De coelho a cobra



Mary acordou e olhou em volta tentando reconhecer as paredes de pedra disformes das antigas salas de aula das masmorras, abandonadas devido à umidade insuportável. Tentou levantar o corpo devagar e percebeu que tinha as mãos e pés atados por cordas mágicas, que faziam com que sua pele queimasse em cada tentativa de livramento.
- Enfim resolveu acordar.
Ela virou o rosto e viu Sarah sentada em uma antiga e pesada mesa de madeira.
- Estou cansada de olhar para você! – reclamou ela enquanto brincava de formar desenhos no ar com a sua varinha.
- Por que fez isso, Sarah?... – perguntou Mary não querendo acreditar no que ela mesma estava vendo – Nós não somos amigas?
- Amigas?... – Sarah riu – Não brinque!... Fui eu quem mandou aquele cara para você no clube. – contou ela casualmente – Fui eu quem ordenei que ele lhe desse uma poção para dormir. Também fui eu quem tirou aquelas fotos no hotel.
- Foi... foi tudo fingimento? Desde o início?... ISSO É INACREDITÁVEL!
- CALA A BOCA, MERDA! – com um movimento rápido de varinha, Sarah fez com que Mary fosse jogada para trás e batesse violentamente contra a parede – ...Há certas coisas que eu preciso fazer. Não tenho tempo para me preocupar com peixe pequeno como você! ...Desde muito tempo eu tenho vivido para me vingar de Doumajyd e você apenas foi alguém que eu usei para alcançar meus objetivos.
- Se... se vingar? – ofegou Mary, tentando sentar com um esforço enorme.
- Sim, apenas a usei no processo... Você me ajudar no Salão Principal, quando aqueles moleques estavam me azarando, foi tudo coincidência. Mas quando eu esbarrei no Doumajyd, foi de propósito... Como é da sua natureza boa, você me defendeu. E foi assim que ele entrou na sua vida... – ela a encarou com um sorriso desdenhoso – Vocês dois interpretaram seus papéis melhor do que eu esperava... Contudo... eu calculei mal. Eu nunca pensei que ele chegaria a gostar de uma sangue-ruim pobre e esfarrapada como você!
- Afinal, o que ele fez para você reagir assim?
- O que ele fez?! – ela deu outra risada, parecendo se divertir com a pergunta, como se achasse Mary uma ingênua por estar perguntando aquilo – Desde criança ele não prestava, e nunca vai mudar! Eu nunca o perdoarei! Definitivamente não!...
Mary a encarou assustada. Onde estava aquela Sarah que ela tinha conhecido? Aquele era outra pessoa! Ela se assemelhava muito mais a uma cobra do que a um coelhinho assustado.
- Esta é a última vez que você tem utilidade para mim, Mary Ann Weed.
- ...Como assim? – apesar de ser forte e corajosa, Mary estava apavorada, simplesmente pelo fato de não poder mais ter certeza do que se passava na cabeça daquela garota.
- Você foi só uma isca para fazer Doumajyd vir até aqui. – ela desceu da mesa e andou até Mary, lhe lançando um sorriso que lembrava muito mais um psicopata do que uma delicada princesinha rica.


***


Doumajyd tinha acabado de passar pelas portas principais de Hogwarts quando a esfera em seu bolso novamente o chamou. Praguejando alto e em bom som, ela a retirou sem interromper a corrida. Na esfera, a imagem de Nissenson já havia se formado:
- Chris, você está com a Sarah Swan? – perguntou ele imediatamente.
- Não. – respondeu o dragão sem nem ao menos olhar para o amigo.
- Tenha cuidado com essa garota, você é o alvo dela!... Onde você está indo?!
- Para a minha sala comunal.
- Mentira! – a imagem da cabeça de MacGilleain apareceu na esfera – Onde você está indo?! O que aconteceu, Chris?!
- Não vá, Chris! – advertiu Nissenson já adivinhando o que estava acontecendo – Essa garota é perigosa, nós não sabemos quem realmente ela é! Nós estamos vendo o nosso álbum do jardim de infância e...
- Eu tenho que ir! – disse Doumajyd determinado, demonstrando que nada do que eles dissessem o faria mudar de idéia.
- Pelo menos nos diga onde você está indo, ok? – tentou MacGilleain – Nós iremos com você!
- ...Se vocês forem, eu não serei capaz de proteger a Weed! – Doumajyd berrou para a esfera e a guardou no bolso novamente, não mais ouvindo os apelos dos amigos.


***


- Doumajyd não virá! – declarou Mary – Ele virou as costas para mim! Você mesma viu tudo!
- O jeito como vocês, casais apaixonados, fazem joguinhos me deixa enjoada. –comentou Sarah se abaixando ao lado de Mary, para poder ficar na altura dos olhos dela, e apertou o rosto da garota com a mão da varinha – Coisa sem graça! – e a arremessou novamente contra a parede com outro movimento de varinha.
Nesse mesmo instante as portas da sala se abriram em uma explosão e um Doumajyd vermelho e ofegante apareceu.
Mary levantou o rosto do chão e olhou surpresa para a cena. Sarah já havia se posto de pé satisfeita e o encarava de um jeito sinistro.
- Por quê? – resmungou Mary – ...Por quê veio aqui, seu idiota?!
- Me... – ele começou, mas respirou fundo para conseguir continuar – desculpe por não acreditar em você!
Mary o encarou mais surpresa ainda, com as palavras do dragão ecoando em sua cabeça.
- Veio para pedir perdão para ela, é? – perguntou Sarah cruzando os braços – Um pouco tarde, não?
- O que pretende fazer, maldita?!
- Que tal me mostrar... – Sarah sorriu, demonstrando toda a sua satisfação, indo na direção em que Mary estava caída.
Ela a pegou pelos cabelos, fazendo-a ficar de pé e apontou a varinha para a cabeça dela continuando a dizer:
- ...o que é capaz de fazer por essa garota?
Doumajyd deu um passo à frente, sacando sua varinha, e Sarah o advertiu:
- Se você levantar um dedo contra mim, vou explodir o rosto dela!
- Quem você pensa que eu sou?! – rugiu ele, mas permaneceu no mesmo lugar e tentou achar uma saída – ...Weed, feche os olhos.
- Quê?! – perguntou Mary tremendo, não havia um desfecho possível daquilo que não terminasse em algo terrível.
- Apenas feche!
Sem outra alternativa, Mary obedeceu e no mesmo instante ouviu estralos, como se várias pessoas tivessem aparatado na sala. E então ouviu a voz de Sarah ao seu lado ordenando:
- Dêem um jeito nele!
Uma série de sons de pessoas batendo e chutando foram ouvidos.
- Ora, você é mais bonzinho do que eu pensei! – comentou Sarah parecendo se divertir.
Mary não pode evitar e abriu os olhos.
Havia cinco bruxos vestidos de preto e com os rostos cobertos em volta de Doumajyd. Dois o segurando e três batendo nele. O nariz e a boca do garoto já sangrava e ele não parecia mais conseguir manter-se em pé por conta própria.
- PAREM COM ISSO! – pediu Mary sentindo que começara a chorar.
- Você que sempre age como um rei, como se sente apanhando desse jeito? – perguntou Sarah, segurando Mary mais firmemente – Está doendo, não Chris?... Então por que não revida? Quem se importa o que aconteça com o rosto de uma sangue-ruim pobretona? A cara dela sempre foi feia mesmo! – Sarah começa a rir de uma forma enlouquecida, como se estivesse se deliciando com o que acontecia.
- Todos esses golpes não doem nada. – disse Doumajyd com um sorriso desdenhoso, apesar de estar aparentando exatamente o contrário.
- BATAM MAIS NELE!!! – ordenou enraivecida Sarah.
- Nunca deixou ninguém bater em você antes... – murmurou Mary vendo a cena meio borrada por causa das lágrimas que insistiam em escorrer – Mesmo que eles o segurassem, você teria força para não perder! POR QUE NÃO REAGE, DOUMAJYD?! – ela berrou, dessa vez chorando pra valer.


***


- Não importa como você olhe, ela parece ser outra pessoa. – disse MacGilleain girando seu álbum de recordações do jardim de infância em vários ângulos.
- Será que é mesmo ela? – perguntou Nissenson preocupado.
- Definitivamente essa menina não parece em nada com aquela garota que anda junto com a Weed.
- Ela não é aquela aluna que foi transferida para cá da França?
- Sim, é ela mesma! – respondeu Vicky, que permanecia apertando as mãos, preocupada com o que poderia ter acontecido com Mary.
- Mas, se ela for mesmo a mesma Sarah Swan de anos atrás, o que ela quer com o Chris agora? O que ele fez de tão terrível para ela? Lembra de algo, Adam?
O dragão encolheu os ombros, ainda olhando para as fotografias.


***


Doumajyd finalmente foi largado pelos bruxos de preto e caiu imóvel no chão.
- Por que pararam?! – exigiu saber Sarah.
- Ele não é normal. – comentou um deles – Ninguém apanha tanto e continua respirando! Por que simplesmente não o mata, senhorita Swan?
- NÃO! – Mary desesperou-se mais ainda com aquela sugestão.
- Por que você está fazendo isso tudo por essa garota?! – perguntou Sarah para Doumajyd, tentando manter a calma.
Ela já não sorria mais. Ao contrário, estava lívida de fúria.
Doumajyd se mexeu no chão, enquanto os bruxos se afastavam admirados com a resistência dele, e pegou penosamente algo em seu bolso. Mary reconheceu imediatamente o seu cachecol.
- ...Por quê tem que ser ela?! POR QUÊ?!... – dessa vez era Sarah que estava começando a chorar, e continuou falando, como se estivesse conversando com ela mesma – Mesmo depois de eu retornar tão linda...


***


Era um dia ensolarado e todas as crianças do jardim de infância, devidamente uniformizadas, estava aproveitando para fazer atividades ao ar livre.
A professora havia pedido para que eles confeccionassem uma lembrança com algo do pátio para entregar a pessoa que mais gostassem. Eles tinham sido liberados para encontrarem um lugar onde quisessem trabalhar, sozinho ou em grupos.
Em baixo de uma grande árvore, estavam quatro meninos, conversando animadamente e rabiscando em pedaços de pergaminhos.
- Adam, dá o seu giz de cera verde! – ordenou um menino despenteado.
- Eu não tenho giz de cera verde!
- Simon! Giz de cera verde!
- Procure pelo seu, Chris!
- O Ryan comeu o meu ontem!
O menino acusado limitou-se a continuar desenhando sem vontade.
- Chris, – chamou o pequeno Adam, puxando o colega pelo uniforme – tem alguém querendo falar com você.
Atrás de Chris estava uma menina baixinha e de rosto rechonchudo, com os cabelos presos em um lindo laço cor-de-rosa em cima da cabeça. Nas mãos, ela segurava apertado um pergaminho.
- O que você quer, feiosa? – perguntou Chris sem nem ao menos olhar para ela.
- Eu... eu.. eu fiz isso para você, Chris, a pessoa que eu mais gosto. – anunciou a menina, ficando vermelha até a raiz dos cabelos presos.
Ela lhe mostrou um desenho muito mal feito de um menino despenteado no pergaminho, com o nome dele escrito com giz de cera colorido em cima.
Chris a encarou surpreso enquanto os amigos quase se engasgavam de tanto rir dele:
- Aah, Chris! – exclamou Simon – Ela gosta de você!
- Chris tem uma namorada! Chris tem uma namorada!
O menino bufou, furioso e arrancou o pergaminho das mãos da menina, que o oferecia timidamente para ele.
- Sai pra lá, sua feiosa! – ele jogou o pergaminho no chão e pisou em cima – Nariz achatado! Balofa! Feiosa! FEIOSAAAA!!!



***


Feiosa, feiosa, feiosa...
Essa palavra ainda ecoava na cabeça de Sarah quando ela voltou de seus pensamentos:
- Mesmo depois de eu ter ficado tão bonita... Eu usei toda a herança dos meus pais para isso... E ainda fiquei morando fora por todo esse tempo... Tudo... eu transformei... POR QUE NÃO EU, CHRIS?!
Doumajyd, machucado até a alma, tentava chegar perto de Mary, gemendo a cada movimento:
- Weed...
- SE AJOELHE PARA MIM, DROGA! – Sarah agora chorava copiosamente – Diga que eu sou bonita, se apaixone perdidamente por mim, como se você não pudesse respirar se eu não existisse!... – ela soltou Mary, a fazendo cair pesadamente no chão, pegou uma das antigas cadeiras e correu em direção a ele – POR QUE VOCÊ NÃO OLHA PARA MIM?!
- NÃÃÃÃO!!! – Mary reuniu toda a força que lhe restava e, em um impulso, se jogou entre a cadeira e Doumajyd.
Ela sentiu algo se quebrando nas suas costas e caiu em cima de Doumajyd, não conseguindo mais mover um músculo depois disso.
Sarah, surpresa com a ação de Mary, deu alguns passos para trás, encarando os dois no chão, tapando a boca com as mãos como se estivesse horrorizada com o que vira.
- Pá...pára, Sarah... por favor. – sussurrou Mary, mal conseguindo falar.
Sarah recomeçou a chorar e caiu de joelhos no chão.
- Já chega, senhorita Swan. – disse o que parecia ser o líder do grupo de bruxos encapuzados, e falava como se a conhecesse há um longo tempo – Não vai conseguir nada assim. Vamos sair antes que alguém apareça e sua situação fique complicada.
E ele aparatou com ela e os outros bruxos, não deixando nada para trás que os denunciassem.
- ...Doumajyd? – chamou Mary, tentando ao máximo não desmaiar de dor. – Doumajyd? Você está bem?
- ...Cla ...claro que não, idiota. – respondeu ele o mais pronunciável que sua situação permitia.
Então ela recomeçou a chorar, afundando o rosto nas vestes dele:
- Por que você não reagiu, droga?!
- Se... se eu levantasse um dedo não seria capaz de proteger você... Eu já sabia que você era a mira.
- Mi... idiota, é ‘isca’!
- É...
- Então porque você veio? – ela fungou tentando se levantar e conseguiu sentar apesar da tremenda dor nas costas.
- Não é óbvio? – com um movimento fraco de varinha, ele soltou as mãos presas dela.
- Não. Você não é nada óbvio! – com as mãos livres, ela conseguiu se livrar das cordas em seus pés e então ajudou Doumajyd, o erguendo e verificando se ele tinha algum osso quebrado.
Ele a encarou, com seu ar superior apesar do seu estado deplorável, segurando firmemente o cachecol dela na mão:
- É por que eu gosto de você.
Mary deixou o que estava fazendo e também o encarou, de uma forma que demonstrava todo o seu espírito de inacreditável.
- É verdade, Mary.
Pela primeira vez ela ouviu a voz dele soar normalmente, nem no imperativo e nem em forma de ameaça. E não soube explicar a sensação que aquilo lhe causara. Só lembrava de já a ter sentido isso uma vez, há pouco tempo atrás, quando Ryan gentilmente lhe entregava seu lenço para ajudá-la na festa de boas vindas de Sharon.

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