OS OLHOS DE LÍLIAN



~ 01 de agosto de 1991.


Toda aquela história sobre o ataque a Nicolau Flammel não me saía da cabeça. Tinha me deixado com uma sensação estranha, uma espécie de alarme, de antecipação.

Alguém estava atrás da Pedra Filosofal. Até aí, nada de estranho. Aquela era uma Pedra capaz de transformar metal em ouro e de proporcionar a vida eterna, o tipo de coisa cobiçada por muita gente. Quase qualquer um.

Mas aquele ataque era diferente. Era um trabalho característico de bruxo das Trevas, e bem poderoso, por sinal. Alguma coisa naquele ataque me trouxe uma sensação familiar, instintiva, que há muito tempo eu não sentia.

E, apesar de tanto tempo desde o desaparecimento do Lorde das Trevas, desses dez anos de paz, eu não me iludia.

Se é que eu tinha aprendido alguma coisa que valesse a pena com a vida, era a certeza de nunca me deixar enganar pela estabilidade aparente das coisas.

Pois é. Naquele ataque, eu pressentia as sementes da mudança, e era isso que estava me deixando inquieto.

Demorei a pegar no sono, ontem, pensando nisso. Acordei hoje cedo com a firme resolução de investigar melhor essa história. Começando pela maneira mais fácil e óbvia: aproveitar meu antigo disfarce, entrar em contato com alguns dos meus companheiros do passado. Antigos Comensais são sempre os primeiros suspeitos. Ainda mais se fosse para promover a possível volta do Lorde das Trevas. Ou, quem sabe, para a ascenção de algum outro bruxo das Trevas no lugar.

Desci para tomar café da manhã com um plano bem definido.

Mas, ao chegar no Salão Principal, Dumbledore já estava à minha espera.

- Bom dia, Severo.

Notei nele uma seriedade inesperada.

- Nossa preocupação a respeito da segurança do... objeto..., pelo visto, era bem justificada...

E me estendeu o pergaminho que tinha nas mãos. Uma mensagem curta, porém muito alarmada, do Ministério, comunicando que Gringotes havia sido invadida no dia anterior.

Os duendes estavam furiosos. O sistema de segurança do banco, de que tanto sempre se orgulharam, tinha sido burlado. Era um acontecimento inédito no mundo bruxo. Os duendes ainda tentavam minimizar o fato, declarando, com um certo orgulho que, apesar da invasão, nada havia sido roubado.

Mas o que para eles parecia ser um bom sinal, para mim era o pior. Mostrava claramente que não tinha sido uma simples tentativa de roubo. Só um bruxo muito talentoso conseguiria penetrar na segurança de Gringotes e sair de lá inteiro, sem deixar pistas. Depois de conseguir um feito extraordinário como esse, invadira apenas um cofre específico e, não tendo encontrado o que queria, não roubou nada.

Não era roubo.

Encarei Dumbledore sem emoção. Aquele tipo de frieza estudada, que só os meus anos de prática podiam conseguir.

- Acho que vou mandar uma coruja para alguns amigos. Estou devendo uma vista a Wiltshire, antes do início das aulas...

O diretor assentiu, entendendo tudo, como sempre. Completou em resposta:

- O objeto em questão vai ficar bem guardado, no terceiro andar do Castelo. Pretendo pedir a cada professor da escola a elaboração de um feitiço de proteção especial, por precaução.

Aquela era uma informação surpreendente. Vários professores, criando vários feitiços para a proteção da Pedra, que ia ficar guardada escondida no Castelo? Por quê? Haveria algum risco do suspeito entrar no Castelo?

Aquele não era nem o lugar nem o momento para esclarecer minhas dúvidas, claro. Por isso, tomei meu café em silêncio e segui para as Masmorras.

Escrevi um bilhete curto, discretamente formal, endereçado a Narcisa. Sugeri um jantar de confraternização na sua casa, quem sabe com nossos velhos amigos também, para comemorarmos o início dos seus filhos a Hogwarts. Malfoy, Crabble, Goyle, Nott.

Com um pouco de sorte, eu ia conseguir descobrir o que precisava.

Ia precisar de bem mais sorte para conseguir sair de lá sem o estômago revirado.

~ 05 de agosto


Geralmente, é nessa época em que eu tenho o desprazer de ficar sabendo quem será o novo professor de Defesa contra as Artes das Trevas.

Eu sei, o cargo é amaldiçoado. Ninguém que o assume dura mais de 1 ano. E é só por isso que eu e Dumbledore concordamos que não posso ocupar essa vaga.

Saber disso me serve como uma espécie de consolo. Porque é quase insuportável acompanhar o desfile de imbecis e incompetentes que Dumbledore consegue arrumar para ocupar a vaga. E parece que, a cada ano que passa, o nível consegue cair um pouco mais.

Dessa vez, antes mesmo que eu tivesse a chance de saber antes de quem ia ser a vaga dessa vez, eu o encontrei pessoalmente. Logo cedo, Salão Principal, no café da manhã.

Lá estava ele, Quirino Quirrell. Uma figura ainda mais patética do que eu lembrava. Tinha acabado de chegar ao Castelo, pelo visto. Pálido, nervoso, suarento, cheio de tiques, trêmulo... e de turbante roxo!

Por Merlin, o que significa aquele turbante ridículo? Se me fosse dada a chance de escolher, eu, com certeza, preferia a Maldição Cruciatus ou a morte, ao invés do ridículo daquele turbante roxo na cabeça...

Não precisava ser muito inteligente para deduzir o que a presença dele significava. O idiota ia ser o novo professor. Só isso já era capaz de estragar meu apetite logo cedo, me fazendo pensar seriamente em desisitir do café da manhã.

Ah, mas não consegui escapar... Assim que o idiota me viu, deu um sorrisinho nervoso e satisfeito. Veio na minha direção, sentando-se bem ao meu lado, na mesa dos professores. E eu, claro, fui obrigado a manter um mínimo de diálogo durante a refeição. Eu sou um ímã para esses idiotas.

Eu já sabia, ou podia deduzir, tudo o que ele me contou durante o café, com aquela sua vozinha gaguejante. Ele havia saído de Hogwarts, há cerca de um ano atrás, numa espécie de ano sabático, uma peregrinação de estudo, algo no gênero. duvido muito que estivesse buscando alguma experiência de verdade no combate das Artes das Trevas. O homem é um rematado covarde. Voltou pior ainda, se é que isso é possível. Mas conseguiu, como ele teve um prazerzinho mórbido em contar para mim, ser contratado por Dumbledore para a vaga de Professor de Defesa contra as Artes das Trevas.

Idiota. Inútil, covarde, medíocre, incompetente. Gago. Irritante. Figura ridícula.
Eu sei o que dizem sobre ele: ah, pobre coitado! Um bruxo tão estudioso. Uma mente brilhante. Estava ótimo enquanto só ficava na teoria, estudando nos livros a Defesa contra as Artes das Trevas. Foi viajar para estudar, encontrou-se com vampiros na Floresta Negra, pobrezinho... Parece que teve, também, um probleminha meio tenebroso com uma velha feiticeira das Trevas por lá... E nunca mais foi o mesmo. Ficou com medo dos alunos, com medo da própria matéria que leciona...

Mentira!

Ele nunca passou de um bruxo incompetente, medíocre, atraído pelas Artes das Trevas, mas covarde demais para assumir seu lado sombrio. Na verdade, acho que sua única qualidade sempre foi a covardia.

OK. De qualquer maneira... mesmo sabendo que é só por um ano, ter de suportar esse bruxo ridículo, risível, no cargo que deveria ser meu por merecimento e capacidade, é intolerável.

É claro que, antes de terminarmos o café da manhã, ele mesmo fez questão de me dizer o quanto me admirava, e que sabia que eu estava mais qualificado do que ele para a função. Bah! Nas pessoas de capacidade limitada, a modéstia não passa de mera honestidade.

Meu consolo é que, se tudo correr como o habitual, não terei o desprazer de compartilhar com ele a mesa no banquete do final do ano letivo.

[1997] - não preciso dizer o quanto subestimei Quirrell no início...

~ 18 de agosto
.
Ontem foi o jantar na Mansão Malfoy.

A Mansão Malfoy causa um impacto em mim, ainda hoje. Mesmo depois de tantos anos.

O casarão antigo, enorme e majestoso, impecável através de mais de 400 anos. A enorme propriedade rural, com aqueles incontáveis acres de terra cercando o palacete. Um conjunto espetacular. Uma verdadeira declaração de poder a céu aberto. O tipo de poder feito para durar através de gerações. O tipo de poder que eu, um dia, ambicionei.

Não deixa de ser irônico estar de volta ali, mais uma vez, tantos anos depois, numa noite insuportavelmente quente de verão. Aquele tipo de ironia cruel que me persegue. **

Pelo menos, dessa vez, eu não me sinto inadequado. Não muito, pelo menos.

Eu tenho certeza de que conquistei o respeito e a admiração dos meus antigos companheiros Comensais. Afinal, dei provas de ser um servo leal ao Lorde das Trevas. Teoricamente consegui ludibriar Dumbledore, um bruxo inteligente temido pelo próprio Lorde das Trevas. E, quando tudo acabou, fui um dos primeiros a me livrar de acusações e embaraços, como uma prisão em Azkaban, ou interrogatórios oficiais. E conquistei um certo prestígio como Chefe da Sonserina.

Eu sei, eles me admiram. Por isso eu os desprezo.

Mas, dessa vez, eu também estava, tenho que admitir, muito curioso. E a curiosidade servia bem para aliviar meu mal-estar.

Lucius, como sempre, esperava na porta de entrada, com aquele seu sorriso esnobe de anfitrião elegante.

- Severo! É sempre um prazer recebê-lo em nossa casa! Fique à vontade...

Deixei que ele me conduzisse ao salão. A mão no meu ombro, o cuidado especial com a recepção...

Mesmo não sendo um jantar formal, pelo menos não oficialmente, eu percebi que tudo havia sido decorado com requinte especial. As grandes portas de vidro do terraço estavam abertas para os jardins, mostrando o cuidado com a arrumação das flores lá fora, também. Estava claro que, para Lucius, era um ponto de honra oferecer um jantar para o Chefe da Sonserina. Chefe da Casa a que ele esperava que Draco fosse pertencer.

E, claro, era mais uma maneira de demonstrar o seu poder, diante dos nossos antigos amigos.

Eu poderia até me sentir lisonjeado com isso, se a ironia da situação não me deixasse um pouco enojado.

Vários convidados já estavam lá.

Hugo Crabble foi o primeiro a notar a minha chegada. Com aquele entusiasmo corpulento característico, veio me cumprimentar.

- Severo Snape! Quanto tempo! Professor em Hogwarts, hã? Muito bem, muito bem...

Para o meu horror, percebi que, enquanto ele me presenteava com tapas nas costas não muito delicados, o meu nome ecoou pelo salão. Não precisava mais para que todos os outros se aproximassem, viessem me cumprimentar. Eu era o convidade de honra? Então era o homem a ser bajulado.

Aquele estilo efusivo e amistoso demais já estava me deixando nauseado.

Elinora Crabble, a esposa igualmente rechonchuda, sibilou, numa tentativa típica de charme:

- Ah, o homem do momento! Chefe da Sonserina, não é? Ah, nosso Vincent, com certeza, vai ficar com você...

O que eu só podia lamentar, desde já, na verdade. O garoto gorducho com ar apalermado que ela estava empurrando na minha frente não parecia capaz de acrescentar muita coisa para a Casa. E, conhecendo bem os pais, como eu, só podia ter certeza de que a primeira impressão era verdadeira.

Goyle, Nott, as esposas e os filhos me cercaram rapidamente. Antes que eu pudesse escapar, lá estavam todos eles, sorrindo e falando ao mesmo tempo, no mesmo estilo excessivo. Aquela prometia ser uma longa noite...

Fui salvo pelo anfitrião, que se aproximou, me trazendo um copo de uísque de fogo e entrando na conversa.

- Calma.. Vamos, vamos... Deixem o Severo respirar, pelo menos! Temos a noite toda para colocar a nossa conversa em dia! Agora, já que estamos todos aqui, proponho que façamos um brinde!

Todos, como antigamente, imediatamente levantaram os copos esperando o brinde:

- Um brinde ao Passado... - Lucius começou, com um olhar distante e solene.

Depois, com um gesto na direção dos garotos que brincavam no canto da sala, completou radiante:

- E à esperança de um futuro glorioso!

Todos concordaram eufóricos e beberam um gole. Eu aproveitei para tomar aquela dose em um só gole e fui, discretamente, em busca de mais. Enchi o copo, tomei tudo de uma vez, de novo, e tornei a encher.

Eu tinha uma certa experiência nesse tipo de evento, depois de tantos anos. Depois que o uísque-de-fogo começa a fazer efeito, a festa fica mais suportável, esse era o lema.

Nem percebi quando Narcisa se aproximou. Acho que deslizou suavemente por entre os convidados, sutil demais para ser percebida, até tocar de leve meu cotovelo, no momento em que eu me preparava para mais um grande gole do uísque- de- fogo.

- Severo! Como vai? Quanto tempo! Sentimos tanto a sua falta, no aniversário do Draco e no Solstício!

Sorria discretamente, na medida da perfeita anfitriã, e me estendeu a mão.
Eu, que tinha pensado em cumprimentá-la só com um aceno de cabeça, achei que ia ser muito grosseiro, mesmo para meus padrões. Apertei a mão que ela me estendia, admirado pela sua performance inabalável. Seu sorriso tinha uma naturalidade espantosa. Seu olhar vazio de emoção, sua presença elegante de anfitriã imperturbável. Uma Oclumente perfeita. Uma atriz espetacular. Essa mulher não cansa de me surpreender.

Confesso que reencontrá-la era um dos meus temores da noite.

Antes de ir, esvaziei cuidadosamente a mente, excluindo qualquer emoção ou sensação. Por via das dúvidas, tinha preferido deixar na Penseira de Dumbledore toda e qualquer lembrança daquela noite que passamos juntos. Mas, quando eu respondi ao seu cumprimento e a encarei, percebi que não precisava ter me preocupado. Eu estava diante de uma mestra.

- Parece que só ocasiões muito especiais conseguem tirar nosso amigo recluso da sua toca... Quando tive a idéia desse nosso jantarzinho, antes que nossos filhos embarcassem para Hogwarts, nós praticamente o intimamos a comparecer, não é, Narcisa?

Lucius tinha se aproximado também, mais uma vez, zeloso com o seu convidado de honra. E o seu comentário, apesar de recheado de bajulação pomposa, só me fez admirar ainda mais a mulher na minha frente. O jantarzinho era idéia dele? Brilhante!

- Ah, sim, com certeza, querido... Foi mesmo uma excelente idéia... Reunir nossos amigos, apresentar os garotos, oficialmente, ao Chefe da futura Casa deles na escola...

Ela sorria, e esperou um pouco para, então, completar:

- É o que esperamos...

Realmente, se eu fosse demonstrar alguma emoção, estaria boquiaberto. Eu estava diante de uma mestra, perfeita.

Uma sineta anunciou que o jantar estava servido. Passamos para o salão de jantar, interrompendo a conversa.

Assim que os primeiros pratos foram colocados, foi a vez de Sebastian Nott propor um novo brinde:

- Um brinde ao nosso amigo, Severo Snape! Comensal influente, bruxo habilidoso, professor em Hogwarts e Chefe da mais tradicional das Casas!

Ah, pelas barbas de Merlin! Eu não ia conseguir aguentar aquela bobajada por muito mais tempo. Já estava na hora de direcionar a conversa para os meus objetivos. Na primeira oportunidade, joguei um comentário:

- Estou espantado que nenhum de vocês tenha ainda comentado o único evento digno de nota nesses últimos tempos: o ataque a Gringotes...

O clima mudou sutilmente na mesa. As mulheres ficaram silenciosas e demorou até que alguém quebrasse o silêncio.

- Mas... nada foi roubado.

- Ah, sim, Goyle. Mas houve o ataque, de qualquer modo. E isso foi o surpreendente. Os duendes são tão orgulhosos da segurança do banco, sempre alardearam que isso nunca aconteceria...

Fiz uma pausa climática para então acrescentar:

- Isso me faz lembrar o que o Lorde das Trevas costumava dizer. Não há nada que não possa ser feito.

O silêncio que se seguiu foi tão intenso e demorado que eu cheguei a me questionar se havia sido direto demais.

Mas Lucius acabou com a minha incerteza, ao responder.

- Realmente... Não há nada que não possa ser feito. A própria destruição do Lorde das Trevas provou isso, não é mesmo? O maior bruxo das Trevas que jamais se teve notícia...destruído por um bebê.

- Realmente... Mas... Eu fico me perguntando... O ataque a Gringotes...

- O que? Você acha que isso foi coisa dele, do Lorde das Trevas? Que o Lorde das Trevas poderia estar de volta?

- Depois do que aconteceu em Godric's Hollow? Você mesmo viu, Severo, você estava lá...

- Não sei, Nott. Nós acabamos de citá-lo: não há nada que não possa ser feito... Não sei o que eu acho ou deixo de achar, Lucius, mas esse ataque deu o que pensar, você não acha?

- Bom, isso com certeza. Foi obra de um bruxo muito poderoso. Mas, eu, sinceramente, não consigo acreditar que o Lorde das Trevas consiga voltar. Não depois do que o garoto Potter fez...

Vários acenaram, concordando sobriamente. Eu achei que já era suficiente. Narcisa , habilmente, tentou mudar um pouco de assunto.

- Por falar em Potter... O garoto deve estar com 11 anos, não é? Pelas minhas contas, ele tem a idade de Draco... Será que vai para Hogwarts nesse ano?

Eu me lembrei da conversa com Dumbledore logo antes das férias de verão, e acabei respondendo sem pensar:

- É. Ele recebeu a carta de Hogwarts no início desse verão.

Um zumzumzum de especulação deu início, até que Lucius resolvesse comentar:

- Um garoto como esse Potter merece ser observado de perto, não é mesmo, Severo? Afinal, só uma criança com poderes muito especiais conseguiria o que ele conseguiu, não é? Quem sabe não será ele mesmo o próximo grande Lorde das Trevas?

Os outros concordaram com a idéia.

- Fique de olho nele, Severo! Se ele for mesmo um futuro bruxo das Trevas poderoso, ele vai precisar do controle apropriado das pessoas certas, desde bem cedo... Vai precisar das amizades certas... Vou encorajar Draco a fazer amizade com ele... E, já que ele é puro-sangue, pode ser que vá para a Sonserina... Seria o ideal, hein? Ficar sob seu comando direto?

Ah, sem comentários.

O resto do jantar correu sem incidentes. A conversa logo voltou ao estilo habitual: quem está com quem, quem traiu quem... esse tipo de coisa.

Depois da sobremesa, eu consegui dar uma escapada para o jardim. Não posso dizer que fiquei surpreso quando percebi Narcisa ao meu lado.

- Sozinho, Severo? O convidado de honra conseguiu, finalmente, uma folga para um ar fresco, então?

- Estava só… observando a beleza da noite…

- Está uma linda noite, mesmo...

Narcisa abriu um sorriso. Tomando a varinha, com um gesto sutil que eu já havia visto antes, conjurou uma brisa leve. Nós dois sabíamos que ela estava repetindo um gesto, uma cena, de uma outra noite de verão, há mais de dez anos atrás. A noite em que eu descobri que havia mais em Narcisa do que aquela camada superficial de Grande Dama da Mansão.

Era uma espécie de sinal, relembrar o passado para deixar claro que ela era mais inteligente e perceptiva do que parecia à primeira vista.

- Severo? Você espera que eu pergunte o que está acontecendo, ou pretende me contar espontaneamente?

Eu a encarei e só levantei a sobrancelha, sem dizer nada.

- Você pode me poupar da encenação, Severo. Já devia saber disso... Quero saber o que está havendo.

- Havendo? Como assim?

- Ora, Severo... Você achou que eu iria acreditar, por um minuto que fosse, naquela sua história "vamos fazer um jantarzinho para reunir os velhos amigos e comemorar a entrada dos garotos em Hogwarts"? Ah, por favor... Dê um pouco mais de crédito à minha inteligência!

Ela sorria suavemente, como se discutisse comigo as banalidades da vida de dona de casa. Quem estivesse nos observando, de longe poderia imaginar que estávamos falando das flores do jardim.

Eu dei um suspiro e ainda tentei:

- Sabe, Narcisa, qual é o problema de algumas mulheres? Elas fazem muitas perguntas, ficam se atormentando com mil preocupações o tempo todo, quando deveriam empregar o seu tempo fazendo aquilo que sabem fazer melhor: apenas sendo belas.

Ao invés de ficar irritada, como eu esperava, ela deu uma gargalhada:

- Ah, sim, e deixar todas as preocupações para os homens. Claro, claro... Sabe, Severo, você não é difícil de decifrar... Não vai me fazer desistir. Desembucha, o que está acontecendo?

Eu juro que ainda pensei em usar algum dos meus truques para escapar, do tipo ironia, sarcasmo... Mas alguma coisa me dizia que não ia funcionar. Então acabei desistindo, antes de tentar. Resolvi contar uma versão simples e editada dos fatos.

- Alguém conseguiu entrar em Gringotes. Um bruxo poderoso o bastante para vencer todas as defesas dos duendes... E nada foi roubado. Ele estava atrás de alguma coisa específica, algo que esteve guardado num determinado cofre, mas que tinha sido retirado de lá antes do ataque. Com os antecedentes dos nossos amigos, eu imaginei que tivessem alguma informação a mais a respeito...

Ela ficou me observando por alguns minutos, sem dizer nada, antes de responder.

- Isso não é tudo.

- Não.

- E você sabe que objeto era esse?

- Sim.

- É alguma coisa perigosa?

- Sim.

- Mas você não vai me contar mais nada.

- Não.

- Nem se eu insistir?

- Não.

- Severo... Às vezes você é bem detestável, sabia?

- Claro. Eu mesmo me detesto constantemente.

Ela deu uma risada. Depois, me encarou com uma seriedade sincera:

- Seja o que for que esteja acontecendo, eu sei que deve ser importante, e perigoso, ou você não estaria aqui. Eu sei o quanto você detesta esse tipo de situação. - deu um suspiro e continuou: - Eu não vou insistir, mas quero pedir um favor. Severo, cuide do meu filho quando estiver em Hogwarts. Tome conta dele na escola, Severo. Em nome da nossa amizade. Ele é inteligente, mas ainda é tão... criança. Mantenha o meu menino longe do perigo. Cuide dele, por favor.

Mais uma vez, eu acabei prometendo tomar conta de um garoto. Eu já havia assumido o compromisso de tomar conta de dois garotos de onze anos. Por Merlin, por que isso? Como é que isso foi acabar acontecendo comigo?

[1997] - alguns comentários para sua compreensão:
1) eu me refiro, nesse dia, várias vezes, a uma determinada noite no passado: Trata-se de uma festa de Solstício de Verão na Mansão Malfoy, em 1981, na Mansão Malfoy, na qual estive. Não existe mais nada a respeito desse evento que você precise saber.
2) como você deve ter percebido ao ler os diálogos acima: sim, eu estava lá em Godric's Hollow naquela noite. Eu vi a morte dos seus pais. Mas não vou falar sobre isso agora.



~ 02 de setembro.

É madrugada, e eu não consegui pregar o olho depois do maldito banquete. Acho que nunca mais vou conseguir dormir.

Eu não consegui dormir nas últimas noites. Esvaziei a mente, pensei já estar bem preparado para esse banquete. Mas devia ter imaginado que ia dar tudo errado.

Quando os professores ocuparam seus lugares à mesa do banquete, coube a mim o lugar ao lado do professor Quirrell. Mais uma vez, eu tinha a desagradável tarefa de aguentar aquele bruxo ridículo, usando um igualmente ridículo turbante roxo. Nervoso, suarento, gaguejante, ignorante. Eu estava usando toda a minha habilidade e energia tentando manter o controle emocional, ao mesmo tempo em que tentava estabelecer o que eu imaginava ser uma conversa casual amigável. Mas só conseguia pensar: isso é um erro. Eu não consigo ter uma conversa casual. Não sei conversar casualmente. Todos os assuntos das conversas casuais são incrivelmente tediosos.

O Salão Principal estava todo enfeitado, como de costume. Logo ficou cheio de uma multidão de alunos barulhentos.

A cerimônia do Chapéu Seletor estava para começar, eu sabia que o nó na boca do estômago já era uma antecipação. Aí, as portas duplas do salão se abriram, e uma fileira de crianças miúdas surgiu, aguardando a vez de sentar na banqueta com o Chapéu Seletor na cabeça.

Enquanto o Chapéu cantava a música deste ano, eu focalizei a fila. A fila de crianças ainda estava um pouco longe, não era uma visão muito nítida.

Mas eu o localizei. Imediatamente, daquela distância, eu vi, e tive a certeza de que era ele.

Eu me senti voltando no tempo, porque quem estava ali naquela fila era Tiago Potter aos 11 anos.

O mesmo menino magro e miúdo, joelhos ossudos. Os mesmos cabelos pretos, rebeldes, despenteados e espetados atrás. Os mesmos óculos de aro redondo.

Eu pensei que eu estivesse preparado. Que ilusão! Naquele instante eu soube que nunca estaria.

O fantasma de Tiago Potter aos 11 anos estava ali, bem na minha frente. Ia ser meu aluno. Pior! Eu tinha me comprometido a cuidar da segurança dele!

Conforme eu o observava, notava algumas pequenas diferenças, na verdade. O garoto de agora não parecia tão bem cuidado, tão mimado e seguro de si como o pai. Seus óculos estavam com uma espécie de fita no aro. E havia a cicatriz. Uma cicatriz em forma de raio na testa.

Uma onda de ódio ameaçava me dominar. Que espécie de castigo era esse? Que tipo de ironia perversa e bizarra do universo era essa?

Mas aí o garoto olhou na minha direção e nossos olhos se encontraram.

Mesmo à distância, por Merlin, foi como ver os olhos de Lílian nos meus de novo. Eu podia ouvir, em algum canto longínquo do cérebro, a voz de Dumbledore me dizendo: “O filho dela tem os mesmos olhos que ela. Você se lembra do formato e da cor dos olhos de Lílian Evans, não é?”

Os olhos dela. Os olhos verdes de Lílian Evans. Eu podia me sentir mergulhando, me afogando naqueles olhos verdes. Aqueles olhos únicos, inconfundíveis. Inesquecíveis. E que me faziam lembrar de tudo outra vez!

Eu podia me lembrar da primeira vez que eu vi aqueles mesmos olhos me encarando, de perto, com atenção. Eu me senti com dez anos de novo, um garoto magricelo e desengonçado, vigiando de longe a linda ruivinha e a irmã brincando na balança. Parado, atrás dos arbustos, vestindo roupas grandes demais, velhas demais. Observando, vigiando, planejando.

Eu já sabia que ela se chamava Lílian, e que a irmã era Petunia. Sabia que ela também tinha dez anos. Ela já era linda, única.

Ela fazia o seu balanço ir cada vez mais alto, para desespero da maior.

- Lílian, não faça isso! - a irmã maior, uma trouxa loira e feiosa, gritava.

Mas Lílian ria, gargalhava, de puro prazer, parecendo quase voar.

As duas desceram do balanço, e sem perceber vieram se aproximar de onde eu estava.

Lílian colheu uma flor, bem pertinho de mim, e mostrou para a irmã o que podia fazer. Com a flor na palma da mão aberta, as pétalas se puseram a abrir e fechar, para o espanto e inveja da irmã.

- Como você consegue fazer isso? A irmã invejosa perguntou.

Elas estavam tão perto...Ela parecia tão linda, era tão cheia de vida, tão cheia de magia. Eu não consegui me segurar mais. Eu sabia a resposta. E tinha certeza de que nenhuma das duas tinha idéia. Eu já observava as duas há tanto tempo! Saí de trás do arbusto, antes de pensar direito no que estava fazendo.

- É óbvio, não?

- O que é óbvio?

Eu senti as bochechas queimando ao perceber a atenção de Lílian. Era a primeira vez que eu via aquele olhos muito verdes bem de perto, e focalizados em mim....


A dor da lembrança me atingiu como uma queimadura. Não consegui continuar encarando o garoto. Desviei o olhar.

Nada mais prendia a minha atenção, claro. Ouvia a voz de Minerva chamando os calouros, um a um, como se fosse um ruído de fundo, bem longe.

Draco Malfoy foi chamado, e percebi vagamente que estava na Sonserina. Assim como os outros garotos, Crabble, Goyle...

Chegou a vez dele. Ouvi, muito longe, o chamado:

- POTTER, Harry!

O Chapéu Seletor demorou um tempo enorme.

Talvez... talvez... se ele viesse para a Sonserina... Eu cheguei a pensar isso. Talvez isso fizesse a idéia de protegê-lo um pouco mais... tolerável. Quem sabe, eu poderia influenciar seu aprendizado mais de perto...

Mas não. O Chapéu gritou depois de um tempo de espera:

- GRIFINÓRIA!!

O garoto correu, sorridente e encabulado, para mesa da Grifinória, debaixo de uma chuva de aplausos.O Salão parecia prestes a vir abaixo.

E eu senti me contorcer por dentro. Era inevitável lembrar, nitidamente, de uma outra cena, há muitos anos atrás.

Um garoto, exatamente igual àquele ali, em pé no vagão do trem para Hogwarts, empunhando sua espada invisível, cheio de orgulho, dizendo:

- Grifinória, a morada dos que tem o coração valente! Como o meu pai!

Sim, como o pai, mais uma vez. Como Tiago Potter.

Mais uma vez, Tiago Potter tinha conseguido tirar alguma coisa de mim.
Harry. O seu filho. Mas também filho dela.

Não é justo que ele tenha se tornado uma espécie de miniatura símbolo de você. Eu quase não consigo enxergá-la no garoto. Ele é praticamente idêntico a você, só para me atormentar!

Eu odeio você, Tiago Potter. Eu só posso odiar o seu filho, agora, porque ele é idêntico a você. Viu o que você deixou para ele? É um castigo, um fardo. Um suplício, para mim e para Harry.

E a culpa é toda sua ! Tudo culpa sua, Tiago Potter!

O garoto olhou mais uma vez para mim, e de novo eu senti aqueles olhos verdes nos meus. E não consegui pensar em mais nada, e me perdi, mais uma vez, naqueles olhos verdes.

Ah, Lílian, eu sinto tanta saudade! Sinto tanto a sua falta!

Seu filho está vivo, são e salvo, como você queria tanto... Ele tem os seus olhos... Exatamente iguais aos seus...

Milton Nascimento - Aqueles Olhos Verdes

Aqueles olhos verdes
Translúcidos serenos
Parecem dois amenos
Pedaços do luar
Mas têm a miragem
Profunda do oceano
E trazem todo o engano
Das procelas do mar

Aqueles olhos verdes
Que inspiram tanta calma
Entraram em minh'alma
Encheram-na de dor
Aqueles olhos tristes
Pegaram-me tristeza
Deixando-me a crueza
De tão infeliz amor



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Aê moçada! Super obrigada pelos comentários, pelos elogios, pela recepção calorosa! Espero que gostem desse capítulo, que curtam essa fic. Eu certamente estou curtindo escrever.
Aqui vão aparecer algumas referências a cenas da minha outra fic, SOMBRAS DA PRIMEIRA GUERRA. Quem ainda não conhece, convido a dar uma passadinha lá.
Aos meus leitores antigos e cativos, aos novos, por favor, comentem!! Elogios e críticas ajudam a gente a continuar escrevendo...
Mil beijos e até breve!!

Ah, comentem, please!!

Espero atualizar a fic uma vez por semana, mais ou menos, se tudo der certo... Bjs!!



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