Coisas transparentes



Parte 4. Coisas transparentes

Os dedos finos de menina apenas corriam pelas teclas brancas e pretas do piano de calda sem emitirem nenhum som. A biblioteca estava escura, com as cortinas de veludo fechadas, não podia enxergar a partitura. Pouco importava, porque a garota de doze anos já tinha decorado a melodia que dançaria em sua audição. Adagio de Rose. A ironia suprema. A música estava dentro de sua cabeça, mas nenhuma nota era materializada pelas cordas.

“However cruel the mirrors of sin, remember beauty is found within”, cantarolou a menina, repetindo a fala da cantora de uma ópera trágica que assistira há poucas semanas. Não era isso que a professora dizia? Tinha que se sentir linda, não importava o que acontecesse, colocar-se no palco como uma estrela, fazer de cada gesto uma exaltação à beleza. Não se lembrava do restante da música, mas essa frase ficara presa em seus pensamentos e, imersa no silêncio e na escuridão, não pôde deixar de se perguntar para onde tinha ido a beleza de que se lembrava.

A beleza. “However cruel the mirrors of sin, remember beauty is found within.” Parecia que, quanto mais repetia, mais aquelas palavras lhe eram familiares. Espelhos. O reflexo que antes a estimulava a ir sempre mais longe, agora lhe dava a sensação aflitiva de que algo lhe faltava. Não sabia o que era, mas sabia que faltava. Havia dentro dela um vazio impossível de preencher, porque quem deveria fazê-lo não o fez, e sobre o qual podia construir nada. A sensação era a mesma de ter acabado de despertar de um sonho bom para reencontrar a realidade sem sentido. Realidade. E se afinal a realidade dissesse que não nascera para a dança e estava fadada a ser apenas uma ex-bailarina casada com um bom partido arranjado pela família?

“Ginny?” A sala subitamente encheu-se de luz e Ginny divisou a silhueta de sua mãe se aproximando por seu lado direito. “Ginny? Ficou surda?”

“O que foi?”, murmurou.

“Nada...”, respondeu Molly. Apoiou os cotovelos na superfície preta e reluzente do piano. Parecia querer dizer alguma coisa. Certamente queria retomar a conversa sobre o motivo que fizera Ginny desistir de freqüentar a academia de balé.

Como explicar o que não poderia ser explicado? Depois do que Nicolas fizera, Ginny não conseguia olhar para ele sem sentir um ódio profundo. Estava surpresa com sua capacidade de guardar rancor. Não sabia perdoar. Também tinha consciência de que não queria aprender. Abandonara a academia e agora estava tentando por conta própria entrar numa companhia de dança profissional. Claro, era o caminho mais difícil, bem diferente daquele para o qual ela se preparara. No fim daquele ano seria indicada por sua professora para se apresentar com Nicolas para os coreógrafos da Real Academia de Balé. Sozinha, tinha que começar de baixo, sendo testada em academias pequenas até conseguir um lugar de bailarina substituta. Seriam anos até que conseguisse uma chance numa companhia grande, e era quase impossível que, sem indicação, pisasse nos palcos do Real Balé.

“Então, vamos ao parque?”, insistiu Molly, e Ginny baixou os olhos para a superfície refletora do piano. Seu reflexo parecia de algum modo enevoado. Por que tudo tinha mudado? Por que agora a Ginny do reflexo parecia sempre insatisfeita? Por que aquilo a incomodava tanto?

Ginny ergueu o corpo da banqueta e, tomada por movimentos automáticos, correu as cortinas da ampla janela. Abriu as vidraças, seus olhos castanhos fixando o céu enevoado. O andar superior da casa dava visão para o distante porto da cidade. O sol quente da primavera a incomodou. A rua estava cheia de pessoas andando em direção a uma igreja. O sino tocava anunciando o início da missa da tarde. Ginny podia ver ao longe a cruz no alto da torre mais alta do templo. A sensação de vazio crescia.

Um navio com bandeira preta despontava no horizonte, arrastando consigo uma quantidade anormal de espuma branca, como se estivesse em decomposição. A visão fez com que uma corrente elétrica percorresse seu corpo, e ela segurou com força o peitoril da janela, os nós dos dedos ficando cada vez mais brancos à medida que o navio avançava descontroladamente de encontro ao cais. Molly lhe perguntava qualquer coisa, mas Ginny não pôde prestar atenção. Estava dominada pela sensação de que algo morto se aproximava.

No cais, o navio parou após arrastar consigo alguns metros do piso de madeira suspenso. Os marinheiros entravam em pânico e os comentários de que a tripulação não entrava em contato por rádio há várias semanas começavam a atrair curiosos. Ninguém viu quando um jovem rapaz vestido elegantemente como se tivesse acabado de sair de uma festa de gala deixou o convés do navio alçando vôo. As nuvens avermelhadas pelo pôr do sol pareciam formar as pétalas de uma rosa disforme no céu.“Seja qual for a região do planeta, a época ou as circunstâncias, os vampiros são sempre narrados como criaturas que se encontram num estado intermediário entre a vida e a morte, precisando para isto alimentar-se constantemente de sangue”, explicou o homem à frente do teatro. Falava de suas pesquisas ao jovem de aparência aristocrática. O jovem Lorde Riddle sustentava uma expressão de médio interesse. Mal chegara à cidade e já fora envolvido na rede de influências da alta sociedade londrina e o autor inexperiente, que pouco se destacava por suas críticas de teatro, agora tentava impressioná-lo com suas idéias para um novo romance. Nada de extraordinário. O tema dos assassinos noturnos sedentos de sangue já fora exaustivamente explorado por Goethe, Victor Hugo, Polidori e Hoffmann sem nunca terem conseguido torná-lo tema popular.

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A longa fachada do teatro no bairro de West End era formada por colunas que imitavam a arquitetura greco-romana iluminadas por luzes difusas. Tom ficou admirando por alguns instantes a placa que anunciava a montagem do espetáculo de dança por uma companhia de balé inglesa. "Toda realidade é uma máscara", anunciava o cartaz em letras vermelhas. Não se esperava muito, claro, mas a dança novamente era sensação na Europa. Não acreditava que as artes fossem recuperar seu sentido tão rápido após a queda do Romantismo, mas o mundo dos homens tinha sua própria velocidade, às vezes lenta, às vezes vertiginosa, sempre incompreensível para alguém como ele, que nunca teria incertezas sobre a existência de mais tempo.

Seu retorno a Londres, no entanto, não tinha por objetivo criticar as artes. No fundo não sabia se tinha qualquer objetivo. Fora apenas tomado pela súbita vontade de rever as avenidas outrora nobres em que vivenciara sua vida mortal. Um desejo mórbido talvez, ou quem sabe mera curiosidade. Logo que desceu do navio com o caixão, soube que a cidade que o esperava não era mais a mesma Londres que deixara. Ainda que para ele as décadas tivessem passado como horas, o mundo estava mudando e o século XIX – o século que Katherine Boufleurs chamava de decadente – entrara em sua reta final. Os rumores de uma possível guerra não paravam de circular em toda parte da Europa. Os trens, que há pouco tempo eram novidade, cediam espaço na capital inglesa a uma obra prima tecnológica denominada metrô. A música agora não precisava mais de artistas presentes para ser ouvida, bastava ter em casa um gramofone. A literatura trágica e delirante do início do século cedera lugar a uma arte rígida, com pouco significado humano, e as vanguardas rebeldes faziam todo o barulho que podiam contra as tendências consagradas. Havia uma grande empolgação com as novas invenções, sendo a mais marcante delas uma "carruagem sem cavalos" construída por dois irmãos no Novo Mundo. O mundo estava se modificando e agora Tom percebia como para ele isso era muito mais significativo que para qualquer mortal.

O jovem Stoker desistiu de tentar envolver o Lorde na conversa e voltou-se para uma jovem de cabelos castanhos que se abanava com um leque de plumas brancas. Várias pessoas aglomeravam-se junto às portas duplas de madeira esculpida. As mulheres usavam longos vestidos com rendas e brilhos por toda parte. Os homens se empertigavam no alto de sua elegância em fraques bem feitos, puxando constantemente dos bolsos relógios com correntes de ouro. Todos falavam alto e sem parar. Uma famosa companhia de balé estava na cidade e o destaque era um espetáculo novo de um proeminente músico russo.

Tom ficou alguns minutos ali, parado, observando as carruagens chegarem e partirem enquanto as pessoas passavam pelas portas para encontrarem um longo tapete vermelho que conduzia às cadeiras e cabines do teatro. Aquela luminosidade artificial piscando por todos os lados era talvez o que mais o incomodava nos “novos tempos”. Abominável. Embora as luzes artificiais não o afetassem, eram para seus olhos de vampiro meras sombras grotescas que minguavam à luz da lua e das estrelas. Ele também não gostava de teatros, mesmo antes de ser um vampiro, mas toda aquela cidade parecia remeter a uma nostalgia sem fim.

“Souberam da história do navio? Do cargueiro vindo da França?”, indagou Miss Milbanke, uma senhora roliça, o vestido verde quase rompendo com a pressão dos seios espremidos. O decote farto revelava um sulco profundo e escuro que dava espaço à imaginação masculina. A visão parecia agradar muito ao fidalgo ao seu lado, que por sinal era casado com uma condensa espanhola que não falava uma única palavra de inglês. A tal condensa segurava o braço do marido e olhava ao redor parecendo desorientada, vez por outra murmurando algo em sua língua, mas ninguém lhe dava atenção.

“Isso foi há uma semana”, fez o fidalgo, antes de trazer aos lábios o charuto.

“O senhor Riddle ainda não deve saber”, justificou Miss Milbanke.

“Coisa pavorosa. Soube que ainda não descobriram o que aconteceu”, interveio Sir Toidealbach, usando um lenço branco para limpar o excesso de suor da testa vermelha.

“Foi a peste!”, falou a baronesa de Hanbury. “A tripulação inteira morta, só pode ser a peste...”

“Peste chegando a Londres? Deus me livre!”, exclamou Miss Milbanke, inclinando o corpo para o lado, com as mangas bufantes do vestido parecendo prestes a tragar seu rosto redondo.

“Mas expliquem a história ao Lorde Riddle, ele não estava na cidade para entender do que estamos falando”, interveio Sir Toidealbach.

“Certamente”, fez Tom. A condensa espanhola olhava discretamente para Tom, as mechas dos cabelos escuros caindo levemente sobre a pele clara do rosto. Evitava erguer a cabeça, apenas os olhos azuis como lagoas límpidas moviam-se. “O que aconteceu com o navio?”

“Esse é o problema”, respondeu Miss Milbanke. “Ninguém tem idéia. Chegou ao porto com todos os tripulantes mortos, a carga intacta”.

“Intacta”, repetiu a baronesa de Hanbury. “Exceto por uma remessa de correio. Foi o que meu marido soube. Ele costuma ir ao cais toda semana para ver como andam os negócios”. Todos os demais integrantes do grupo miraram a baronesa. Ela sacudiu levemente a cabeleira vermelha antes de continuar, no rosto um sorriso de satisfação por estar atraindo a atenção de todos para si. “Um caixão”, concluiu.

“Realmente, extraordinário. Quem mataria a tripulação inteira para roubar um caixão?”, ponderou Tom, as mãos cruzadas na frente da longa capa preta, com os dedos se entrelaçando. Caminhou pelo tapete vermelho, o olhar perdido nos retratos que adornavam as paredes, fotografias de artistas de renome que haviam se apresentado no teatro. A atmosfera era pesada, como algo que permanecera trancado por muito tempo.

O primeiro sinal chamava a platéia a se posicionar em seus lugares. Tom deixou que seus acompanhantes tomassem o caminho dos camarotes e continuou avançando em direção aos fundos do teatro. Tinha a súbita necessidade de deixar aquele lugar e não se sentia disposto a passar pela estrada da frente, atravancada de expectadores apressados para encontrar seus lugares. O corredor seguia ao longo das cadeiras, até virar abruptamente à direita e perder o tapete vermelho. As luzes da platéia não chegavam ali, de modo que um ser humano caminharia às cegas. Um vampiro, porém, era capaz de ver tudo perfeitamente e foi com segurança que Tom tomou o rumo dos camarins, imaginando que ao fim deles encontraria a porta dos fundos.

As pessoas se movimentavam entrando e saindo das portas, meio vestidas, descalças, com os cabelos desgrenhados, carregando sacolas com as fantasias, cantarolando para aquecer a voz. Alguns bailarinos faziam exercícios de alongamento junto às paredes, usando as maçanetas das portas como apoio. Tom caminhava com calma, sempre nas áreas menos iluminadas, passando despercebido enquanto avançava. Já podia avistar a porta de saída quando entreouviu, acima das conversas das pessoas no corredor, a voz alterada de alguém que discutia dentro de um dos camarins. Tom apressou o passo para chegar à saída antes que começasse um tumulto.

Mas então algo o distraiu da tarefa de andar escondido nas sombras. Uma súbita movimentação à sua esquerda, seguida pela porta se abrindo como se alguém a tivesse chutado com força. A luz caiu sobre ele e o desorientou por um instante, e o que viu em seguida foi uma horrenda máscara colorida imitando o rosto disforme de uma velha. Os cachos de uma peruca branca caíam nos ombros da bailarina, compondo um figurino bizarro que não prendeu por muito tempo a atenção do rapaz. Seus olhos foram imediatamente atraídos para os orbes castanhos que se sobressaíam na máscara, faiscando de fúria. A cor e o aveludado dos olhos o fizeram ficar momentaneamente sem ação. Eram ao mesmo tempo angelicais e selvagens, distantes e próximos, fortes e sensíveis, inocentes e cruéis. Nada de meios termos. Tudo neles era extremo. O castanho febril, como o de uma fogueira, perturbadores no modo como o faziam refém. Eram atração. Não como a atração física ou a simples afinidade, mas algo como um sol que atrai para si planetas, cometas e tudo mais que estiver ao alcance.

Mechas de cabelo cor de ouro queimado flutuaram no ar ao redor de seu rosto, saindo dos limites da peruca, quando a garota lhe deu as costas, seguindo pelo corredor em passos pesados, deixando no ar aquele estranho magnetismo que um dia, há muito tempo, Tom Riddle percebera em outra menina.

“O que o senhor faz aqui? O terceiro sinal já vai tocar”, alertou um homem de cabelos negros. Tom apenas olhou para ele o suficiente para que não incomodasse mais e o homem, como se subitamente lembrasse de algo importante, deu meia volta e entrou no próprio camarim.

Tom chegou à porta dos fundos bem a tempo de ver a garota atirar a máscara no chão, partindo-a em pedaços. Arrancou a peruca, revelando os cabelos ruivos presos num coque que se desmanchava sozinho, os fios balançando com vento gelado da noite enevoada, como pediria o cenário de sonho. A lua se desenhava no céu pela metade, como se alguém tivesse lhe roubado um pedaço. A garota olhava fixamente para o astro como se também sentisse falta de uma parte sua. Seus cabelos ruivos sob a luz azulada estavam escuros, seus olhos estavam na penumbra por causa da franja, brilhando como pequenas estrelas num fundo escuro.

O vento suave arrastava a longa capa de Tom. Ele mesmo se sentia como um fantasma. Reconheceu o perfume que emanava dela. A sensação era a mais incômoda possível, a incapacidade de fazer com que o passado permanecesse em seu devido lugar e parasse de invadir constantemente o presente era frustrante. Ninguém além dele poderia entender como o passado podia se mostrar incerto, mudando sempre de acordo com a volubilidade dos humores e disposições. O passado era algo humano demais para ser tolerado. E Tom queria estar à parte da humanidade, esse grupo de seres que sobrevivia processando a própria destruição. Ele simplesmente não era destruidor de si mesmo. Esta era uma idéia reconfortante, e sustentava sua certeza de que já nascera fadado àquele destino. Já nascera amaldiçoado e o fato de ter virado um vampiro fora apenas a constatação desse fato.

“Uns já nascem amaldiçoados”, murmurou Tom apenas para si mesmo, como se lembrasse de uma música antiga. “Outros procuram a própria maldição”, completou. Pé ante pé, afastou-se da porta do teatro, tentando não olhar para a menina. Seguiu rumo à próxima avenida, onde reencontrou seu velho sentimento de solidão. Esta solidão que fora uma companheira agradável nos últimos quase cinqüenta anos, ela era a realização de seu mais intenso desejo em vida: não fazer parte daquele mundo. Escapara dos elos do destino comum, soltara-se das correntes de uma existência sem significado.

A visão de Katherine estendida no tapete, no entanto, permanecia ainda em sua mente, fundindo-se, com o passar dos anos, à lembrança do corpo de Virginia, morta no soalho do quarto. Naquela noite, Tom experimentara um novo significado para sua vida eterna. A ilusão de estar redescobrindo todas as sensações que não o satisfaziam como mortal começou a se dissipar, cedendo lugar à consciência de que, não importava o quanto fugisse, nunca mais estaria livre. Não importava o quanto dissesse que estava acima disso, a sombra de seu crime continuava lá, e ele sempre soube que ela o perseguiria para sempre, pairando acima de sua cabeça, lhe sorrindo sob a forma dos doces lábios de Virginia Chaworth, a face de seu crime e do erro de suas escolhas. Ele apenas evitava olhar para ela.

Não pôde evitar se deter na esquina e mirar mais uma vez a silhueta da jovem bailarina banhada pela luz da lua. Ela sorria em meio às lágrimas, mirando com resignação as pedras da calçada. Era apenas isso. Uma menina de carne e osso, cuja vida não passaria de um suspiro ecoando nos séculos. E, no entanto, já não havia volta, nunca seria apenas mais uma para ele. Pela segunda vez em sua existência, um ser humano era para ele um ser absolutamente único. Virginia estava de volta e dessa vez ele não queria se arrepender.

Num passo apenas, o vampiro fez girar a capa negra, desaparecendo em seguida na escuridão.

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O bairro londrino de East End tornara-se famoso pelas prostitutas que vez por outra apareciam mortas, com suas gargantas cortadas de um lado a outro e corpos lacerados. Na década de 1880 teve lá origem o mito Jack o Estripador Era uma parte da cidade considerada miserável. As construções eram precárias, formando um tipo de favela superlotada situada fora dos muros da cidade, o sistema de esgoto ainda não completado fazia com que alguns lugares tivessem odor desagradável, bares e casas de prostituição da mais baixa classe se amontoavam para servir aos marinheiros que chegavam diariamente ao porto de Londres. Naquele ano de 1894, as vielas escuras do bairro voltavam a ocultar perigos aos que circulavam sob a luz da lua. Dessa vez, porém, a ameaça era muito maior que simples ladrões, estupradores ou assassinos. Era uma ameaça "morta". Ou pelo menos era o que acreditava o doutor Calr Godwin, ao interrogar um grupo de mulheres numa taverna. Tinham aparências variadas, nenhuma particularmente bonita ou limpa, os rostos róseos em expressões debochadas enquanto cochichavam entre si, reclamando que estavam perdendo tempo com um homem que nem sequer pagava.

“Certo, então você quer dizer para tomarmos cuidados com um rapaz rico que paga adiantado e some com as garotas?” perguntou a jovem Annabella, uma irlandesa de pele muito branca com cabelos castanhos volumosos que caíam desgrenhados nos ombros do vestido encardido. Seus dentes amarelados formaram um sorriso de descaso. Girou os pés e seguiu pelo corredor que levava aos quartos num passo dançante forçado que a fazia parecer uma criança brincando com os sapatos de salto da mãe.

Annabella jogou os cabelos para o lado esquerdo antes de girar a maçaneta. A porta rangia um pouco à medida que a luz do corredor escorregava progressivamente por sobre a cama de madeira tosca, onde havia um homem estendido, apoiando o tronco sobre os cotovelos enquanto mexia displicentemente nas margaridas murchas de um vaso de metal enferrujado sobre o criado-mudo ao lado da cama. Seus lábios formaram um meio sorriso que a mulher interpretou como um chamado. Andou rapidamente até a lateral da cama e jogou o corpo sobre ele.

“Aqui estou, meu Lorde”, falou entre risos, brincando com a possibilidade de ele realmente ser o Lorde que dizia ser. Deslizou os dedos por seu rosto pálido, indo em direção aos cabelos negros. Como ele não dissesse nada, abaixou os lábios rosados de encontro aos dele, mas foi afastada por um súbito empurrão, que a fez ficar ereta e escorregar para o tapete vermelho de tiras de tecido entrelaçadas que havia no chão.

Ela pensou em protestar, mas no instante seguinte o rapaz se levantava para erguê-la e depositá-la cuidadosamente na cama, chamando-a de mademoiselle, murmurando um polido pedido de desculpas e dizendo que aquilo não era jeito de tratar uma mulher.

“Não mesmo”, ela sorriu, seus olhos exageradamente azuis refletindo o rosto do rapaz, como a límpida superfície de um lago. “Precisa ser um bom menino, não sabe?” Annabella não tinha nenhum tipo de beleza estonteante, mas sua vivacidade a tornava uma sensação, pelo menos para os padrões modestos de East End. Era bem provável que um dia se tornaria apadrinhada de um nobre qualquer e passasse a figurar na alta sociedade como uma concubina de luxo. Por enquanto, porém, era apenas uma mulher que guardava alguns trejeitos infantis que a faziam particularmente encantadora e despertava a inveja das demais prostitutas da taverna.

O rapaz sorriu da provocação. A garota puxou a saia do vestido, revelando o joelho. A pele branca acetinada brilhava sob a luz da lua.

“E o que acontece se eu for um mau menino?”, indagou ele enquanto afastava delicadamente os cabelos dela dos ombros a fim de revelar o desenho suave das clavículas e do pescoço fino e delicado como o de um cisne. Annabella deixou escapar um suspiro quando ele se debruçou sobre ela.

“Então você não vai para o céu, não é mesmo?”, respondeu ela com a voz rouca. Sentia-se subitamente fraca. Não era o tipo de sensação que esperava ter durante um trabalho.

O rapaz ergueu o rosto. “Se existe algum céu, não me espere porque não vou”, murmurou e Annabella riu em resposta, tonta demais para fazer outra coisa. Só percebeu que havia algo errado quando gotas escuras pingaram dos lábios do rapaz sobre o babado branco do decote do vestido. No escuro, porém, jamais adivinharia que era sangue.

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A fachada do prédio era de mármore, com arabescos entalhados na pedra, remanescentes do Romantismo do início do século. A música fluía através das amplas janelas iluminadas do andar superior, dissolvendo-se no ar úmido da noite. Calr Godwin atravessava o jardim murmurando coisas como se conversasse com alguém invisível. Era um jardim muito interessante para um observador mais atento. Entre flores cuidadosamente posicionadas para que suas cores se harmonizassem com perfeição, havia frágeis esculturas de vidro. Numa pequena lagoa cercada de pedras brancas, cisnes transparentes se banhavam na luz prateada da lua.

A porta da casa era alta, com pequenos quadrados de vidro que jogavam fachos luminosos na varanda. Não foi preciso que Calr batesse; a porta foi aberta rapidamente por uma camareira de uniforme. Ela sorriu brandamente ao vê-lo, seus cabelos negros contrastando com a pele pálida, tão pálida que passaria facilmente por um cadáver.

“Lady Boufleurs estava esperando pelo senhor”, murmurou e fez um gesto para que o doutor entrasse. Por dentro, a casa era nada menos que cintilante. Tudo brilhava, vítreo e dourado, com sofás de braços de marfim com forro de veludo marrom. A figura da anfitriã surgiu no topo da escada. Usava um vestido vermelho de tecido fino e tinha o rosto parcialmente oculto por um véu branco.

“É bom revê-lo, doutor Godwin”, sua voz estridente ecoou na sala, e alguns cristais do lustre pareceram reverberar levemente. Ela desceu os degraus vagarosamente, seu corpo se mexendo como se fluísse numa lenta correnteza branca. Ao chegar ao térreo, jogou o véu para trás, revelando os ralos fios brancos e dourados dos cabelos. Tinha as maçãs do rosto saltadas, como se tivesse perdido peso muito rapidamente, seus olhos fundos eram uma mistura doentia de amarelo e verde. A pele levemente azulada contrastava com o vermelho dos lábios. Ela estendeu a mão delicadamente para que o visitante pudesse beijá-la.

Lady Boufleurs era apenas a sombra da jovem que fora um dia, dona de um modo de andar felino que magnetizou por anos a juventude romântica londrina. Já não era humana quando aportara na cidade no início do século, após uma carreira vertiginosa nos teatros italianos, quando se destacou pelo talento para o lirismo. Em terras inglesas tornou-se musa de uma geração impulsionada pela transgressão literária. Suas feições pálidas e suaves e o modo como desfilava, brilhando como uma estrela inatingível, encaixavam-se perfeitamente aos ideais de beleza etérea da época.

Naqueles anos, a tuberculose dizimava rapidamente os artistas, enfraquecidos pelo consumo desenfreado de álcool e os excessos noturnos nas casas de prostituição, mas jovens ansiosos por terem alguma visibilidade não paravam de chegar, buscando na cidade inspiração para criarem qualquer coisa que os fizesse reconhecidos. A maioria dos artistas era composta de adolescentes. Alguns tinham empregos, mas a maioria não trabalhava, já que esta era a moda entre os boêmios. E essa moda teve ali alguns de seus mestres supremos, garotos que saíam de casa para passar meses gastando o quanto pudessem, até que fossem obrigados a voltar porque não tinham sequer como comprar comida.

Foi em 1811 que ela simplesmente saiu de cena. Desapareceu, sem deixar para trás nem uma única pegada dos sapatos de cetim vermelho. Alguns diziam que simplesmente optara pela autodestruição como tantos outros, embriagando-se de absinto até cair morta numa sarjeta. Outros afirmavam que a vida boêmia exaurira sua energia vital. Com a queda do Romantismo, poucas perguntas foram feitas sobre seu destino e ninguém poderia traçar qualquer paralelo entre a luminosa Katherine, que enfeitiçara os artistas seu tempo, e a exótica Lady Boufleurs, dona de uma beleza decadente que se cercava de excessos luxuosos como se vivesse numa corte renascentista. Seu exílio foi o do anonimato e sua lembrança se perdeu na história.

“Não vai encontrar aqui as respostas que deseja, doutor”, ela falou simplesmente, esticando o corpo sobre uma poltrona, a perna direita dobrada de modo que pudesse apoiar o queixo fino no joelho. “Não ando fazendo vítimas em East End. É um lugar vulgar demais para uma dama”, completou, os olhos sem brilho acompanhado Calr enquanto ele puxava uma cadeira para se sentar de frente para a vampira.

“Então por que me deixou entrar?”, perguntou o homem, perspicaz, enquanto observava o rosto de Katherine mudar de expressão, como se trocasse de máscara, tão rapidamente que parecia não mover um único músculo.

“Porque o que os humanos geralmente precisam não é o que desejam”, ela ergueu os olhos e apoiou os braços nos lados da cadeira, os fios descoloridos caindo sobre o rosto. “É a grande vantagem de estar vendo o movimento da vida pelo lado de fora. E não digo que isso nos torne mais lúcidos sobre nós mesmos”, ela fez um movimento leve com a cabeça, como se lembrasse de um acontecimento distante. “Mas com os humanos somos bastante perceptivos, faz parte da nossa sobrevivência. Temos a vivência dos finais inevitáveis”.

“Quer dizer que pode me dar uma pista sobre quem está por trás dos ataques em East End?”

“Doutor, o senhor tem o hábito de ler jornais? Se tivesse não estaria se preocupando tanto com as prostitutas de East End. Nobres estão incluídos na lista de vítimas. Bailarinas, cantoras. Você está atrás de alguém que gosta de experiências diversificadas e que não tem medo de perseguir o sangue aristocrático”.

Lady Boufleurs ergueu-se da cadeira. Afastou a leve cortina de renda da janela, revelando a silhueta da lua recortada contra o céu negro. As estrelas estavam parcialmente cobertas pelas nuvens. A brisa gelada penetrou na sala. Os olhos da vampira estavam fixos em algum ponto distante na paisagem. “O amor é definitivamente mais mortal que qualquer mordida. Mas alguns de nós nunca irão compreender isso. Você não conhece o gosto que tem viver longe do mundo, fora do tempo. Nascemos proibidos de sentir, proibidos de tocar no corpo do outro sem tirar seu sopro de vida. Os humanos não pensam muito nisso, nem sequer admitem o quanto sentem. Estar vivo é fingir que não sente o que sente. Esse mundo imundo...”

“Lady Boufleurs, eu não...”, Calr começava a falar, mas foi interrompido por um gesto da vampira.

“Procure uma menina de cabelos vermelhos”.

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