Seguindo em Frente



Um compromisso certo para alguém se casar com uma determinada pessoa numa determinada ocasião, haja o que houver, sempre considerei como a coisa mais ridícula na face da terra.

Jane Welsh Carlyle
(1825)






Boston, junho de 1852



Ser invisível costumara ter suas vantagens. Hermione Jane Granger gostaria que as pessoas parassem de encará-la. Desejava, de todo o coração, que o chão reluzente do salão de baile se abrisse e a tragasse. Não seria surpresa para ninguém se algo assim acontecesse. Desaparecer no meio de um salão apinhado era algo corajoso, sem dúvida, e Hermione conquistara recentemente a reputação de corajosa.

Ser corajosa, desafiadora até, era a única maneira de poder prosseguir dia após dia sem desmoronar por completo. Depois daquela manhã chuvosa nas docas, havia-se fechado num casulo, recusando-se a comer, a dormir, incapaz de chorar. Aqueles primeiros dias após a terrível perda no mar permaneceriam como um borrão para ela.

As autoridades tinham-na procurado para questioná-la sobre escravos escondidos a bordo do Cisne de Prata. Ela sustentara-lhes o olhar e declarara que não sabia nada, absolutamente nada, a respeito de escravos fugitivos.

Houvera uma busca pela escuna desaparecida. As águas daquela área tinham sido vasculhadas à procura de escombros e, corpos. Mas apenas pequenos escombros fora encontrado. Harry, Dino e sua família tinham desaparecido da face da terra como se nunca tivessem existido. Hermione obrigara-se a enviar uma carta para Lily, mas o esforço consumira-lhe toda a energia. Estava vazia por dentro.

Os membros da tripulação do Cisne de Prata tinham seguido seu caminho, dispersando-se como blocos de gelo com a chegada da primavera.

Hermione tornara-se calada. Mal se movera. Os pais haviam chamado um médico, e, apaticamente, ela acabara aceitando seus cuidados, mas o especialista acabara se exasperando com sua falta de reação ao tratamento.

O tolo. Será que não conseguia entender que sua paciente estava morta por dentro?

Ela havia morrido, tão horrível e completamente quanto Harry quando o mar o tragara. Mas, para sua irritação, continuava respirando. Seu corpo mantinha suas funções. Não podia fazê-lo parar.

A tragédia não surpreendera a ninguém. Harry Potter fora conhecido por ignorar o protocolo, ele e seu sócio africano, ambos tão pouco convencionais que parecera que o mundo ainda não estivera pronto para eles. Talvez fora por aquela razão que não tivessem podido sobreviver.

Dino estaria melhor, perguntou-se Hermione, com sua esposa e filhas no repouso eterno? Seria melhor estarem unidos pela morte do que separados em vida?

Hermione ansiara pela morte. Tentara render-se à escuridão, desistindo de lutar, mas, ainda assim, a vida persistia em suas veias. Enfim, duas semanas antes, chegara a uma constatação que a lançara decididamente de volta ao mundo dos vivos.

Arrastara-se da cama, nauseada como nunca estivera a bordo do Cisne, e, enquanto esvaziara o conteúdo do estômago convulsivamente, entendera o que se passava.

Estava esperando um filho de Harry.

Saber daquilo havia liberado uma torrente de emoções. A dor profunda e reprimida emergira de súbito, e o choque de estar sentindo algo novamente a fizera cair de joelhos, soluçando. Chorara como não conseguira fazer antes, deixando vir à tona todo o amor, todo o sublime e maravilhoso amor que sentira por Harry. Ele morrera, mas deixara um filho em seu ventre.

Hermione carregava o segredo dentro de si, tentando descobrir uma maneira de suportar os sentimentos de angústia e alegria. Se havia algo que não sentia era vergonha. Todos esperariam aquilo dela, quando o escândalo eclodisse, mas, mesmo depois que aquilo acontecesse, sabia que não poderia se envergonhar do que fizera com Harry Potter, do que haviam sentindo um pelo outro, da felicidade partilhada.

O mais doloroso a enfrentar era o fato de que nunca dissera a ele. Não havia reconhecido que a paixão, a ternura, o entusiasmo que sentira por Harry tinham sido o mais puro amor. Estivera tão envolvida consigo mesma e com sua vida em Boston que falhara em enxergar o que estivera bem diante de si O homem a quem amava era Harry. Admirava-se com o fato de ter podido olhar para ele sem ver a verdade.

Até que o conhecera, nunca aprendera a reconhecer o amor, a confiar em tal sentimento. Porque o amor em sua família não era algo dado livre e incondicionalmente, mas era um sentimento frio que dependia de um protocolo bastante especifico e de um conjunto de valores. Quaisquer virtudes que ela possuísse não significavam nada a menos que viessem num invólucro adorável e refinado.

Harry fora tão diferente. Amara a ela. Como a pessoa que era. Não à sua posição social, sua família, sua aparência ou fortuna. Mas a ela, pura e simplesmente. A idéia era-lhe tão nova, tão inédita, que só a entendera tarde demais.

A descoberta de sua condição a lançara num turbilhão emocional do qual quase não emergira. Mais uma vez, o médico fora chamado, daquela vez tentando acalmar-lhe o choro histérico. Ao final, porém, não fora a medicina, mas o amor que a salvara. O universo estava tentando lhe dizer algo. Talvez nunca conseguisse se perdoar por não ter contado a Harry que o amava, mas havia uma força maior em questão. O bebê era uma confirmação de que tudo o que partilhara com Harry fora especial e mágico, fora algo que nem mesmo a morte podia lhe tirar.

Negar a vida ao bebê, manter-se à parte do mundo por causa de sua dor, era inaceitável. Era tempo, decidira, enfim, de voltar ao mundo dos vivos.

Sua primeira atitude fora a de lutar pela causa que era contra a instituição responsável por ter destruído Harry, Dino e sua família. Começara a freqüentar reuniões antiescravagista envolvendo-se cada vez mais com um grupo de abolicionistas radicais que não parariam por nada até conseguirem terminar com a escravidão.

Era por aquela razão que estava na festa oferecida por seus pais, usando uma fantasia tola para um baile de máscaras, tentando fingir que queria estar ali.

Na verdade, tinha um propósito secreto. Havia entrado em contato com a Sociedade Abolicionista de Boston. Quando seus pais descobrissem, ficariam chocados, sem dúvida, pois a escravidão era uma daquelas coisas que não aprovavam, mas pela qual jamais teriam o péssimo gosto de tomar partido.

Hermione tinha a intenção de fazer mais do que tomar partido na questão. Iria agir. Ficara sabendo, em uma das reuniões da Sociedade Abolicionista, a respeito de um navio utilizado exclusivamente para facilitar a fuga de escravos. Era virtualmente um navio fantasma. Ninguém sabia seu nome, nem o do capitão ou da tripulação, nem tampouco o porto de origem. Algumas pessoas diziam que aquilo não passava de rumor, mas o navio era conhecido por passar pelos portos do sul na calada da noite, encher-se de escravos e navegar para a segurança do Canadá, tão velozmente que nenhum perseguidor podia alcançá-lo.

Hermione achava a lenda romântica, mesmo que talvez não fosse verdade. E caso fosse, pretendia dedicar sua vida a apoiar os que estivessem por trás daquela empreitada.

Recebera uma mensagem criptografada naquela noite, dizendo que um importante contato seria feito no baile de máscaras. Intrigada, havia colocado uma fantasia e deliciado seus pais com sua aparição.

Inquieta com seus pensamentos e tentando evitar os olhares especulativos dos convidados, recostou-se junto a uma grande janela, refugiando-se na penumbra projetada pelo arco que a encimava, mas ainda pôde ouvir.

- Ela é a ovelha negra da família, sem dúvida. E de várias maneiras - sussurrou uma voz mexeriqueira que Hermione supostamente não deveria ouvir. - É tão diferente do restante dos Granger. É bronzeada como um selvagem, e os irmãos e irmãs são todos loiros feito querubins.

Será que não podiam falar sobre alguma outra pessoa?

- Mas ela é tão bonita, tão charmosa. É de admirar que ninguém tenha notado isso antes - veio a resposta.

- Dizem que poderia ter quem quisesse para marido, mas que tem andado tão estranha ultimamente...

Hermione deixou a janela, não querendo ouvir mais nada. As maledicentes sobressaltadas, duas das amigas da mãe dela, tentaram disfarçar, agitando os leques vigorosamente e limpando a garganta, aparentando inocência.

Como de costume, ela fingiria que não ouvira. Iria saudar os amigos de seu pai cordialmente. Dançaria mecanicamente com os homens esperançosos que outrora haviam se escondido com sua aproximação, mas que agora faziam fila para a cortejarem.

A dor e a humilhação que ela costumara sentir na época em que fora esnobada em tais eventos sociais pareciam tão triviais agora. Porque, afinal, já havia conhecido o ponto culminante da alegria e as trevas mais profundas do desespero. Fechando-se naquela espécie de estranho torpor, conseguia suportar tudo.

Era verdade que chegaria o dia em que teria que revelar a verdade sobre seu estado. Toda a Beacon Hill ficaria em polvorosa com a história da filha desgarrada dos Granger e o impetuoso capitão sulista. Já havia decidido que desapareceria junto com a criança antes que o escândalo pudesse atingi-las. Talvez, como o navio fantasma que levava ex-escravos para a liberdade, um navio aparecesse para buscá-la e a levasse para alguma terra distante, onde fosse seguro criar uma criança num ambiente de aprovação e amor. Devia aquilo a Harry. Devia aquilo ao amor que haviam partilhado.

Absorta em tais pensamentos, concedeu uma dança a vários cavalheiros. A maioria era formada pelos amigos de seu irmão de Harvard, fantasiados de príncipes, vampiros e cavaleiros em armaduras de lata. Ron, trajando a toga de um deus grego, tirou-a para dançar durante a seqüência mais longa de valsas, pretendendo monopolizá-la. Ao final da dança, conduziu-a pelas portas-janelas até o terraço. Desceram os três degraus de mármore até a fonte central nos fundos, uma carpa vertendo água eternamente numa grande concha. Sob a noite fresca, tomou-lhe a mão na sua.

Pelos céus, ele certamente não podia ser seu contato.

- É tão bom ver você recuperada e participando dos eventos sociais outra vez - disse-lhe, percorrendo-a de alto a baixo com um olhar faminto. - Não tenho feito outra coisa senão pensar em você desde que retornou da sua viagem.

- Espero que esteja exagerando - respondeu ela, com um suspiro - do contrário me faria pensar que não tem nada de interessante para fazer.

Ele riu como se aquilo se tratasse de um gracejo.

- Eu lhe digo, é verdade. Ouso ser pretensioso o bastante para acreditar que no passado você me demonstrou grande devoção.

Hermione não viu motivo para mentir.

- Houve uma época em que você era tudo com que eu sonhava.

- Eu sabia. - Ron a puxou para si, envolvendo-a com seus braços.

Hermione deu-se conta, então, de que ele soubera o tempo todo sobre sua adoração. Ron soubera e fizera questão de ignorá-la. Uma coisa era nunca ter notado a sua devoção, outra completamente diferente ter sabido sobre seus sentimentos e os ignorado com toda a frieza.

De repente, queria distância dele.

- Ron...

- Hermione, deixe-me terminar. Você certamente já adivinhou as minhas intenções a esta altura. Quero me casar com você. Nós seremos...

- Por favor, eu...

- Não, ouça. É a mulher mais fascinante que já conheci e jamais poderei ser digno de você, mas tentarei. Meu pai já me colocou num cargo importante na companhia. Ficou bastante impressionado com meu papel em desviar o escândalo do Cisne de Prata.

Um calafrio percorreu Hermione.

- Não sei o que quer dizer. Que escândalo?

- Quase perdemos a nossa boa reputação por causa daquele inconseqüente do Harry Potter. Quando o Cisne aportou, eu presumi corretamente que ele estava transportando escravos fugitivos. Agi depressa e salvei a companhia de constrangimentos, sem mencionar de multas pesadas.

Ela o afastou de si.

- Foi você, então! Você alertou as autoridades sobre a família de Dino.

- É a lei. Eu teria sido culpado de conspiração se deixasse de relatar minhas suspeitas. E lembre-se, nossa companhia de comércio faz negócios no sul. Não podemos correr o risco de perder as cargas de tabaco e algodão.

Hermione ficou tentada a deixar clara a sua opinião, a passar-lhe um severo sermão sobre os direitos do ser humano e tudo que aprendera em seus encontros abolicionistas. Mas sabia que de nada adiantaria. Aquele homem não tinha perspicácia nem sensibilidade o bastante para reconhecer a humanidade de outro. A inteligência. Especialmente a de um homem negro e, com certeza, não a de uma mulher como ela.

Deu mais um passo atrás e fitou-o nos olhos.

- Eu nunca conheci você até este dia. Parece que eu gostava mais de você quando não o conhecia.

- O que...

- Com licença.

Ele pegou-lhe o braço, o semblante ficando carregado.

- Será que entendi bem? Você está me recusando?

- Não podia ter entendido melhor - retrucou ela, lançando um olhar faiscante para a mão que ainda segurava seu braço. - Por favor, solte-me neste instante.

- Eu acho que não. Acha que pode me recusar? Você não é mais tão respeitável agora que esteve num navio com uma tripulação de marujos rufiões e escravos fugitivos.

Ah, finalmente alguém tinha a coragem de lhe dizer a verdade cara a cara. Hermione soube, então, que não tinha saído ilesa daquela jornada.

- Achei a companhia deles muito mais agradável do que a de qualquer pessoa em Boston.

- O que prova a sua falta de discernimento. Eu soube que Potter não prestava desde o momento em que entrou em Harvard, ele com seu sotaque ridículo da Virgínia e as mulheres baratas que arranjava.

- Fico contente em lhe informar que fui uma dessas “mulheres baratas” na vida dele. Ainda me quer?

- Acho que não tenho escolha, uma vez que a sua desgraça aconteceu a bordo do meu navio.

- Mas por que você, o poderoso Ronald Weasley, iria querer uma pária da sociedade?

O rosto dele se anuviou, mas logo a expressão de desejo ficou clara.

- Casar-me com você agora seria algo abaixo de mim, mas eu poderia torná-la respeitável outra vez. Você é única entre as mulheres, mas espero que seja grata a mim pelo resto de seus dias.

Hermione esqueceu-se do nome específico do soco que usou. Numa ocasião, Gerald ensinara-lhe os termos. Não importava, porque o que não havia esquecido, pensou, satisfeita, era o uso exato do soco. Seu braço, ainda fortalecido pelas atividades que desempenhara no navio, desfechou um golpe certeiro, o punho cerrado atingindo em cheio o rosto de Ron.

Ele soltou-a no mesmo instante, sacudindo os braços no ar antes de cair de encontro à beirada da fonte.

Hermione, então, empurrou-o pelos ombros, fazendo-o cair de costas na água.

Com as mãos nos quadris, olhou com altivez para o ser desprezível que o antigo objeto de sua adoração equivocada acabara se revelando.

- Oh, Ron, você está todo molhado. E sua bela fantasia está manchada de limo. O que as pessoas vão dizer?




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