de registrar seu comportamento nas cidades. O primeiro vampiro que encontrara em Londres fora Lady Boufleurs. Ela era tão óbvia e tão extravagante em seus modos que foi fácil desmascarar a imagem de velha senhora excêntrica. Porém, Katherine nunca tinha sido realmente um problema para ele. Não fazia outros vampiros, não chamava atenção com seus assassinatos. Prezava sua vida luxuosa obtida após um século de artimanhas, infiltrada entre os nobres ingleses, e se deliciava em ficar sentada por horas narrando acontecimentos de sua vida e histórias de outros vampiros de que tomara conhecimento. Uma infinita fonte de conhecimento que ele achara por bem poupar, pelo menos enquanto mantivesse sua vida pacata.


Já se deparara com outros vampiros, esses realmente perigosos, que vinham buscar das ilhas Britânicas um novo campo de atuação. Eram vilões ambíguos e sutis, semelhantes aos seres humanos na aparência, mas ainda mais selvagens em sua ânsia de matar para satisfazer sua fome, física e espiritual, da vida de que tinham aberto mão. A maioria não tinha nenhum tipo de moral ou controle, nenhum objetivo, andavam irracionais à caça de alimento, dinheiro, mulheres, seguindo apenas um instinto básico de sobrevivência. Mas esses eram os vampiros jovens. Calr nunca encontrara um vampiro com mais de algumas poucas décadas de vida e, pelo que entendera das insinuações de Katherine, o vampiro por trás desses assassinatos tinha mais de oitenta anos. Ela se recusara a lhe dizer qual era a origem do vampiro. Não dissera também de onde o conhecia. Parecia temerosa lhe dar qualquer informação sobre ele.


Ainda faltavam alguns minutos para o início do teste para um espetáculo que encenaria uma peça russa, mas as meninas já tratavam de se alongar na barra de exercícios. Sobre a sala incidia uma tênue luz natural, proveniente do céu nublado da cidade, tornando a cena de algum modo triste e opaca.


O olhar do sacerdote se voltou para a menina ruiva, buscando nela qualquer sinal de que estivesse sendo vítima de ataques vampíricos. Ginevra Weasley, esse era o seu nome. Andava devagar pela sala, distraída com alguma coisa no espelho enquanto ocupava as mãos arrumando cuidadosamente a saia de tule. Verificou a firmeza das sapatilhas nos pés, apertou o nó das fitas com mais força. Olhou outra vez para o espelho.


Calr se aproximou, tentando entender o que tanto a fascinava no reflexo.


“However cruel the mirrors of sin, remember beauty is found within”. O verso parecia ser sussurrado em seus ouvidos pela brisa gelada que entrava pela janela aberta. Na verdade fora pronunciado pela menina, numa altura pequena de modo que as outras bailarinas não pudessem ouvir. Espelho. Calr examinou com mais cuidado o reflexo e teve a impressão de que uma neblina se interpunha entre a imagem refletida e a menina real que se adiantava para a fila em que uma professora alinhava as meninas. Não entendia por que ela tinha dito aquilo ou mesmo se Ginevra tinha consciência de que ele ouvira. Eram palavras melancólicas, como se realmente sentisse falta de uma beleza que procurava incessantemente dentro do espelho.


Observou com atenção quando o nome de Ginevra Weasley foi chamado e ela ficou no centro da sala, com os braços formando um arco na frente do corpo e os pés alinhados com as pontas das sapatilhas voltadas para fora. Por que aquela criança lamentava a falta de beleza? A música começou, as notas rápidas se juntando na melodia alegre, os movimentos da menina se sucedendo num ritmo frenético para acompanhar. Ginevra movia braços e pernas com uma técnica muito bem construída, mas visivelmente sem nenhuma paixão. Nenhum sentimento que elevasse seus saltos, nenhum mísero resquício de sentimentalismo que pudesse iluminar sua expressão. Mesmo os giros vigorosos lhe pareceram apáticos.


“... remember beauty”, ele viu seus lábios formarem as sílabas, o rosto contraído como se recordasse uma cena dolorosa. A neblina no reflexo parecia ter se tornado mais forte, quase não podia divisar os olhos do reflexo através da nuvem esbranquiçada. Nada de beleza. E o rosto da menina tinha uma expressão de enterro, como se de repente tivesse se dado conta de que não havia beleza nenhuma para buscar. Ela fechou os olhos. Dobrou os joelhos para iniciar uma série de saltos. Que beleza afinal era aquela?


Ela caiu estatelada no piso de madeira, fazendo um barulho seco tal qual uma boneca que cai e se quebra. Permaneceu alguns minutos estática, parecendo inconsciente, até que uma das professoras se aproximou e perguntou se tinha se machucado. Ginevra Weasley então abriu os olhos, como se um choque a tivesse despertado de um longo sono. Levantou o corpo, ficando sentada no chão, a respiração apressada e o rosto lívido como se estivesse esgotada, exausta, como se tivesse vivido uma vida inteira em uns poucos instantes. A menina voltou os olhos para a superfície refletora do espelho e dessa vez o padre Calr Godwin não viu outra pessoa senão ela mesma, nenhuma nebulosidade.


Sem responder às repetidas perguntas sobre o que acontecera, Ginevra ergueu o corpo e, parecendo tomada por movimentos automáticos, correu em direção à porta. Calr ouviu seus passos subindo as escadas e precipitou-se para segui-la, encontrando o longo e escuro corredor dos camarins, ao fim do qual estava a porta dos fundos do teatro, escancarada, projetando a luminosidade do dia. Saiu, e o sol quente da primavera o incomodou. Mas nada comparado ao que viu. Ginevra tinha os braços encolhidos diante do rosto, como se os raios solares ferissem sua pele.


Não compreendeu o que acontecia. Tinha certeza de que não se tratava de uma vampira, vira-a exposta à luz na sala. Também tinha uma aparência humana demais para passar por um ser imortal. Mas então tudo voltou ao normal, Ginevra descobriu a cabeça, respirou fundo algumas vezes e andou, passando pela cerca de arame que cercava o prédio e encontrando a rua, àquela hora cheia de pessoas andando em direção a uma igreja, alheia aos olhares de estranheza que lhe eram lançados, as sapatilhas cor de rosa se rasgando nas pedras da calçada. Ela respirou fundo e parou, a mão apoiada numa parede. O sino tocava anunciando o início da missa. Ginny levantou o rosto, mirando o céu alaranjado de fim de tarde. O padre seguiu seu olhar e teve a impressão de ver algo vermelho acima das nuvens.




Possessão”, repetiu o padre, e o rosto da mulher com quem falava se contraiu, ficando pálido rapidamente. Calr Godwin conseguira entrar em contato com os Weasley através do crítico de arte Bram Stoker, um rapaz irlandês que se mostrava fascinado pelos estudos do sacerdote sobre vampiros.


A senhora Weasley remexeu a saia e olhou para o marido, que tinha os olhos fixou em algum ponto do teto. O padre estava ciente de que não aceitariam aquilo facilmente. De que talvez não aceitassem aquilo de maneira alguma. Mas achava que eles também estavam cientes do estranho comportamento que Ginevra Weasley vinha apresentando ultimamente.


“Possessão?”, murmurou Arthur Weasley, vagando os olhos castanhos pela parede às costas do padre até finalmente o encararem, neles uma mistura de ceticismo e temor. “Que dizer possuída por um espírito? Por um demônio?”


O padre balançou levemente a cabeça. “Por uma entidade que não é viva. Um vampiro”, esclareceu. “Você pode chamar de espírito. O importante é que ela corre risco”.


Molly Weasley passou as mãos pelos cabelos castanhos e Calr não soube precisar se o gesto indicava dúvida ou desespero. "Vampiros não existem...", murmurou.


"É uma afirmação questionável", avaliou o sacerdote. "Quando um só acredita chamam de loucura. Quando muitos acreditam chamam de fé, verdade ou razão. Os mais céticos dizem que tudo pode ser explicado, mas acabam por não explicar. Sua filha parece estar doente, mas o médico diz que ela está saudável. Não come, às vezes se mostra avessa à luz do sol, fala coisas estranhas, tem acessos raivosos, fica com o olhar vidrado e centrado no vazio...”


“Ela está passando por um momento difícil”, interrompeu Arthur. “Está nervosa com a saída da academia, discutiu com a antiga professora. É lógico que está diferente”.


A discussão foi encerrada ali. Os Weasley não quiseram ouvir mais sobre a suposta possessão de Ginevra por um espírito maligno e o padre foi obrigado a não insistir. Poderia supostamente parar por ali e se concentrar simplesmente na captura do vampiro. Sabia que logo os pais da menina viriam a ele, assim que os sintomas ficassem realmente fortes. Mas então o padre temia que fosse tarde demais. Não sabia o que o vampiro pretendia. Podia querer matar a menina e por isso a perseguia, cultivando vagarosamente sua ansiedade antes de enfim ter o sangue que desejava. Outra possibilidade era a de que tivesse escolhido aquela menina para transformar em companheira. Sabia que ele estava obcecado por Ginevra, disso não restavam dúvidas.


Deixando o restaurante em que se encontrara com os Weasley para conversar, Calr caminhou pela rua estava escura, apenas a luz dos postes tingia as paredes brancas encardidas das casas. O céu se mostrava claro, completamente escondido sob as nuvens cinzentas. Um barulho distante de rodas rangendo dava conta de carruagens passando numa avenida próxima. A sombra alongada do padre se projetava na calçada de pedra enquanto ele se afastava em direção à parte oeste da cidade. A uma certa altura sentiu um arrepio percorrer sua espinha e olhou ao redor, os olhos treinados perscrutando as sombras em busca de qualquer mínimo indício de que ali pudesse estar escondido seu perseguidor. Não encontrou. Ainda assim, era capaz de sentir claramente o cheiro de sangue fresco que se diluía no ar, delatando a presença de um vampiro que acabara de se alimentar.




"Não se deixe abater por eles. Esse país tem o hábito de ser crematório dos sonhos artísticos. Não precisa deles", murmurou Tom baixinho para a menina que se ocupava em pentear o cabelo diante da penteadeira, o rosto iluminado pelas velas. Conhecia aquele rosto, cada traço – conhecia muito bem. Quase podia sentir sua consistência macia sob os dedos, pele de algodão rosada, luminosa. Mas havia as diferenças e isso não podia negar. A menina que guardava em sua memória era em todas as situações enérgica, ativa, sempre procurando explicações, explorando a realidade como uma borboleta saída do casulo pronta para descobrir as cores infinitas das flores. Aquela Ginny, no entanto, lhe parecia um pouco mais temerosa, ou talvez mais serena, comedida em seus gestos, os olhos castanhos exalando aquela impressão de sabedoria ancestral, instintiva, acerca dos mistérios da vida. Aquela Ginny não sorria.


“Por que nunca me deixa olhar para você?”, perguntou, a voz fina ecoando no quarto escuro. O vampiro caminhava vagarosamente ao redor dela, envolvido nas sombras, usando de sua astúcia natural para que Ginny não percebesse dele nada além do habitual vulto no espelho.


“Porque você não gostaria disso”, respondeu, os dedos flutuando perigosamente próximos às costas da menina, ameaçando roçar nas pontas dos cabelos acobreados.


“Sim, eu gostaria. Estão achando que estou ficando maluca, sabe? Ou possuída. Você está me possuindo, garoto do espelho?”, indagou, rindo baixinho como se fosse uma piada. Os dois sabiam que não era. Tinham conversado sobre o padre. Ginny dissera que não queria que ele fosse embora, e sua voz nesse momento apresentou um nítido tom de desespero.


Talvez no fundo ele também estivesse desesperado – por paz. Alguém mais romântico poderia dizer por um pouco de amor. Não era o seu caso. Queria apenas que o turbilhão se aquietasse. Queria perdurar para sempre aquele momentos em que olhava para ela, com apenas um pedido mudo de socorro, na certeza de que não lhe seria cobrado que falasse, que se justificasse, que fosse forte. Oitenta anos, já tinha passado muito tempo tentando provar que nada o atingia. E agora estava exausto, precisando embarcar num longo e anestesiante sono de paz, homenageando com seu silêncio sua amada e seu amor, seu cansaço e seu egoísmo, exatamente como esperava que apenas essa única menina fosse capaz de compreender. Se pudesse tê-la por toda uma eternidade, se pudesse ter a pequena Ginny – Virginia, Ginevra, não importava – para iluminar suas noites sombrias enquanto vagava a esmo pelo mundo humano, sempre perdido, fosse nas ruas imundas, fosse nos labirintos dos altos círculos sociais... Ela brilharia para ele como uma lanterna e, mesmo sem admitir, ele a amaria, ou amaria cada um de seus gestos. Seria sua janela, sua passagem para o fim do tormento, seu sopro de ar fresco naquele mundo de sombras e velhos retratos embolorados.


“Tom...”


O vampiro levantou os olhos assustado. Ginny o chamava pelo nome, embora ele nunca tivesse se identificado para ela. Na penumbra prateada, sua pele branca se destacava, a camisola caindo com leveza sobre os ombros estreitos, quase flutuando junto aos tornozelos finos que balançavam perto do chão.


“Eu sabia. Eu sabia que era você. Eu sabia que um dia voltaria para mim...”, Ginny havia se virado na cadeira e o mirava diretamente, sem vê-lo mas adivinhando onde estava com precisão. Uma nuvem cinza pareceu baixar sobre seu rosto suave, as bochechas macias cobertas de pequeninos pontos ficando um pouco mais flácidas. A voz tinha um som diferente do normal, uma formalidade que antes não estava lá. Seus olhos castanhos se enchiam de lágrimas enquanto seus pequenos lábios se apertavam. “Você mata pessoas, não é? Sinto em você o mesmo cheiro de morte que sinto nas rosas”.


O vampiro se revelou, ficando nítido aos olhos de Ginny. Aproximou-se mais e mais e mais. Ficou tão próximo que ele conseguiria sentir o próprio coração bater no peito dela. Tão perto, que ele sentia sua respiração. Tudo estava próximo, exageradamente junto... Tudo, menos os olhos, tão longa era a distância que ali se via, que nem o ritmo do coração de menina, ofegante com a proximidade, empurraria aquelas longínquas luzes para perto.


“Por que faz isso?”, ela deslizou os dedos finos pela testa do vampiro, o contato com sua pele gelada a fazendo ter pequenos arrepios.


“Gosto de fazer isso”, respondeu, as palavras se adiantando de sua boca como se não passassem por nenhuma avaliação crítica do cérebro. Sabia que ela iria vê-lo como um monstro ainda pior se respondesse daquela maneira, mas era impossível agir de outro modo. “Desde que me lembro, gosto de me alimentar da futilidade humana. Na França adotei um nome novo, que não tem nada a ver com aquele que já fui quando era mortal. Voldemort, o vôo da morte que se abate sobre a aqueles que se percebem como imortais”.


“Você mata pessoas... sempre?”, indagou ela, a voz reduzida a um gemido. “Então é mesmo um demônio?”


“A maioria dos seres humanos age como se tivesse o dom da imortalidade quase o tempo todo. Faço das vidas dessas pessoas um pouco menos insignificantes ao despejar sobre elas a verdade de sua natureza mortal e passageira”, justificou. Mestre vampiro, o rei sem vida, Voldemort. Era um vampiro, um poderoso vampiro, e não conseguia deixar de se sentir ridículo porque, não importava o quão superior fosse aos humanos, havia nele aquela incontrolável obsessão que o impedia de constatar que Ginevra Weasley era apenas uma menina comum, talvez mais encantadora do que a maioria, mas, ainda assim, uma simples garotinha humana cuja chama não tardaria a se apagar.


Então aconteceu. Não viu mais Ginevra, sentiu seu corpo acelerar dentro de um turbilhão. Ao redor, rosas de todos os tipos, de todas as cores, no teto do quarto, no chão, nas paredes, nos arranjos de mesa, nos enfeites, nos detalhes das roupas, nos cabelos das moças, nas lapelas dos homens, seu cheiro enjoativo se espalhando no ar. Ouviu o som torturante de um piano, cada nota parecia um gemido de dor. Livros, viu montes deles, com capas de couro colorido. As imagens se dissolviam umas às outras, formando diferentes visões que se sucediam num ritmo frenético. Viu no escuro alguém se contorcendo embaixo de um lençol. Viu de relance um quarto de menina ricamente decorado, com a janela aberta, a cortina sendo tragada para fora, balançando contra o céu negro como se fosse um pássaro tentando fugir. Viu um par de olhos verdes, perdidos na escuridão, brilhando. Pássaros sinistros sobrevoaram sua cabeça, uma paisagem desolada tomava forma como se moldada por areia soprada pelo vento, casas sombrias, árvores fantasmagóricas, um macabro labirinto de galhos verdes e espinhos entrelaçados, cheio de sussurros e uivos agudos. Sentiu que as imagens se quebravam em cacos, caindo sobre seus ombros como pedaços de uma parede que se despedaçava, o peso fazendo com que seus joelhos ameaçassem ceder.


Abriu os olhos. Um barulho rítmico, como o batucar de centenas de tambores, enchia seus ouvidos, subindo e subindo como uma escadaria eterna. Sentia que algo queria saltar de dentro dele. Os olhos castanhos de Ginevra estavam fixos nele, aquele duplo olhar que iluminava como tochas o quarto envolto na penumbra. Um olhar que quase nunca o via, mas em cujo brilho, límpido como o mais sereno lago, podia surpreender vez por outra seu próprio reflexo fúnebre, a lembrança constante de que era um monstro e de que nenhum ponto de vista poderia mudar isso. Um olhar que, mesmo quando o via, desconfiando de um movimento mais brusco vindo das sombras, passava diretamente por ele, incapaz de efetivamente enxergá-lo. E, naquele momento, um olhar que o enxergava perfeitamente, mas não o via de modo comum, via além, como se compreendesse profundamente sua natureza profana. Ela o via como um monstro. Não era sua janela encantada para um mundo diferente, era o espelho de sua sina, de sua condenação eterna, da prisão em que se trancara e agora não tinha mais como sair. Replicava mil vezes a imagem do demônio que se tornara, num eterno jogo de imagens, como um espelho que é posicionado diante do outro, a perfeita visão do mais emblemático infinito.


Não houve nada, absolutamente nada, na vida anterior de Tom comparável ao vigor e à crueza como Ginny o encarou naquele momento. Não havia raiva, rancor, tristeza ou decepção. Já não brilhavam como fogueiras, estavam fundidos na escuridão. Era apenas o frio. O amor, a beleza, tudo fora transformado no frio mais gélido que Tom Riddle já experimentara, brisa de madrugada, neve, temporal, a montanha e o vento, todos os ventos soprando em direção ao anjo de gelo. O pequeno anjo de olhos castanhos. Ela voltou a ficar de costas. Não procurava mais nada no espelho.

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