A amizade bate à porta



Gina estava andando por um campo entupido de lindos lírios laranja; o vento assoprava gentilmente, fazendo as pétalas sedosas acariciarem as pontas de seus dedos enquanto ela abria passagem pelas longas folhas de grama muito verde. O chão parecia estar macio por debaixo de seus pés e seu corpo parecia tão leve que ela simplesmente parecia estar flutuando sobre o chão esponjoso. À sua volta, os pássaros cantavam alegres. O sol estava tão brilhante no céu sem nuvens que ela tinha que proteger os olhos, e a cada assopro de vento que acariciava seu rosto, o doce aroma dos lírios enchia suas narinas. Ela se sentia tão... feliz, tão livre. Um sentimento que era alien a ela esses dias.

De repente, o céu escureceu e seu sol caribenho desapareceu por trás de uma enorme nuvem cinza. O vento ficou mais forte e o ar mais frio. À sua volta, as pétalas dos lírios corriam pelo ar loucamente, borrando sua visão. O chão que havia sido tão macio foi substituído por afiadas pedras que cortavam e arranhavam seus pés a cada passo. Os pássaros haviam parado de cantar e agora estavam parados em seus galhos, observando. Algo estava errado ali e Gina estava com medo. Bem à frente, distante, uma pedra cinza podia ser vista por entre a grama alta. Ela queria correr de volta para as lindas flores, mas precisava descobrir o que estava à frente.

Enquanto chegava mais perto, ouviu Bang! Bang! Bang! Rapidamente acelerou o passo e correu sobre as pedras afiadas e a grama cortante que arranhava seus braços e pernas. Caiu de joelhos na frente da pedra e soltou um grito de dor ao perceber do que se tratava. O túmulo de Draco. Bang! Bang! Bang! Ele estava tentando sair! Ele estava chamando seu nome; ela podia ouvi-lo!

Gina acordou de seu sonho com altas batidas na porta.
“Gina! Gina! Sei que você está aí! Por favor, me deixa entrar!” Bang! Bang! Bang! Confusa e apenas meio desperta, Gina foi até a porta e abriu-a para encontrar uma Laura nervosa.

“Deus! O que você estava fazendo? Estou batendo na porta há séculos!” Gina olhou para fora da casa, ainda não totalmente acordada. Estava claro e um pouco frio, devia ser dia.

“Bem, não vai me deixar entrar?”
“Claro, Laura, desculpe. Só estava cochilando no sofá.”
“Nossa, você está horrível, Gin.” Laura estudou seu rosto antes de lhe dar um grande abraço.

“Nossa, obrigada.” Gina revirou os olhos e se virou para fechar a porta. Laura nunca tinha sido daquelas amigas que enrolavam; ela ia direto ao ponto. Mas era por isso que Gina a amava tanto, pela sua sinceridade. Era também por esse motivo que Gina não havia ido ver Laura no último mês. Ela não queria ouvir a verdade. Ela não queria ouvir que tinha que seguir com a vida; ela só queria... ah, ela não sabia o que queria. Estava feliz estando triste. De alguma forma, parecia o certo.

“Credo, está tão abafado aqui! Quando foi a última vez que abriu uma janela?” Laura andava pela casa abrindo janelas e recolhendo pratos e copos vazios. Ela os levou até a cozinha, onde os colocou no lava-louças e continuou a arrumar tudo.

“Ah, você não tem que fazer isso, Laura,” Gina protestou fracamente. “Eu faço...”
“Quando, ano que vem? Não quero ver você definhando enquanto todos nós fingimos que não percebemos. Por que não sobe e toma um banho e aí nós podemos tomar uma xícara de chá quando você descer.”

Um banho. Quando fora a última vez que ela sequer se lavara? Laura estava certa, ela devia estar horrível com o cabelo oleoso, as olheiras e o camisão sujo. O camisão de Draco. Mas aquilo era algo que ela pretendia nunca lavar. Ela o queria exatamente como Draco o havia deixado. Infelizmente, o cheiro dele estava começando a sumir, dando lugar ao inconfundível cheiro de sua própria pele.

“Tá bom, mas não tem leite. Não pude com...” Gina ficou constrangida pela falta de cuidado com a casa e com ela mesma. Sem chances de Laura olhar dentro daquela geladeira ou aquilo iria comprometê-la muito.

“Tcharam!” Laura cantarolou, mostrando uma sacola que Gina não havia percebido que ela havia trazido. “Não se preocupe, cuidei disso. Pelo jeito, você não come há semanas.”
“Obrigada, Laura.” Um nó se formou em sua garganta e as lágrimas se juntaram em seus olhos. Sua amiga estava sendo tão boa para ela.
“Pára! Nada de lágrimas hoje! Apenas diversão, risadas e felicidade em geral, minha cara amiga. Agora, banho, rápido!”



Gina se sentiu quase humana quando desceu as escadas. Estava vestida com um conjunto de ginástica azul e soltara seus ruivos cabelos sobre seus ombros. Todas as janelas do andar de baixo estavam abertas e a brisa fresca pareceu correr dentro de sua cabeça. Parecia que estava eliminando todos os maus pensamentos e medos. Ela riu sobre a possibilidade de sua mãe estar certa, afinal. Gina saiu de seu transe e arregalou os olhos ao olhar pela casa. Não poderia ter levado mais de meia hora no banho, mas Laura havia arrumado, lustrado, limpado, lavado e espirrado perfume em todos os cômodos da casa. Seguiu o barulho que ouvia até a cozinha, onde Laura estava esfregando o fogão. A pia, as torneiras prateadas e o escorredor estavam brilhando.

“Laura, você é um anjo! Não acredito que fez tudo isso! E em tão pouco tempo!”
“Ha! Você sumiu por mais de uma hora! Estava começando a pensar que você tinha descido pelo esgoto. Bem capaz, pela sua finura.”
Ela olhou Gina de cima a baixo.

Uma hora? Mais uma vez os devaneios de Gina haviam tomado conta de sua mente.

“Certo, eu comprei umas verdurinhas e frutas, tem queijo e iogurtes ali e leite, claro. Não sabia onde você guardava as massas e as comidas enlatadas, então as coloquei ali. Ah, e tem alguns congelados no freezer. Isso deve bastar por um tempo, mas ao que parece vai durar um ano inteiro. Quanto peso você perdeu?”

Gina olhou para o próprio corpo; as roupas estavam folgadas no bumbum e o cordão estava amarrado na cintura o mais apertado possível, mas ainda assim a calça caía-lhe na altura do quadril. Ela nada havia percebido sobre a perda de peso. Mas então foi trazida à realidade pela voz de Laura. “Tem uns biscoitinhos ali para acompanhar o chá. Jammy Dogers, seus favoritos.”

Aquilo foi demais. Era tudo demais para Gina. Os Jammy Dodgers foram a gota d’água. Ela sentiu as lágrimas rolarem pelo seu rosto. “Oh, Laura,” ela soltou um lamento, “muito obrigada. Você tem sido tão boa para mim e eu sou uma merda de amiga, horrível mesmo.” Ela se sentou à mesa e pegou a mão de Laura. “Não sei o que faria sem você.” Laura se sentou à sua frente em silêncio, permitindo que ela continuasse. Era isso que Gina vinha temendo, ter um colapso nervoso na frente das pessoas a cada ocasião possível. Mas ela não estava constrangida. Laura estava apenas bebendo pacientemente seu chá e segurando a mão de Gina como se tudo aquilo fosse normal. Uma hora, as lágrimas pararam de cair.

“Obrigada.”
“Sou sua melhor amiga, Gin. Se eu não te ajudar, então quem vai?” Laura disse apertando sua mão e dando-lhe um sorriso encorajador.

“Acho que eu deveria estar me ajudando.”
“Pff!” Laura exclamou, balançando a mão no ar. “Quando você estiver pronta. Não ligue para aquelas pessoas que dizem que você deveria estar normal de novo em um mês ou dois. O luto é uma parte de ajudar a si mesma, de qualquer forma.”

Ela sempre dizia as coisas certas.

“É... Bem, tenho feito um bocado disso, de qualquer maneira. Já não tenho nem como ficar mais de luto.”
“Não pode ser!” disse Laura, zombando. “E só dois meses depois de seu marido morrer? Ele nem esfriou ainda!”
“Ah, pára! Já vou ouvir um bocado disso das pessoas, não vou?”
“Provavelmente, mas que se ferrem eles. Há pecados piores nesse mundo do que aprender a ser feliz de novo.”
“Acho que sim.”
“Me promete que vai comer.”
“Prometo.”



“Obrigada por vir, Laura, realmente gostei da conversa,” Gina disse, abraçando grata a sua amiga, que tinha tirado folga para estar com ela. “Já me sinto muito melhor.”
“Você sabe que é bom estar com as pessoas, Gin. Amigos e família podem te ajudar. Bem, pensando bem, talvez não a sua família,” ela brincou, “mas pelo menos o resto de nós pode.”
“Ah, eu sei, eu percebi isso agora. Só pensei que pudesse agüentar sozinha – mas não posso.”
“Me promete que vai me visitar. Ou pelo menos sair da casa uma vez ou outra?”
“Prometo.” Gina revirou os olhos. “Está começando a falar como a minha mãe.”
“Ah, só estamos todos cuidando de você. Tá bem, te vejo em breve,” Laura disse, beijando Gina na bochecha. “E coma!” ela emendou, cutucando a ruiva nas costelas.

Gina acenou para Laura quando esta arrancou em seu carro. Já era quase noite. Haviam passado o dia rindo e brincando sobre os velhos tempos e então chorando, depois rindo de novo e chorando mais ainda. Laura lhe mostrara sua versão também. Gina nem sequer havia pensado sobre o fato de que Laura e Blaise haviam perdido o melhor amigo, que seus próprios pais haviam perdido seu genro e que os pais de Draco haviam perdido seu único filho. Ela simplesmente estivera tão ocupada pensando em si mesma. Tinha sido bom estar perto de viver novamente ao invés de ficar por ali com os fantasmas do seu passado.

Amanhã seria um novo dia e ela pretendia começá-lo pegando aquele envelope.

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