Nasce um novo trio





- Ei! O gato comeu sua língua? Eu perguntei seu nome, menina!

Mia ouvia a voz do loiro à sua frente como se ele estivesse a centenas de quilômetros de distância. A única coisa que conseguia prender a atenção da menina naquele momento era o movimento suave do andar de Daniel. O moreno usava uma jeans folgada e uma camiseta branca com o desenho prateado de um dragão. Os olhos verdes brilhavam com a luz da manhã e o cabelo negro estava despenteado como todas as outras vezes em que Mia o vira. Ao avistar o loiro e a ruiva juntos no fundo da sala, Daniel passou a mão pelos cabelos, bagunçando-os ainda mais, e seguiu diretamente para eles com um amplo sorriso. Hermes girou nos calcanhares para enxergar o que chamara a atenção da menina. Então, exclamou de um jeito divertido, estendendo a mão para um cumprimento:

- Ei, cara! É você! E aí, tudo bem, Dan?

Daniel olhava para os dois, alternando entre o estojo nas mãos de Hermes e o rosto rosado de Mia. À vergonha pelo material espalhado pela sala de aula se juntou aquela provocada pela entrada do moreno.

- Olá, Hermes. Eu estou bem, e você? – respondeu Daniel sem tirar os olhos de Mia. – E você, Mia, tudo certo? Sua avó já está bem?

- Você conhece a estabanada aqui? – perguntou Hermes, sem entender direito, e dirigiu-se para Mia. – Achei que você fosse nova na escola, e que por isso ficou assim morrendo de vergonha quando espalhou todo o conteúdo do meu estojo pelo chão da sala.

- Ela é – Daniel respondeu, depois de um pequeno silêncio constrangedor, Mia se parecendo cada vez mais com um tomate maduro e Hermes sorrindo sem parar. – Mia mudou para o prédio onde moro há pouco mais de um mês.

- Ah, só podia mesmo ser sua amiga, Dan – Hermes ignorava por completo as feições cada vez mais desconfortáveis de Mia. – Ela tem cara de ser nerd, igualzinho a você!

O professor responsável pela aula de Química entrou na sala, interrompendo a conversa dos três ao pedir de modo severo que todos tomassem os seus lugares e prestassem atenção na aula. Foi o gongo salvador para Mia, pois a ruiva se sentia tão envergonhada e irritada que era incapaz de articular qualquer palavra. Colégios novos eram sempre um martírio. Ao se sentarem, Hermes virou, segurando o encosto da cadeira e conservando o sorriso orgulhoso.

- Bem vinda! Espero que goste do Joana D´Arc como eu e Daniel gostamos, não é mesmo, Dan?

- É claro – disse o moreno, que se sentara na última carteira da fileira ao lado, ficando exatamente à esquerda de Mia e Hermes.

Sem saber direito o porquê, Mia carregava consigo o celular de Daniel desde o dia em que ele havia ajudado a transportar vovó Molly para o hospital. Não via o menino desde então e nunca conversara com ele sobre o estranho acontecimento no jardim. Ele não voltara a ligar para o celular, e na verdade parecia não se incomodar muito com o fato do aparelho ter permanecido com ela. Na esperança inconsciente de receber um telefonema, Mia utilizou o carregador de baterias do celular de seu pai, que ficara no apartamento. Remexendo o material dentro da mochila, retirou o telefone e, sem tirar os olhos do professor, entregou-o para Daniel. O menino sorriu de uma forma que deu a ela a certeza de que, se estivesse de pé, seus joelhos não agüentariam o peso do próprio corpo.

No intervalo, Mia saiu da sala de aula para o pátio acompanhada por Daniel. A primeira coisa que conversaram foi sobre a estranha empatia e antipatia que Mia sentira por Hermes. Gostara dele quando o vira na sala de aula, mas depois que Daniel chegou, achou que o loiro se comportara como se estivesse se exibindo para o amigo. Daniel tentou convencê-la de que aquele era o jeito de Hermes, que ele poderia parecer um pouco orgulhoso a primeira vista, mas que era um excelente amigo. Depois, conversaram sobre a situação de vovó Molly. Enquanto Mia justificava as faltas às primeiras aulas por estar meio adoentada, Hermes chegou ao lado dos dois.

- O novo casalzinho do Joana D´Arc! Será que eu vou perder meu amigo para você, Mia? – o loiro abraçou a menina, claramente contrariada.

Mia tentou mudar de assunto, omitindo as descobertas na casa dos tios gêmeos e o encontro com o Oráculo. Ambos fizeram companhia para ela durante todo o dia e apresentaram-na para outros colegas do colégio. A timidez prevalecia, mas Mia gostara de ser bem acolhida numa nova escola, ao menos uma vez, para variar. Pelo visto, Daniel e Hermes eram muito populares, apesar do moreno estudar há pouco tempo no Joana D´Arc. Tinha se mudado para lá no nono ano, apenas um ano antes de Mia. Mas, de acordo com os dois, quando se encontraram foi amizade à primeira vista, por mais gay que isso soasse, como costumavam brincar.

Com a convivência, Mia passou a se soltar mais com os garotos e a aceitar melhor o jeito de Hermes. O trio se tornou inseparável. Tinham outros colegas, conversavam com outras pessoas, mas na hora de fazer trabalhos ou de aprontar alguma, eram sempre Mia, Daniel e Hermes que permaneciam unidos. A companhia dos dois rapazes ajudara a ruiva a perder um pouco da timidez, enquanto a racionalidade da menina tentava, por vezes, puxá-los de volta ao chão quando estavam viajando demais. Daniel era inteligente, sempre bem sucedido nas notas e muito querido pelos professores. Era o cabeça do trio, vivia tirando Hermes das enrascadas em que o amigo se metia. O loiro era o mais destemido e astuto do grupo. Bagunceiro de marca maior, era inteligente mas totalmente despreocupado, principalmente no que dizia respeito a sua língua mais que afiada. Deixava sempre para a última hora as lições e trabalhos e preferia diversão a estudo, além de não levar desaforo para casa. Muitas vezes, era ele quem convencia o trio a cabular uma aula ou outra num pequeno parque próximo ao colégio. Mia era o coração do grupo e, obviamente, a primeira a se negar terminantemente a perder matérias nas primeiras vezes. Depois, acabou se rendendo quando, numa bela manhã de sexta-feira, os dois amigos pegaram-na no colo, cada um por um braço, e arrastaram a menina para longe dos portões do Joana D´Arc. Passaram o tempo das aulas à sombra de uma árvore enorme, sentados nas raízes que escapavam da terra. Foi nesse dia que Mia se deixara chorar nos ombros dos amigos pela primeira vez, angustiada pelo sumiço dos pais e pela memória debilitada da avó. A ruiva achava que, ao se abrir, talvez Daniel dissesse alguma coisa sobre o estranho homem que ela encontrara no jardim do prédio, em meio à tempestade. Ela pensara mesmo ver uma sombra de dúvida pairar no olhar do garoto, mas ele apenas ouviu-a, assim como Hermes o fez.

- Ah, Mia – Daniel estava sentado ao lado dela na mesma raiz, e enxugou uma das lágrimas que escorrera pela bochecha sardenta. – Pode parar de chorar porque eu estou aqui para te fazer sorrir, ok? Quando foi que eu deixei você ficar triste por muito tempo, hein, hein?

- Um verdadeiro mala, como sempre – Hermes se equilibrava na ponta dos pés em uma das raízes. Estufou o peito e bateu continência, brincando com Daniel. – Sou o seu herói e vim te salvar do perigo, senhorita Mia!

Mia ensaiara um meio sorriso, mas logo as lágrimas afloraram novamente pelo canto dos olhos. Daniel lançou um olhar de censura para o loiro, que veio se sentar ao lado deles, sem tentar conter um enorme bocejo.

- Vocês são tão chatos que me dão até sono. Qual é – reclamou Hermes ao levar um tapa na cabeça de Daniel, desarrumando os cabelos espetados meticulosamente com gel. – Mia, eu sei como isso que você está passando é difícil, mas você concorda que não adianta ficar sentada aí chorando? Isso é mesmo coisa de meninas.

- Você não entende nada, Hermes – Mia dissera, a voz embargada pela emoção. – Quando se trata de sentimentos, sua profundidade é equivalente a uma colher de chá.

Sem o menor sinal de constrangimento, Hermes tomou a amiga nos braços, levantando-a no colo e rodopiando com ela.

- Escute aqui, pequena! Nós não podemos ficar lamentando as coisas da vida. Temos que agir!

- E o que você quer que ela faça? – Daniel também levantara, visivelmente contrariado, e esperara Hermes colocar Mia de novo no chão. A ruiva não chorava mais, mas continuava apoiada no ombro do loiro. - A polícia já foi avisada, mas não há nenhuma pista do paradeiro dos Weasley. E a avó de Mia não facilita as coisas com a amnésia incurável.

- É... essa é uma boa pergunta. Mas quando se tratam de planos mirabolantes, não há ninguém que me supere. Vou encontrar uma solução – completou Hermes, de maneira decidida.

Daniel olhou para os amigos. Mia já interrompera a profusão de lágrimas. Então o moreno encarou os céus e completou, levantando os ombros:

- Depois o mala sou eu!




Os meses foram passando e outubro chegou. O outono estava mais frio do que de costume e Mia sentia dificuldades para acordar. Estava desmotivada e o rendimento escolar caíra, o que era algo inusitado para a sempre estudiosa Mia Weasley. O sumiço dos pais há três meses e o estado de saúde sem aparente recuperação de vovó Molly não eram incentivos para ninguém. Mas o que mais irritava a ruiva era o fato de não receber mais nenhuma notícia do Oráculo. Tentou entrar em contato com os tios para utilizar o armário sumidouro da casa e ir atrás de Wyrda mesmo sem ser convocada. Mas Fred e Jorge viajaram sem avisar ninguém, e Mia achava que esta saída repentina poderia ter algo a ver com os Renegados. Portanto, lá estava ela, abandonada.

As exceções, claro, eram Daniel e Hermes. Os amigos ficavam a maior parte do tempo por perto, tanto nas aulas quanto em tardes de estudos no apartamento de Mia, as quais eram entremeadas por longas conversas no jardim ou filmes na televisão. Em muitas delas, Daniel recebera ligações urgentes e tivera que voltar para casa, alegando que a mãe precisava de ajuda para cuidar do pai. Hermes dissera a Mia, na primeira vez que Daniel precisou sair mais cedo do apartamento, que o moreno nunca chamava ninguém para visitá-lo. Hermes só sabia que o pai de Daniel era doente, mas o que ele tinha era um mistério.

Mia não se sentia encorajada para contar aos amigos sobre suas origens. Achava que os dois a chamariam de louca caso ela dissesse que seus pais eram bruxos e que conhecia uma espécie de vidente que se auto-intitulava como O Oráculo e O imperfeito que é perfeito. E pensando racionalmente, tudo aquilo não fazia mesmo o menor sentido. Era como se ela tivesse caído de pára-quedas numa história que não era sua. Ou que ao menos fora escondida dela por quinze anos.

A menina também se sentia culpada por não fazer nenhum esforço para encontrar os Potter. Mas que culpa tinha ela se sequer sabia por onde começar a procurar? Siga seu coração, dissera Wyrda. Mas no primeiro e único encontro que tiveram, O Oráculo só falara por enigmas, o que não facilitava em nada a busca. Durante a noite, era comum Mia encostar a cabeça no travesseiro e permanecer perdida em pensamentos, sem conseguir conciliar o sono. Recordava o encontro com Wyrda e a cena que vira na Penseira, buscando detalhes que pudessem ter escapado a seus sentidos embargados pela emoção naquele momento. Talvez tivesse perdido alguma informação que a ajudasse a encontrar os Potter no meio do turbilhão de novidades que experimentara. Mas quanto mais refletia, mais frustrada ficava em não encontrar nenhuma solução. E as noites mal dormidas só serviam para deixá-la ainda mais desanimada.

Não que fosse fácil encontrar uma solução para o enigma do sumiço dos Weasley. Hermes mesmo prometera pensar em algo, mas não ocorreu ao menino nenhuma idéia genial além de esperar as informações da Scotland Yard. No entanto, a polícia investigava o caso sem sucesso aparente, e este estava perto de ser agendado e entrar para a lista dos sem solução, os chamados cold cases. Era como se o senhor e a senhora Weasley estivessem em algum lugar fora do mapa. E Mia sabia que eles estavam mesmo.

Aquele dia amanhecera particularmente frio e Mia vestira um moletom verde-água grosso para tentar espantar o vento. As matérias do dia também não animavam: dois tempos de Matemática, dois tempos de Física, dois tempos de Geografia e a salvadora História, mas só no fim do período. Mia já estava atrasada para a primeira aula quando, antes mesmo de alcançar a rua do Joana D´Arc, parou diante de uma vitrine onde um televisor de última geração exibia a imagem de uma águia com características muito particulares. Ela sobrevoava uma planície que possuía uma única árvore solitária, onde pousou, sacudindo as penas arrepiadas. Para os passantes, a imagem não chamava a atenção, era apenas parte de um documentário qualquer sobre o mundo animal. Mia, no entanto, permanecia vidrada no olhar da águia. Começou a ouvir dentro de si mesma uma voz, parecida com um trinado, algo que nunca acontecera antes.

"Entre na loja e peça o controle remoto. Não precisas temer, eles entenderão. Apresse-se, as areias do tempo despencam com a velocidade esmagadora do destino."

Sem pensar duas vezes e completamente esquecida da aula, Mia entrou na loja de eletrodomésticos. Era pequena, porém continha todo o tipo de apetrecho tecnológico que se pode comprar para uma casa. A águia continuava seu vôo pela televisão, Mia ouvia os gritos do animal, mas agora ele parecia mais normal aos olhos da menina.

- Olá. Você... hã... poderia... me passar o controle remoto? – Mia questionou, sentindo-se completamente idiota por fazer aquela pergunta.

O homem no balcão pareceu olhar a ruiva com um ar de quem não havia compreendido a informação. Mas, no segundo seguinte, os olhos dele viraram nas órbitas e o braço estendeu o controle do televisor. Ao tocar nele, Mia ainda pode olhar por um segundo para os olhos do vendedor antes de sentir seus pés deixarem o chão e seu corpo ser envolvido por mais um rodopio nauseante.

”Se eu pudesse escolher um jeito de viajar magicamente, com certeza não seria esse. E nem por armários sumidouros!”

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