De como eles se descobriram



Capítulo 3 – De como eles se descobriram


- É isso, então? Entendo... sim... é, realmente difícil para a família. Eu compreendo. Onde ela está? Hospital no centro de Londres. Ok. Obrigado madame Pince. Qualquer problema voltaremos a nos falar. Até logo.

Ronald desligou o telefone e levou a mão à testa, afastando os cabelos ruivos que lhe caíam pelos olhos e registrando na memória que precisava cortá-los. Mas não havia como gravar aquela informação diante de todas as outras que acabou de receber da mulher que lhe havia alugado o apartamento.

Precisava conversar com a aparição de cabelos castanhos e olhos brilhantes. Contar a ela tudo o que tinha acontecido. Dizer-lhe que, enfim, sabia o seu nome. Mas estava preso naquele maldito escritório por pelo menos mais uma hora. Ele ainda não sabia como tinha conseguido voltar ao trabalho depois de tudo o que aconteceu. Olhar para a mesa ao lado, agora ocupada por uma loira oxigenada que se achava inteligente, lhe dava náuseas. E foi exatamente essa sensação de afundamento no estômago que ele usou para pedir dispensa do trabalho naquele dia, embora o desconforto provocado pela ligeira dor fosse algo suportável.

Resolveu ir para casa caminhando, mas se arrependeu na metade do caminho. A garoa fina que começou a cair estava bastante gelada, e Ronald era um homem que não gostava de guarda-chuvas. Portanto, não tinha um. Apenas vestiu o capuz do casaco e fechou o zíper até em cima, caminhando de cabeça baixa até que a chuva apertou. Estava próximo de casa, mas o que custava parar para tomar um capuccino com conhaque naquele Café da esquina? Abriu a porta do local e deu de cara com a vendedora da livraria, que tomava o lanche da tarde ali. Ela mexia uma xícara com leveza, enquanto seus olhos permaneciam fixos em um ponto qualquer adiante, que, obviamente, não mostrava nada de interessante aos olhos de Ronald. Um tanto hesitante, aproximou-se dela:

- Hã... olá!

- Ah! Oi, moço dos espíritos – disse a loira, parecendo enfim notar a presença de Ronald, que havia sentado na banqueta ao seu lado.

- Pode me chamar de Ronald, senhorita...

- Lovegood. Mas pode chamar de Luna, não ligo para essas coisas de sobrenomes. Vejo que você não está acompanhado hoje. Onde está ele?

- Ele não. É ela – e, sem sequer notar o que fazia, Ronald soltou um ligeiro suspiro. Quando se deu conta do olhar divertido de Luna, imediatamente ruborizou, mas ela pareceu ignorar o fato. Ou fingiu ignorar.

- Já consultou os livros? Talvez eles possam ajudá-lo em algo. Embora a comunicação com os espíritos seja bastante difícil. Você precisa aprender a senti-los antes de vê-los, como eu o fiz. Agora, conversar com eles será uma questão de tempo para mim.

Ronald pensou em dizer que já tinha pulado essa fase, mesmo sem ter a intenção, com o espírito de seu apartamento, mas resolveu ficar quieto. Luna era bastante esquisita, os olhos esbugalhados e sempre parecendo perdidos, um jeito calmo de falar que chegava a irritá-lo um pouco. Terminou de tomar o café em silêncio e se despediu da jovem com um aceno de cabeça e uma sensação desconfortável dentro do peito.

Ao chegar no apartamento, sentiu um peso ainda maior do que quando havia deixado o escritório. Por que tinha que ser daquela forma? Por que ele queria sempre se isolar e, quando finalmente estava sozinho, sentia aquele vácuo dentro de seu coração?

O telefone começou a tocar, mas ele não quis atender. Os únicos que ligavam para ele eram seus insistentes pais e irmãos. Os Weasley eram uma família muito grande, Ronald tinha mais cinco irmãos e uma irmã, todos casados e com crianças correndo pela casa, que eles insistiam em chamar de “A Toca”, como nos tempos em que eram jovens. Os encontros familiares tinham muita... felicidade. E ele não suportava ficar no meio daqueles que o amavam e sentir os olhares pousados sobre ele e sua tristeza. Ele não tinha se casado por opção, ainda se achava tão novo, e aquilo não tinha sido um problema até que o desastre aconteceu. Até que ele se foi.

Poderia parecer estranho para quem ouvisse, mas Harry Potter e Ronald Weasley eram como dois irmãos separados no parto. Claro que isso era apenas uma brincadeira, já que os cabelos ruivos contrastando com os muito pretos e espetados de Harry deixavam claro que ali faltava um laço de sangue. Mas o que importa quando se escolhe dividir uma vida com alguém? Ou quando você mesmo determina quem quer ter para si como irmão. São assim os amigos que fazemos pela vida. Era assim que Ronald e Harry tinham sido, como irmãos desde pequeninos.

Ronald se jogou no sofá e abriu os livros que havia comprado na livraria de Luna para consultá-los. Havia diferentes maneiras de contatar os mortos, e ele até tentou algumas, sentindo-se extremamente idiota por isso. Pensou, com amargura, que, na verdade, são os do outro mundo que escolhem a hora de falar, e não nós. Harry talvez não sentisse sua falta tanto quanto ele sentia do amigo. Por isso nunca tinha voltado para consolá-lo nos momentos em que ele sentia como se fosse explodir de tanta dor.

A pior lembrança de Ronald tinha sido aquela manhã de julho. Ele chegou ao trabalho e viu a mesa do amigo vazia. Estranhou, pois Harry sempre chegava mais cedo que o ruivo, totalmente incompetente no quesito “acordar quando o despertador toca”. Ronald hesitou por um instante, mas não teve muito que especular. O telefone tocou em seguida e ele não se lembrava exatamente das palavras que ouviu, enquanto tentava continuar em pé ao ver o mundo ruir ao seu redor. Viu sua vida passar como um livro diante de seus olhos. Na mente, palavras vazias caminhavam de um lado para o outro, como se boiassem no oceano depois de um naufrágio: atentado, metrô, hospital, Harry.

Quando deu por si, Ronald correu. Correu o máximo que pôde, deu às suas pernas tudo o que ainda podia reunir de forças, enquanto seu rosto era lavado pelas lágrimas. Ronald era pessimista. Inseguro. Fatalista. E, ao chegar ao hospital, ele já não estava mais lá. Harry o tinha abandonado para sempre.

Ronald balançou a cabeça para tentar afastar as lembranças ruins. Mas aquele apartamento vazio era opressor, solitário. As luzes começavam a se acender em toda a cidade, e ele observava as janelas dos outros prédios, imaginando que haveria neles famílias reunidas para o jantar, maridos fazendo amor com suas esposas, crianças correndo pela casa ou assistindo televisão. Todos tinham alguém. Todos, menos ele. Ronald só tinha sua própria solidão.

Fechou os livros e foi para o quarto, ligando o rádio e deitando na cama. Quem sabe se ficasse ali, em silêncio, refletindo, talvez ela aparecesse. Talvez ela voltasse para brigar com ele, e enchesse a casa de luz e som e vida, por mais irracional que isso pudesse ser. Afinal, ela era só um espírito. Mas era tudo o que Ronald desejava como companhia naquele momento. Se ele pudesse, ao menos uma vez, uma só vez, apertá-la contra o peito, todo o vácuo que sentia dentro de si haveria de se encher, ele tinha certeza.

O rádio cantava aquela música. E tudo nela parecia se encaixar:

- Spinning on that dizzy edge I kissed her face, I kissed her neck and dreamed of all the different ways I had to make her glow. "Why are you so far away," she said. "Why won't you ever know that I'm in love with you, that I'm in love with you?". You... soft and only. You... lost and lonely. You... strange as angels dancing in the deepest oceans, twisting in the water, you're just like a dream. Just like a dream...

Sim... só podia ser um sonho. E, apesar de se sentir extremamente cansado e ansiar por adormecer, Ronald não conseguiu fechar os olhos a noite toda. Apenas ficou observando as luzes da cidade se transformarem num belíssimo amanhecer gelado de outono, o sol brilhando timidamente na janela.

- Bonito, não é?

Ele se sobressaltou e seu coração se aqueceu ao ouvir a voz dela ecoando de novo em seus ouvidos. Ronald apenas assentiu com a cabeça enquanto a observava, os braços cruzados diante do corpo como se quisesse espantar um frio que ela não podia sentir.

- Eu não sei por que, mas sinto que nunca tive tempo para observar tudo isso de verdade. É como seu eu tivesse a sensação de que desperdicei minha vida com alguma coisa que não valeu a pena.

- Talvez ainda tenha como fazer valer – ele disse, referindo-se mais a si mesmo que a ela.

- Como? Eu não estou morta, afinal? Agora não tem mais o que fazer. Só não sabia que morrer era isso, era ficar preso, era não ter para onde ir. Será que eu vou ficar pela eternidade assim? Sozinha?

- Você não está sozinha... e nem morta – disse Ronald, sentando-se na cama e mirando seus olhos muito azuis no rosto confuso dela, registrando a maneira graciosa como ela enrugava ligeiramente a testa quando não sabia o que dizer.

- Como assim? Você descobriu algo, Ronald?

Ele sorriu diante da ansiedade dela. Ela o encarava, séria, os lábios molhados tremendo ligeiramente quando falou:

- Pelo amor de Deus, Ronald, diz algo!

- Desculpe. Eu acho que nós temos que ir até o hospital do centro de Londres. Lá eu consigo te mostrar o que sei – disse Ronald, pegando as chaves do carro e vestindo um casaco por cima da roupa.

- Hospital? Ronald, assim você me mata e... – no entanto, ela se calou, pois não seria possível que ela morresse de novo, se estivesse efetivamente morta. – É... você entendeu, foi força do hábito e...

- Venha.

E, sem pensar, ele ofereceu a mão para ela, que tentou tomá-la para si, mas acabou por atravessá-la. Ronald sentiu uma estranha sensação de formigamento enquanto olhava para ela, que tinha ficado bastante sem graça. Quando falou, a voz estava entristecida:

- Eu sequer... posso... tocá-lo...

Ele estendeu a mão no ar e a encorajou, com o olhar, a fazer o mesmo. Ela colocou a mão esticada sobre a dele, e permaneceram assim, ambos se olhando. Era como se ela pudesse mergulhar num oceano sem fim, o azul claro e límpido dos olhos de Ronald contrastando com os vivos castanhos dela. Não podiam sentir um ao outro, separados que estavam por dois mundos distintos. Ronald apenas observava o contorno dos dedos finos, delicados, de unhas bem feitas. Porém seu coração batia como se ela estivesse ao seu lado de corpo, e não apenas de alma.

E Ronald concluiu que não queria mais ficar só.

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